Enquanto a ONU traz ao Rio um conceito pré-estabelecido de economia verde, no qual novas tecnologias supostamente limpas surgem como redentoras da vida no planeta, especialistas da Fiocruz discutem se o que há por trás dessa “onda verde” é mesmo verde, num sentido mais amplo da palavra, isto é, se a forma de organização capital-trabalho reproduz práticas capitalistas “marrons”, que levam à desigualdade, ou se oferece alternativas para um mundo mais sustentável para todos.
O pesquisador Edmundo Gallo, doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp) e membro do Escritório Fiocruz na Rio + 20, vê com ressalvas a postura da ONU e enxerga desafios muito maiores para uma economia verdadeiramente verde. Nesta entrevista ao site Saúde Rio + 20, ele explica sua visão e discute o papel do setor saúde nos objetivos do desenvolvimento sustentável.
Que discussões o conceito de ‘economia verde’ levanta na Rio + 20?
A Rio+20 tem dois eixos: a economia verde e a governança. A governança é um meio para dar conta da agenda, e a agenda principal é a economia verde. O que se está discutindo é como se reproduz ou não o modo de produção capitalista e de que forma. O capitalismo precisa fazer um adiornamento para enfrentar a insustentabilidade do seu próprio modo de produção. A forma como hegemonicamente o capital se reproduz está ameaçando sua própria reprodução. A grande questão hoje é como vai se dar o modo de produção capitalista daqui para frente: a economia verde vai garantir a sustentabilidade do planeta, do próprio capital, da vida humana ou não? A questão está difusa. De um lado, defendem que a economia verde é a possibilidade de sobrevivência do planeta, de melhorias e adequação; de outro, dizem que isso é uma panaceia e que se deve trabalhar com outra lógica, de substituição do modo de produção capitalista, e aí entram discussões sobre economia solidária e outras alternativas.
Quais os principais argumentos a favor da chamada economia verde?
Quem defende a economia verde tem argumentos econômicos muito fortes. Vários estudos, sejam de economistas ou da própria ONU, demonstram a partir de várias experiências que a economia verde tem uma possibilidade de impacto, do ponto de vista do crescimento econômico mensurado por indicadores tradicionais como PIB, empregabilidade e renda, muito maior do que a chamada economia marrom. Essa argumentação, basicamente bancada pela ONU, afirma que a economia verde tem um período de transição em que se diminui um pouco o emprego, mas que depois há uma produção muito maior. Esse é um argumento importante, que busca convencer governos e empresários de que ao investir na economia verde não vão perder dinheiro nem a possibilidade de aumento de renda social, empregabilidade etc. Outro argumento é o da própria sustentabilidade. Não podemos continuar utilizando recursos naturais, lançando resíduos, produzindo e organizando trabalho da maneira como se faz hoje. É preciso mudar essa lógica.
E quais as principais críticas à economia verde?
A grande questão, além dessa crítica mais geral de que ela seria na verdade um adiornamento do capitalismo, é que nem todos os processos chamados verdes são efetivamente verdes. No Brasil temos vários exemplos. O etanol vai substituir uma fonte de combustível fóssil, que é o petróleo. Mas quando vemos o processo de produção do etanol – monocultura que estraga o solo, organização do trabalho extremamente precária, com trabalho penoso que submete a uma jornada de trabalho pesada populações enormes, incluindo crianças e idosos – , questionamos se é mesmo um combustível verde. A energia eólica, no Nordeste principalmente, está desterritorializando populações. As hidrelétricas emitem mais carbono do que a sua correspondente termoelétrica. E há discussões mais de ponta sobre novas tecnologias que supostamente vão resolver uma série de problemas decorrentes da maneira que se produz hoje. A geoengenharia, por exemplo, que trabalha com mudanças no clima direto elaboradas pelo homem a partir de previsões tecnológicas que teoricamente podem acabar com a desertificação, com o aumento da temperatura, e iria resolver uma série de problemas interferindo no clima. Mas há posições que dizem que isso é absurdo, que a geoengenharia tem que ser banida, assim como já se defendeu banir a engenharia genética de alimentos, de sementes.
E não se poderia aliar as duas abordagens? Primeiro adota-se a paliativa tecnológica para reduzir os impactos, enquanto se busca uma mudança muito mais profunda e global no modo de produção?
