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Enfermaria-Virtual para enfrentar um mundo com 8 bilhões de pacientes

Article-Enfermaria-Virtual para enfrentar um mundo com 8 bilhões de pacientes

Reprodução/The Pharmaceutical Journal enfermaria virtual.jpg
Novos modelos digitais de atendimento para responder ao crescimento populacional

Em várias culturas e para muitos pensadores, destino” é uma sucessão inevitável de acontecimentos relacionados a uma ‘ordem maior’ (cósmica, celestial, divina, etc.). Na mitologia grega, por exemplo, as “moiras” eram três irmãs (divindades) que personificavam a “condução do destino das pessoas e dos deuses”. Eram elas que controlavam o fio da vida de todos (do nascimento a morte). Muitas vezes os deuses discordavam das moiras, mas deviam respeitá-las pois delas dependia a “existência da ordem universal”. Ou seja, no antigo mundo imaginário grego todos estavam sujeitos a essas três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o ‘fio da vida’ de todas as entidades. Talvez tenham sido as moiras (Cloto, Láquesis e Átropos) que nos empurraram para o coronavírus. Talvez sejam elas que, entediadas, nos fizeram retroceder a “guerra-fria 2.0”. Quem sabe não foram essas donzelas de aspecto sinistro, grandes dentes e longas unhas as responsáveis pela atual linhagem mundial de líderes populistas? Para as moiras, qual seria o nosso destino neste século? O que essas necromantes reservam para a civilização humana?

Não adianta conjecturar o que a providência metafísica nos designa, só contabilizar o que a ciência demográfica (uma espécie de ‘moira artificial’) nos indica. Em 11 de julho de 2022, a ONU publicou o relatório “World Population Prospects 2022” onde reafirma o que já estava quase claro: “a população mundial deve chegar a 8 bilhões de habitantes em novembro de 2022, chegando a 8,5 bilhões em 2030; 9,7 em 2050 e 10,4 bilhões em 2100. A estabilização do crescimento populacional só deverá ocorrer a partir da segunda metade do século, sendo estimado que atinja um pico de 10,4 bilhões durante a década de 2080, permanecendo nesse nível até 2100”. O Brasil chega em 2022 como o sétimo país mais populoso (215 milhões) e continua a crescer, devendo chegar a 2050 com 231 milhões de habitantes. Nesse sentido, a ‘derrocada mundial do acesso a saúde’ fica cada vez mais evidente, principalmente quando o relatório mostra que os longevos vão compor uma parcela progressivamente maior: atualmente pessoas com mais de 65 anos representam 10% da população, mas em 2050 o percentual subirá para 16% (em 2050, haverá duas vezes mais indivíduos com +65 anos do que crianças com –5 anos). Ou seja, o acréscimo populacional aumentará ainda mais a pressão sobre os serviços sociais, principalmente no acesso as cadeias de prestação de serviço médico. Como explicou o World Economic Forum referindo-se aos dados publicados pela ONU: “Os 50% mais pobres do mundo compartilham apenas 8,5% da renda global total. Além disso, espera-se que as mudanças climáticas levem 68 a 135 milhões de pessoas a mais para a pobreza até 2030. Contra uma pandemia global em andamento, tensões geopolíticas crescentes, instabilidade econômica, inflação crescente e os impactos cada vez mais visíveis das mudanças climáticas, para muitos a desigualdade continuará a definir a existência humana”.

O relatório mostrou o estrago pandêmico: em 2019 a expectativa média de vida era de 72,8 anos, em 2021 foi para 71 anos, com a Covid-19 abocanhando 1,8 ano da nossa existência média (a primeira desaceleração em meio século). No Brasil a redução foi de 2,5 anos. Isso significa que a próxima década verá aumentos inimagináveis na demanda por serviços de saúde. Os níveis crescentes de doenças crônicas e o rápido envelhecimento da população deverá criar estrangulamentos progressivos na assistência sanitária, principalmente nos países emergentes, como o Brasil. Desde o início da pandemia, as principais nações ocidentais não poupam recursos e velocidade para reduzir o déficit assistencial. Inúmeros modelos inovadores de atuação clínica, bem como ferramentas tecnológicas, são criados (as vezes aos trancos e ao sabor das demandas) objetivando reduzir as pressões e as evidências de que o mundo não comporta atendimento assistencial primário para 8 bilhões de indivíduos. Assim, o próximo relatório populacional da ONU pode aferir que nem precisamos de uma pandemia para definhar a expectativa de vida, a própria falta de acesso aos bens sociais e sanitários pode engolir mais alguns anos da expectativa de vida global.

