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Medical Crowdfunding: custeia o tratamento e pode ser um novo Seguro-Saúde

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A falência dos Sistemas de Saúde e a ascensão dos Coletivos de Doação

Pedir dinheiro ou implorar ajuda para custear uma cirurgia ou tratamento, seja de um familiar ou de terceiros, é algo que existe desde sempre e que cresce na mesma proporção em que se expande a ciência médica. O mundo melhorou muito nos últimos 50 anos, mesmo no acesso a Saúde, mas o crescimento demográfico espanta as vitórias e faz crescer o sentimento de que é preciso fazer muito mais nos próximos 50. É um pouco constrangedor escrever este paper mostrando como a falência dos sistemas de custeio médico-assistencial fez emergir um novo setor de serviços. Mas, dito isto, vamos ao que emerge desse caos: medical crowdfunding (MC) é uma das indústrias de serviços que mais cresce dentro da biosfera clínico-assistencial.

Crowdfunding é uma operação realizada por plataformas digitais objetivando arrecadar recursos para atividades filantrópicas, culturais, projetos do terceiro setor, investimento em pequenos negócios, ativismo, pagamento de serviços médicos, dentre outras atuações. Num quadro mais amplo: a captação de recursos online conecta os doadores em potencial àqueles que precisam de fundos sem nenhuma expectativa de retorno. Não é empréstimo, não caracteriza dívida, sendo transparente, gratuito e podendo ser obtido em dias ou horas. Medical Crowdfunding são operações de financiamento coletivo voltadas a angariar recursos para a saúde, quando indivíduos com hipossuficiência financeira promovem campanhas de arrecadação para custear serviços médicos. Nos EUA, mais de um terço de todas as campanhas de crowdfunding estão relacionadas a saúde. A GoFundMe, empresa que detém a maior parte desse mercado nos EUA, informou em fevereiro último que mais de 250 mil campanhas para financiar necessidades médicas são iniciadas a cada ano, arrecadando mais de US$ 650 milhões. Nos últimos cinco anos, mais de 430 mil campanhas na categoria “médica, doença e cura”, só dessa empresa, arrecadaram cerca de US$ 2 bilhões, com uma média de arrecadação de US$ 2.000. Nesse período, 16% das campanhas não arrecadaram nada, enquanto menos de 12% atingiram sua meta. Trata-se de um segmento que cresce anualmente de 13 a 25% de 2021 a 2028 (só nos EUA existem mais de 1.600 plataformas ativas de crowdfunding). Embora a taxa de sucesso do modelo ainda seja baixa, a ‘taxa de empenho’ para desenvolver mecanismos de atração de capital é cada vez maior.

Um em cada cinco norte-americanos já contribuiu para uma campanha de crowdfunding médico, conforme pesquisa divulgada pela University of Chicago em fevereiro último. A pesquisa mostrou que cerca de 8 milhões deles iniciaram uma campanha para si mesmos ou para alguém da família, sendo que mais de 12 milhões iniciaram campanha para não-familiares. Altruísmo e generosidade dos doadores? Sim, é claro. Mas também uma reação política a falência dos Sistemas de Saúde. “À medida que os custos desembolsados ​​anuais continuam a aumentar, mais americanos estão lutando para pagar suas contas médicas e milhões estão recorrendo às suas redes sociais e sites de crowdfunding para financiar tratamentos médicos e pagar suas contas médicas”, explicou Mollie Hertel, cientista sênior e responsável pelo estudo. “Um quarto dos americanos relata ter patrocinado ou doado para uma campanha, algo que só aumentará diante dos custos crescentes do setor”, completa ela. Certamente a pandemia catapultou o problema: em 2021, uma campanha relacionada a crowdfunding foi publicada a cada dois minutos nos EUA (fonte).

Na Europa, a Regulação 1503 sobre financiamento coletivo foi aprovada pelo Parlamento Europeu em outubro de 2020, ensejando uma fase de crescimento do modelo. A regulação facilitou os serviços financeiros paneuropeus, permitindo as empresas de crowdfunding financiar projetos internacionalmente. No Reino Unido, a Covid-19 gerou uma gigantesca demanda reprimida de serviços clínicos, o que levou muitos britânicos em 2022 a se lançarem em campanhas para arrecadar valores para despesas médicas privadas, frequentemente citando seu desespero depois de passar meses nas listas de espera do NHS, como retratou o Financial Times: “Uma família da Irlanda do Norte sentiu-se compelida a obter tratamento privado no exterior para a coluna de seu filho de 12 anos, depois de ser informada que teria que esperar anos pelo NHS. Eles finalmente levantaram £ 50.000 no modelo crowdfunding e o tratamento foi realizado com sucesso na Turquia”. Uma em cada 14 famílias mais pobres da Grã-Bretanha agora incorre em “somas catastróficas de saúde”, onde os custos excedem 40% da capacidade de pagamento (era uma em cada 30 famílias há uma década).

