Apenas 28% dos pesquisadores do mundo são do sexo feminino, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, as mulheres se destacam e representam 43,7% dos pesquisadores, conforme dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apesar de o número ser bastante significativo, elas querem e merecem mais. Mas para isso, enfrentam desafios diários.
As brasileiras atuantes na área de pesquisa são altamente qualificadas, sendo mais numerosas do que os homens, ainda segundo o CNPq. Levantamento feito na Base Lattes em janeiro deste ano indica um total de 822.550 currículos atualizados, entre mestres e doutores em atividade no país, nos últimos cinco anos. As mulheres são maioria nesse universo, com 441.849 currículos (53,72%), contra 380.701 (46,28%) dos homens.
Em 2023, foram registrados 42.852 grupos de pesquisa ativos no CNPq, atuando em 156.386 linhas diferentes, que envolveram um total de 247.455 pesquisadores. Destes, 129.090 são mulheres, representando 52% do total.
Mas, dos grupos de pesquisa, apenas 17.985 são coordenados pelas mulheres. Qual a justificativa para esse dado? É preciso voltar na história para uma análise mais aprofundada.
Lis Leão, pesquisadora sênior do Centro de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, afirma que sempre existem razões históricas, áreas que sempre foram consideradas mais masculinas, como ciência, tecnologia, engenharias e matemática. Isso fez com que muitas mulheres, principalmente aquelas com descobertas inovadoras, fossem negligenciadas e subestimadas por seu trabalho ao longo das décadas.
“As meninas, de maneira geral, por razões de educação familiar e de acesso à educação, também têm uma grande barreira a ser enfrentada. Certa vez, em uma expedição científica à Serra do Amolar (Mato Grosso do Sul), conversei com uma jovem ribeirinha que lavava louça no rio e ela me dizia que seu destino estava traçado. Seus irmãos eram incentivados a estudar na cidade, mas o mesmo não ocorria com as meninas, das quais se ‘espera’ que cuidem da casa, do marido e dos filhos. Essas normas culturais, educativas e de estereótipo de gênero também estão por trás dessa falta de incentivo”, explica.
Desafios acompanham as mulheres na ciência
Lis pontua alguns desafios que enfrentou. O primeiro foi o gênero, ou seja, o fato de ser mulher.
“Este ano, os ministérios do Trabalho e Emprego apresentaram um relatório que mostrou que as mulheres no Brasil recebem 19,4% menos que os homens, e essa diferença pode chegar a 25% nos cargos de direção e gerência. Isso se reflete em toda a sociedade brasileira e, consequentemente, na pesquisa também. Não se trata apenas de uma questão salarial, mas também de evolução na carreira científica, onde as mulheres que ocupam cargos no alto escalão, em muitas instituições, ainda são escassas”, ressalta.
Com isso, o público feminino tem menor representação e visibilidade, o que implica na falta de modelos femininos de sucesso em pesquisa científica, o que pode desencorajar mulheres jovens a seguirem nesta área.
Lis diz ainda que conciliar o trabalho e a vida pessoal também é mais desafiador para as mulheres, que são vistas tradicionalmente como as cuidadoras da família, em particular de crianças e idosos, o que as leva a, em determinadas épocas da vida, terem que equilibrar as demandas da carreira científica com responsabilidades familiares.
“Atualmente, após um movimento para maior conscientização sobre a questão da maternidade (#maternidadenolattes), o CNPq acabou por incluir, por solicitação de uma pesquisadora, essa informação no currículo lattes, o cartão de visitas de pesquisadores. Os homens não têm esse tipo de ‘interrupção’ na trajetória acadêmica, mas as mulheres têm que sinalizar, para que ao menos se justifique eventualmente um menor período de produção científica”, comenta a pesquisadora.
Para Sonia Andrade Chudzinski, pesquisadora do Laboratório de Biofármacos do Instituto Butantan, as mulheres ainda se veem em constante busca ou manutenção de condições de trabalho que permitam fazer pesquisa de forma produtiva e com qualidade, sobretudo em posições de liderança, principalmente quando se tornam mães.
“A carreira científica requer muita dedicação, longas horas de trabalho no laboratório, na escrita de projetos, leitura e publicação de artigos, patentes etc. Além disso, nessa área é preciso sempre estar atualizada, e para tanto, viagens a reuniões científicas são necessárias. Neste sentido, a busca de espaços/eventos, mesmo aqueles onde seria esperado um olhar para essa questão, como reuniões científicas, que normalmente não estão preparados, também se torna um grande desafio”, avalia Sonia.
Daniella Bahia, diretora Médica, de P&D e Práticas Assistenciais do Grupo Fleury, compartilha da mesma opinião.
“Mesmo os números apontando que as mulheres estão à frente de muitos projetos, não podemos romantizar. É preciso muita dedicação. As posições só são alcançadas por meio de mérito, com capacitação, preparo, desenvolvimento da mulher para que alcance voos mais altos. Precisamos de uma rede de apoio para que possamos seguir nesse caminho”, acredita.