“Mas, no silêncio da sala, alguém pediu a palavra, e lá foi o Reino Unido mostrar uma direção”: vamos avançar velozmente na direção da atenção remota, reduzindo a carga hospitalar! Em abril de 2022, o NHS pediu a todos os seus ICSs (Integrated Care Systems), as poderosas alianças organizacionais que planejam e fornecem serviços de saúde no Reino Unido, para implementar ou estender o modelo de ala-virtual. Foi solicitado que eles fornecessem capacidade de enfermaria virtual(virtual ward) equivalente a 40-50 leitos por 100 mil habitantes (cerca de 24 mil leitos de enfermaria virtual) até dezembro de 2023. Trata-se de uma das respostas britânicas para mitigar as fragilidades crescentes de seu sistema público de saúde (NHS), que encontra grande enfrentamento com a crescente demanda por serviços médicos. Uma enfermaria virtual fornece uma alternativa segura e eficiente para cuidados que são habilitados por digital health. Ela oferece suporte aos pacientes elegíveis em cuidados agudos, que passam a ser monitorados e tratados domiciliarmente em vez de estarem no hospital. Isso busca prevenir admissões evitáveis ​​e mitigar a alta ocupação hospitalar. Em 2022-23, o governo britânico disponibilizou um financiamento de 200 milhões de Libras do Fundo de Desenvolvimento de Serviços para apoiar a iniciativa. Antes de continuar a leitura deste paper, acompanhe neste vídeo (13 minutos) todo o contexto da enfermaria virtual do NHS, desde a entrega ao paciente do kit-virtual-ward (contendo tablet e vários devices de monitoramento) até a logística de visitas e algumas conclusões sistêmicas. Será importante para entender o resto do texto.

A corrida contra a explosão ocupacional de serviços médicos presenciais domina a atenção da Grã-Bretanha: uma nova pesquisa da Ipsos, publicada em junho de 2022, mostra que as “longas listas/tempos de espera” são atualmente a questão mais preocupante para os britânicos. Cerca de 6 em cada 10 (62%) dizem ser esta a sua maior apreensão e agonia, aumentando para 78% para as pessoas de 55 a 75 anos. Atualmente no NHS existem 6 milhões de pacientes em lista de espera para atendimento eletivo, um aumento de 1,6 milhão desde a pré-pandemia, com longos atrasos no atendimento.

A primeira metade deste século será orientada à enfermagem virtual. Não importa sobre qual país estamos falando, mas sim como ele desenvolverá a sua operação de virtual ward. Não há escolhas, nem grandes debates, nem mesmo a incitação das lideranças médicas bradando “os perigos da remotelização assistencial”. Enquanto discutimos, milhões de pacientes ficam a margem de cuidados clínicos mínimos. É usar “o que temos”, habilitar os profissionais de saúde, e inovar naquilo “que ainda não temos”. As redes de prestação de serviços médicos à distância já são uma realidade, sendo melhores do que eram há meia década e se aperfeiçoando todos os dias. Cada dia que passa a insuficiência de profissionais de saúde só aumenta e as taxas de ocupação hospitalar no primary care só crescem, impactando os atendimentos secundários, terciários e emergenciais.