Na Alemanha, mesmo com um Sistema Universal Público de Saúde, cresce também a utilização das campanhas de crowdfunding na saúde. Motivo (universal): alguns custos médicos não são cobertos pelo sistema (co-pagamento dos pacientes, várias terapias alternativas/complementares, intervenções médicas com esperada baixa-taxa de sucesso, terapias experimentais, etc.). O relatório “Medical crowdfunding in a healthcare system with universal coverage: an exploratory study”, publicado em 2020, investigou 380 campanhas de medical crowdfunding (MC) na Alemanha para identificar as condições, doenças e distúrbios mais comuns que levaram os indivíduos a esse modelo de arrecadação. Cerca de um quarto das campanhas alemãs de MC (26,58%) foram relacionadas a câncer/tumor; seguidas de transtorno mental (depressão), com 8,94%. A deficiência foi o terceiro motivo mais frequente (6,84%). O real valor do financiamento necessário foi declarado em apenas em 51,84% das campanhas, com as demais (48,16%) citando que “os doadores poderiam dar o quanto quisessem”. Segundo a pesquisa, a nação mais rica da Europa teve, em média, uma necessidade arrecadatória em MC de 14.166 Euros nas suas campanhas. O relatório mostra que o crowdfunding médico pode ser uma das únicas opções do país para tratamentos cientificamente comprovados, mas que não são financiados pelo sistema de saúde alemão. Uma lipoaspiração, por exemplo, para pacientes com lipedema, não é coberta pelo sistema alemão, sendo um ‘procedimento campeão’ nas campanhas de MC.

Mas não é só um fenômeno ocidental. Nos últimos anos, as despesas médicas na China aumentaram rapidamente, ultrapassando em 2019 cerca US$ 97,4 bilhões. O país estabeleceu um sistema de segurança médica multinível, com um (1) modelo de seguro básico; um (2) seguro comercial como suplemento e (3) assistência social de caridade. Em janeiro de 2020, o sistema médico básico chines (público) já cobria mais de 1,35 bilhão de pessoas (fonte: Administração Nacional de Segurança em Saúde da China). Poucos compram seguros comerciais, sendo que em 2019 o país tinha menos de 100 milhões de pessoas com apólices de seguro para doenças graves. Ou seja, também não faltam problemas no sistema sanitário chines: (1) reembolso do seguro médico restritivo, cobrindo apenas despesas médicas hospitalares; (2) taxa de reembolso variando entre 30% e 90%, sendo o limite máximo de aproximadamente US$ 40.000; (3) vários medicamentos não são cobertos pelo reembolso; e (4) cerca de 40 milhões de chineses não tem qualquer seguro médico. Nesse sentido, o financiamento coletivo para saúde (MC) avança de maneira vultuosa no país. Uma única plataforma de MC, a Shuidichou, forneceu em 2018 (com sucesso) serviços de captação de recursos para mais de 800 mil pacientes em dificuldades econômicas, arrecadando mais de US$ 1,4 bilhão. Era a largada no país para o crescimento vertiginoso dos “coletivos de doação”, com inúmeras plataformas de MC surgindo, como a Tencent Charity, que só em 2019 captou mais de US$ 700 milhões em recursos.

Não é diferente na Índia, onde as despesas médicas são uma das maiores causas da pobreza, afetando negativamente milhões de vidas a cada ano (os ‘gastos médicos diretos’ do país são considerados um dos mais altos do mundo). Nesse sentido, milhões de indianos estão buscando maneiras acessíveis de financiar seus tratamentos. Por meio do healthcare-crowdfunding, pacientes e suas famílias recebem ajuda financeira para despesas hospitalares, custos cirúrgicos, gastos com tratamentos, dívidas pós-cirurgia, etc., levantando contribuições de poderosos-generosos doadores. Uma única gestora indiana de crowdfunding médico, a Ketto.com, viu na pandemia um aumento de 400% nas arrecadações, hospedando quase 12.500 campanhas de ajuda ao custeio médico, arrecadando US$ 40 milhões (uma única campanha levantou US$ 460.000 para uma criança com atrofia muscular espinhal). O país é um universo de disparidades: segundo o Fórum Econômico Mundial, 50% da população ainda não tem acesso à internet (o que dirá acesso aos seguros de saúde), sendo que 80% da população tem contas bancárias, mas 38% delas são inativas. Uma situação dramática, mas um campo fértil para as plataformas de MC, que são totalmente legalizadas na Índia. A Ketto, por exemplo, cobra em média uma comissão de 5% como taxa de sucesso e um ‘gateway fee’ de 3% sobre o total de fundos arrecadados. Um fato marcante é o apoio maciço do Estado aos projetos indianos de MC: o próprio governo tem uma plataforma para doenças raras.