Oportunidades são fundamentais para o avanço feminino
Falar sobre os desafios que são enfrentados diariamente pelas mulheres pode ajudar a melhorar a educação e a conscientização da população. “Também é importante favorecer a implementação de programas educativos, desde a infância, para que meninas se sintam motivadas e capazes de explorar o mundo da ciência, além de programas de mentoria científica”, opina Lis.
Para Lucilda Cerqueira Lima, fundadora do Grupo Elora, que realiza pesquisas clínicas em oncologia e hematologia, oferecer mentorias e redes de apoio para mulheres cientistas facilita a troca de experiências e o desenvolvimento profissional. “Programas de bolsas de estudo e incentivos financeiros específicos para mulheres também podem fazer uma grande diferença.”
A área de pesquisa clínica, aliás, é reconhecida por ter em seus mais diversos cargos um grande número de mulheres. “Nas CROs (sigla em inglês para Contract Research Organization; em português, Organização de Pesquisa Clínica), temos mulheres na liderança e também ocupando cargos de todos os tipos.
Mas essa, vale dizer, é uma característica que vemos em pesquisa clínica há muitos anos”, diz Fernando de Rezende Francisco, gerente executivo da Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abracro). Lá, das cinco posições do Conselho Administrativo, quatro são ocupadas por mulheres. E no Conselho Fiscal, as três cadeiras contam com mulheres.
Falando ainda sobre oportunidades, Lis comenta que planos de carreira mais equitativos podem também contribuir para melhorar este cenário, assim como políticas institucionais inclusivas que promovam a igualdade de gênero e acesso a financiamentos.
“E no âmbito da comunicação, campanhas de sensibilização que modifiquem a percepção da sociedade sobre a atuação das mulheres na pesquisa também é algo que merece investimento”, comenta a pesquisadora do Einstein.
O Grupo Fleury possui algumas iniciativas que têm o olhar voltado para a diversidade, como o Grupo de Liderança Feminina, que reúne mais de 50 profissionais ativas, de diversos cargos, que atuam como porta-vozes das mulheres da empresa, e o Elas na Liderança, projeto desenhado para acelerar a carreira de mulheres pretas e pardas que trabalham na companhia, com atividades que duram seis meses.
No Hospital Albert Einstein, há iniciativas focadas na formação de enfermeiras clínicas para maior consumo e produção de conhecimento científico, com horas protegidas para desenvolvimento de projetos por profissionais que integram esse programa, bem como incentivo de apoio e mentoria por pesquisadoras da instituição.
“Mantemos também colaborações com outras organizações e instituições científicas em que a participação de todos os pesquisadores e pesquisadoras é incentivada. Além disso, temos o Programa Cientista do Amanhã, programa de letramento científico para jovens da comunidade de Paraisópolis, onde a participação das meninas, além de bem-vinda, é muito incentivada. Participar desse programa permite a essas jovens conhecer o universo das mulheres na ciência na nossa instituição, experiência essa que pode repercutir em outros campos da sua vida futura, sejam eles científicos ou não”, conta Lis.
Já no Butantan, o fato de a instituição ser reconhecida pela grande representatividade feminina nas suas pesquisas, tanto na execução laboratorial quanto na gestão e liderança desses projetos, incentiva outras pesquisadoras e meninas quanto ao ingresso na carreira científica.
“Um de nossos programas, a Olimpíada Brasileira de Biologia, um projeto educacional que promove e dissemina a ciência para milhares de jovens todos os anos, premia a menina mais bem classificada (Prêmio Menina da Biologia), de modo a incentivar que tenhamos mais cientistas mulheres no país.”
É inegável que as instituições têm seus papeis como incentivadoras, mas cabe também à profissional, na opinião de Daniella, buscar a capacitação e o conhecimento para evoluir. “O autoconhecimento também é importante. Saber onde quer chegar e o que priorizar é essencial para uma trajetória de sucesso”, explica Sonia.
Benefícios do olhar feminino nas ciências
“As mulheres têm uma forma particular de olhar o mundo e isso traz novas perspectivas e abordagens para a pesquisa, o que pode levar a soluções inovadoras e abrangentes. A presença de mais mulheres na ciência traz uma mensagem para a sociedade de que caminhamos para um mundo com maior justiça social e equidade”, enfatiza Lis.
Para Sonia, é válido demonstrar que as competências e habilidades da mulher, somadas às lições aprendidas com a maternidade – uma grande escola de gestão de tempo, de pessoas e de conflitos, com muita sensibilidade e atenção – contribuirão para o desenvolvimento de pesquisas de impacto para a sociedade.
Uma abordagem humanizada, colaborativa e compassiva, que é característica do perfil feminino, é vista como essencial, por exemplo, para Lucilda, quando falamos em pesquisa clínica. “A conexão com os pacientes nessa área é vital”, finaliza ela.