Mas há boas nuances: a enfermagem tem experiência prática inestimável e grande desenvoltura para superar os desafios cotidianos. Argumenta-se que boa parte dos “enfermeiros são caracterizados por uma mentalidade inovadora inata”. Não há evidências reais sobre essa afirmação, mas há boas pistas de que isso possa ser aperfeiçoado. A famosa obra “Difusivo of Innovations” (2003), do Prof. Everett M. Rogers, revelou que as inovações em ICT (tecnologias de informação e comunicação) tem como uma de suas quatro determinantes de sucesso as “características dos adotantes”. Ou seja, aqueles com mentalidade inovadora inata representam apenas 2,5% da população; com os adotantes iniciais representando 13,5%; os adotantes tardios 68%; e os retardatários 16%. Assim, podemos incentivar, capacitar e desenvolver enfermeiros para serem cada vez mais inovadores e facilitadores, habilitando-os a entrar na segunda faixa (“adotantes iniciais”). Possivelmente eles hoje se encontram entre os tardios e retardatários, pois são os últimos a serem treinados em digital health. Sua formação conta com muito pouco aprendizado no campo de ICT, sendo, em geral, preteridos na formação digital por seus empregadores. No Brasil, por exemplo, a enfermagem é pouco valorizada, muito negligenciada na formação de competências tecnológicas e raramente incentivada ao intraempreendedorismo (empreender e inovar dentro da própria instituição) o que caracteriza uma “parvoíce gerencial”: se o profissional tem talentos e competências empreendedoras, precisa ir embora da instituição e tentar seu próprio negócio (!). Nessa direção, é bom nos acostumarmos com a ideia de que neste século a enfermagem virtual será uma das maiores alavancas para reduzir os problemas de acesso a estrutura clínico-assistencial. Treinar e habilitar as competências digitais dos corpos de enfermagem (incluindo os paramédicos) será mais imperativo do que fazê-lo com os médicos.

É preciso levar a utopia ao profissional de enfermagem. Não a utopia selvagem, lírica e provocativa, mas a utopia empreendedora, que incentiva os saltos, as transformações e os desafios. Victor Hugo, que além de grande romancista era também um “filosofo de paseo”, explicou como ninguém a utopia aqui referida: “você sabe qual é a minha enfermidade? A utopia. Você sabe qual é a sua? A práxis. A utopia é o futuro que se esforça para nascer. A práxis é o passado que insiste em continuar a viver". Virtual Ward é uma instância que se esforça para nascer. É onde os profissionais de saúde passarão boa parte do resto de suas vidas. Serão presenciais na residência dos pacientes, digitais no controle de seus tratamentos e entes socioeconômicos nas curvas de acesso populacional a saúde. De acordo com o NHS, mais 0,5 milhão de pacientes britânicos serão tratados por “enfermarias virtuais domiciliares” em 2023, liberando leitos hospitalares e tempo dos médicos. Essa é a utopia saxã na saúde.

Os pacientes terão acesso facilitado aos seus próprios registros eletrônicos por meio do App-NHS. O secretário de Saúde Sajid Javid explicou: “Estamos embarcando em um programa radical de modernização, garantindo que o NHS seja configurado para enfrentar os desafios de 2048 e não de 1948, quando foi criado. O Plano baseia-se no NHS Data Strategy, que possibilitará aos pacientes gerenciar consultas hospitalares a partir do aplicativo e assumir mais controle sob seus próprios cuidados domiciliares, identificando problemas mais cedo e procurando ajuda mais preventiva. Para liberar ainda mais o tempo dos médicos, os pacientes poderão concluir seu “hospital pre-assessment checks” [pré-avaliação para hospital-home] em todo o país até setembro de 2024”.

Nenhuma dessas decisões são implementadas sem uma avalanche de críticas da mídia, do partido de oposição (Trabalhista), da comunidade médica, das associações de pacientes, etc. Mas elas vão se dissipando a medida em que os problemas operacionais do dia a dia crescem de forma acelerada. No último dia 11 de julho, por exemplo, o “Serviço de Ambulâncias de West Midlands” teve mais da metade de suas equipes na fila de espera dos hospitais aguardando até 24 horas para deixar seus pacientes. Segundo a imprensa, “os fundos de toda a Inglaterra e País de Gales estão em alerta máximo devido a “pressões extremas” (ondas de calor, Covid-19, etc.). Todo o serviço de ambulância britânico pode colapsar em semanas ou meses devido ao acúmulo de pacientes nos hospitais, que na maioria das vezes poderiam estar sendo tratados por uma operação de virtual ward. No Norfolk and Norwich University Hospital, por exemplo, o sexto maior hospital universitário do Reino Unido, com mais de 7.500 colaboradores (1.200 leitos), cada especialidade está sendo incentivada a criar sua própria enfermaria virtual. “O modelo para nossa ala-virtual é ser uma extensão do hospital, espelhando completamente uma enfermaria hospitalar tanto quanto possível, com vistas a se tornar parte da vida do hospital”, explica o Dr. Mark Pasteur, líder médico de Enfermarias Virtuais do trust. Cada unidade virtual de Pasteur tem seus próprios enfermeiros (disponíveis 24 horas por dia), seus próprios médicos-juniores, consultores e farmacêuticos (ainda sem fisioterapia virtual ou terapia ocupacional, mas em estudo para implantação), e os pacientes permanecem nos mesmos sistemas digitais de uma enfermaria de “tijolos e argamassa”. O setor que cuida de problemas abdominais, como, por exemplo, pedra na vesícula, tem sua própria ala-virtual. Uma vez que o paciente com colecistite tenha sido estabilizado com antibiótico e analgésico, ao invés de ficar no hospital esperando dias antes do procedimento cirúrgico, vai para casa e retorna somente quando é o momento da colecistectomia. Qualquer trabalho preparatório pré-cirurgico, como coleta de sangue, pode ser feito em uma consulta ambulatorial ou residencial. “No que diz respeito ao hospital, você ainda está dentro dele”, disse Pasteur ao The BMJ.