No Brasil, crowdfunding cresce desde 2017, quando a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) implementou a sua regulação. No final de 2021, já havia 56 plataformas cadastradas na autarquia, o que representa um aumento de 75% se comparado a 2020, com volume de captação crescendo 123% no mesmo período (o valor arrecadado é 22 vezes superior aos valores captados em 2016). A movimentação cresceu de tal forma que incentivou a CVM a flexibilizar a sua regulação em 22 de abril de 2022, com uma nova Resolução (CVM 88) mais flexível substituindo a anterior (dispensa de registro para vários níveis de plataformas eletrônicas de investimento participativo). No modelo donation-based crowdfunding, mais conhecido como “vaquinha virtual”, que continua a funcionar no Brasil com baixa regulação, indivíduos doam pequenas quantias para atender a objetivos filantrópicos, sociais (saúde) ou culturais. Nessa modelagem, as plataformas on-line disponibilizam Campanhas Flexíveis (o criador estabelece uma meta de arrecadação e caso não a alcance fica com o montante arrecadado); e Campanhas Tudo-ou-Nada (o criador só receberá o montante arrecadado se conseguir o valor estabelecido, e se não atingir as contribuições são devolvidas aos investidores). Outros modelos também crescem no país envolvendo direta ou indiretamente o ambiente de saúde, como peer-to-peer lending, rewards-based crowdfunding, ou o consagrado e tradicional equity crowdfunding, quando uma empresa capta recursos em troca de participação. Ao redor de todos esses modelos gravitam milhares de projetos de crowdfunding voltados ao setor médico, sejam de startups promovendo ‘vaquinhas eletrônicas’ (MCs), ou healthtechs captando recursos para novos modelos de seguro-saúde, ou incumbentes atraindo investidores para desenvolvimento de fintechs centradas na cadeia de saúde. 

Mas nem tudo em MC é uma ‘orquestração virtuosa’. O primeiro estudo a investigar o impacto do crowdfunding médico na vida de seus beneficiários (sobreviventes de câncer), foi publicado em fevereiro de 2022 pelo Journal of Cancer Survivorship (“Both a life saver and totally shameful”: young adult cancer survivors’ perceptions of medical crowdfunding”). Ele mostrou que, apesar de imensamente úteis, as campanhas também trazem um rol de “crises de afetos” aos usuários, desenvolvendo níveis incomuns de vergonha, estigma e estresse. Essa tríade, também conhecida como “toxicidade financeira subjetiva”, é capaz de macular por longos períodos os indivíduos que receberam auxílio. O termo foi cunhado pelos médicos Syed Yousuf Zafar e Amy Abernathy, em 2013, e descreve como o ‘sofrimento financeiro’ pode contribuir para piorar os resultados clínicos e reduzir a qualidade de vida dos pacientes com câncer, por exemplo. O processo de MC está atrelado a uma lógica assimétrica: buscar bondade, abnegação, generosidade e beneficência numa sociedade cada vez mais individual, vertical, ensimesmada e, acima de tudo, protetora somente de suas demandas individuais. Há pouca simetria entre a carência sanitária da grande maioria da sociedade com a prodigalidade e renúncia dos segmentos mais abastados. Nesse sentido, é preciso da interferência do Estado, como muitos governos já estão fazendo.