Faz sentido, é uma discussão que faz parte da história da humanidade: mudar tudo e revolucionar de uma vez ou reformar e transformar? Na verdade ninguém tem uma solução dada. Todo mundo concorda, de uma maneira geral, que o modo de produção, da forma como foi organizado, não tem chance, porque impede a própria reprodução do capital. Na verdade é fundamental que sejam feitas coadunações de processos, discutindo tecnologias e alternativas verdes de produção, porque a produção vai ser necessária em qualquer sociedade, seja capitalista, comunista, socialista… Mas pensar como a gente se organiza de tal forma que a produção e o consumo não sejam lapidadores da natureza, dos sistemas ecológicos, isso tem que estar na pauta de qualquer maneira. Não dá para simplesmente negar a discussão da economia verde, pelo contrário, temos que nos apropriar dela e buscar outras alternativas, discutindo também a questão da equidade, da inclusão social, da miséria, das diferenças entre países, e dentro dos países, entre regiões, entre estratos de habitantes, de cidadãos, quem está na área urbana, quem está na zona rural, quem está em área vulnerável. Deve ser um processo de economia verde inclusiva, que não mude só a tecnologia, mas inclua socialmente, produza equidade. Há que se destacar formas alternativas, contra-hegemônicas, que estão se desenvolvendo e se articulando, como economia solidária e comércio justo, entre outras possibilidades de organização. É preciso não só começar a se falar sobre isso, mas buscar essas formas alternativas organizadas e implantá-las em diversos espaços. Tem que se ter consciência de que o que está em jogo é muito maior que uma forma de organização para produzir mais ou menos verde, mas sim uma forma de organização econômica, política e social que promova outros valores.
Como o Brasil se coloca politicamente no contexto da Rio + 20?
O documento do governo brasileiro é bem interessante, porque aponta para essas questões: fazer um processo de economia verde que seja inclusivo. E o documento do Ministério da Saúde aponta que é preciso garantir sistemas universais e tem uma série de proposições que vão moldando um arcabouço.
SAÚDE
Como pensar a saúde no desenvolvimento sustentável?
Um dos problemas que identificamos inicialmente é que havia muito pouco conteúdo da saúde na discussão do draft zero, o documento básico que vai para discussão na Rio+20. Propusemos a inclusão de seis parágrafos a partir dos documentos do governo brasileiro e da nossa própria discussão na Fiocruz que destacam bastante alguns pontos fundamentais, como a questão dos sistemas universais como forma de proteção, a questão da saúde ambiental, a articulação da saúde com os processos produtivos e o complexo produtivo da saúde em si. Nosso complexo produtivo tem formato e organização marrons. Produz os mesmos dejetos, tudo da maneira que a economia marrom produz, e é uma industria da saúde. Nos nossos serviços de saúde, um dos principais problemas é destinação dos resíduos, que não têm tratamento adequado e contamina o solo, a água e da população por hormônios, por antibióticos e um monte de outras coisas. Vários problemas diretamente relacionados a isso precisam ser trabalhados sob outra lógica. Se estamos defendendo que a saúde é um componente importante da sustentabilidade, não podemos ter um complexo produtivo que se organiza no meio tradicional da economia marrom. Uma série de coisas diretamente relacionadas com produção e sustentabilidade estão envolvidas nisso, como a questão de saúde do trabalhador e a saúde no ambiente de trabalho. Não podemos bancar um processo produtivo embasado na mesma lógica que criticamos.
E como a Fiocruz vê essa questão?
Apesar de dentro da Fiocruz termos avançado numa série de coisas em relação à produção, à saúde do trabalhador e ao destino dos resíduos, ainda estamos muito atrás. É o desafio mais importante para nós adequarmos nossa política de desenvolvimento à perspectiva verde, e não só na Fiocruz, mas no conjunto do complexo produtivo da saúde brasileiro. Temos um avanço muito grande na questão do sistema de saúde, na cobertura universal, na redução da dependência a insumos estratégicos. É um acumulo importante, mas a que custo estávamos fazendo isso? De maneira crítica, consciente? Não. Estávamos fazendo o mesmo processo. Claro que há iniciativas, como o Programa Nacional de Resíduos Sólidos. Mas o que se avançou ainda é insuficiente para que se tenha um processo de produção verde na saúde como sistema, desde a organização do trabalho, das condições de saúde, dos impactos sobre a população e o próprio processo produtivo em si, seus insumos, seus dejetos. É um desafio mais de gestão, imediato, operacional. Outro desafio, mais político, é inserir a saúde na agenda de sustentabilidade. A saúde teve um privilegio grande nesses últimos períodos, porque havia um ciclo social de desenvolvimento muito intenso onde a saúde tinha um espaço enorme dentro dos Objetivos do Milênio. Esse ciclo vai se fechar, entre aspas, em 2015, com a Cúpula do Milênio, e a agenda da sustentabilidade ganha impulso. O ciclo da sustentabilidade agora está se reafirmando cada vez mais e agora temos que discutir como a saúde dialoga com os objetivos do desenvolvimento sustentável. Na Rio+20, a saúde tem que pensar como responde a isso tanto prática quanto politicamente, em termo de articulação, de proposições e de delineamento da agenda de saúde e sustentabilidade nos próximos dez, quinze, vinte anos.
Fonte: Por Marina Lemle / VPAAPS / Fiocruz
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