Uma ala-virtual depende de ferramentas de monitoramento remoto, que permite as equipes controlarem ativamente seus pacientes à distância, intervindo quando as leituras digitais se deterioram. Todavia, não é a tecnologia a característica definidora das enfermarias virtuais, mas o ‘corpo de profissionais de saúde’ que atua no internamento-residencial. Pacientes de alas-virtuais exigem cuidados multidisciplinares de uma série de profissionais que podem visitá-los diariamente. A Deloitte buscou entender como era o cotidiano nas enfermarias virtuais, tanto do ponto de vista do paciente quanto do profissional de saúde. O objetivo era obter uma compreensão holística do ecossistema, sendo utilizado como ferramenta a etnografia. A pesquisa investiga a experiência e o comportamento humano usando insights derivados das ciências humanas comportamentais. A etnografia imerge no mundo das pessoas para ter uma “perspectiva privilegiada” sobre quais elementos formam o tecido de suas vidas cotidianas. “Pessoas não vivem no vácuo, não são robôs, não seguem normas automatizadas, tendo, em geral, uma vida caótica e bagunçada. Quando essa confusão colide com a prática clínica das enfermarias virtuais, as coisas ficam ainda mais complicadas”, explica o Dr. Josh Burraway, Consultor Sênior da Deloitte e líder da pesquisa desenvolvida. Os etnógrafos procuram entender o comportamento humano em toda a sua confusão e complexidade. “Na prática, isso significa acompanhar as equipes clínicas em suas rondas diárias, observar e ouvir enquanto interagiam com colegas e pacientes, além de realizar entrevistas exploratórias. Mergulhamos nos acontecimentos do dia a dia da ala-virtual, observando os eventos em tempo real. Depois investigamos mais profundamente o que aconteceu e por que”, explica Burraway. Os primeiros resultados mostraram que a enfermaria virtual é boa para o paciente, fundamental para o Sistema e pior para os profissionais de saúde, que são exigidos de forma muito acima do normal, requerendo alto grau de resiliência para enfrentar esse cotidiano. Assim, é necessário que sejam incorporadas ‘estruturas de resiliência’ desde o início, impulsionando a colaboração interdisciplinar e a moldagem de atividades que inibam o estresse. O modelo visa cuidar do paciente, resta saber como cuidar do profissional de enfermagem.

Telemonitoring, Virtual Ward e Telehealth Nursing farão parte do mainstream das cadeias de saúde, seja no Ocidente ou Oriente. Oito bilhões de indivíduos significam oito bilhões de pacientes. Desde o primeiro dia de vida somos reféns das morbidades. A cada dia morremos um pouco, definhamos aos poucos, celebramos a vida sabendo que ela está sujeita a contínua debilidade. Países como o Brasil têm poucas opções para fazer crescer rapidamente o acesso público a saúde. O Reino Unido nos mostra caminhos para reduzir as distâncias entre uma ‘consultação frívola’ e um ‘atendimento digno’. A pandemia evidenciou que podemos permanecer em casa controlando medianamente nossas morbidades leves, com a telemedicina criando pontes menos dependentes de hospitais e filas de espera. Moiras não existem, a utopia é puramente cognitiva e o destino é um ‘porvir persecutório’, mas dores, desconfortos e disfunções sempre estarão conosco. “Não sei se haverá um médico ao meu lado quando o futuro chegar, nem sei se haverá uma enfermeira, mas se houver uma conexão digital, não estarei sozinho”.

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)