Afinal, seria Medical Crowdfunding um novo modelo de Seguro-Saúde? Estaríamos experimentando um novo arquétipo de mutualismo? Algo que privilegia o acesso do usuário a saúde não só por perfil, classe, mérito ou ganho coletivo, mas também por ganho individual de investidores? Na Índia e outros países que não possuem um sistema público e universal de saúde, o conceito de seguro-de-saúde ainda é estranho as pessoas das classes de baixa e média renda, deixando 75% dos gastos médicos vindo do bolso das famílias. Nesse sentido, o crowdfunding médico vai entrando pelos poros da sociedade e assumindo um espaço na “convicção coletiva”. Mas não só na convicção dos desamparados, mas também dos privilegiados, sendo o Estado um árbitro-garantidor dos ganhos sociais do lado mais fraco, e dos ganhos efetivos do lado mais abonado (prêmio). A plataforma indiana de MC ImpactGuru, criada em 2014, tem como mantra: “Crowdfunding: uma alternativa ao Seguro de Saúde para tratamentos de câncer”. Vai mais longe em sua plataforma: “O seguro de saúde é caro, o que faz com que a maioria das pessoas não possa pagá-lo. Na realidade, as famílias com baixa renda precisam mais de ‘fundos-médicos’ do que de financiamento. É aqui que entra a ideia de crowdfunding, sendo que o único retorno que ele exige é um agradecimento”.

Nos últimos anos, o que mudou no segmento de MC foi a gradação, a escala, seja na arrecadação das doações (não mais individuais, mas coletivas), até no volume das demandas (estudo do American Journal of Medicine descobriu que 42,4% das 9,5 milhões de pessoas diagnosticadas com câncer entre 2000 e 2012 esgotaram todos seus bens em 2 anos). O que estamos assistindo, em verdade, talvez seja uma magnífica evolução do conceito de financiamento coletivo para o conceito de mutualismo articulado. Para essa transição, que muitos podem considerar somente mais uma evolução do seguro-saúde, são necessárias mudanças paradigmáticas e alguma tração do Estado na construção de incentivos fiscais para doadores (ou outros benefícios que atraiam capital). Já existe legislação específica de crowdfunding (regulada pelo Congresso Nacional) até para apoiar candidatos a eleição, porque seria diferente na Saúde. Hoje, quase metade do dinheiro arrecadado em sites de crowdfunding, como GoFundMe e CofundHealth, vai para emergências médicas ou custeio de tratamentos clínicos. Mas não há garantia de que a arrecadação atingirá o valor necessário, sendo que uma captação de recursos bem-sucedida requer uma campanha de convencimento bem planejada, coordenada e não poucas vezes dispendiosa. Sem isso, MC está fadado ao fracasso. Mas como então reduzir o risco do fracasso? Pode haver muitas respostas a essa questão, ou nenhuma, mas uma delas é expandir a atratividade e os benefícios aos doadores-investidores, promovendo, por exemplo, uma malha de incentivos fiscais criativos e inovadores. No Brasil, por exemplo, se adia ad-aeternum a ‘taxação de grandes fortunas’, uma ação necessária, mas coercitiva e inibidora de investimentos (ou incentivadora de corrupção fiscal). Poderia ser substituída, ou emancipada, por regras de transferência de ativos utilizando regulação fiscal que canalize investimentos à modelos de MC em escala, como EUA, Canadá, China e Índia já estão fazendo.  

Há vários projetos no congresso nacional regulando o financiamento coletivo. Todavia, há poucas ‘soluções nacionais acreditáveis’, de curto e médio prazo, que reduzam as carências clínico-sanitárias da população em geral. Tudo é muito tímido, conservador e lento na saúde. Esse é o momento perfeito para inovar e estabelecer novas realidades. Ou seja, até onde a participação, incentivo e regulação do Estado pode confirmar MC como uma rede de apoio formal para não-segurados, ou segurados com cobertura aquém de suas demandas clínicas? Uma rede financiada pelo investimento privado, com aquiescência da generosidade individual e coletiva. Ao invés de MC ser uma rede de segurança médica “ad-hoc”, porque não aumentar a sua completude, abrangência e sustentabilidade? Por que essa malha de segurança social não pode ser um apêndice do SUS? Mais que isso: por que não permitir que a Saúde Suplementar gere modelos de contratos, amparados por regulamentação de crowdfunding, onde “doadores-investidores” tenham lastro de incentivos genuinamente atraentes? Chame do nome que quiser, mas promova políticas públicas de incentivo real ao acesso a saúde. Revolva os problemas, um a um, criando modelos de transferência de ativos daqueles que podem para os que nunca poderão. Não significa deixar de priorizar as questões centrais, como, por exemplo, o incremento do financiamento público à saúde: não confunda o explícito com o crível, ou o axiomático com o plausível. Precisamos de tudo junto e ao mesmo tempo. Precisamos aprender a conviver com mecanismos públicos e privados simultaneamente, cooperadamente, com movimentos audazes, criativos e até inéditos. Inovar não é usar a tecnologia, mas usar a cabeça. Mexa-se. 

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar-Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)