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Pandemia-de-Não-Vacinados: a última geração com vacinação facultativa

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A Covid-19 impulsiona a vacinação compulsória

Se você é um antivaxxer determinado, consciente e bem resolvido, aproveite a elegância e o ‘preciosismo’ do mundo atual, seus dias podem estar contados. Afinal, se imunizar é a solução pandêmica, por que não é uma solução legal? Por que a compulsoriedade vacinal ainda não tem consenso? As respostas são variadas, em geral com explicações éticas, morais e inconclusivas. Todavia, a Covid-19 tem como prática testar nossas certezas pragmáticas, colocando-as em modo-suspeição. Enquanto o debate da obrigatoriedade entra em sua fase realpolitik, assistimos uma nova epidemia: ‘pandemic of the unvaccinated'. Trata-se de um colossal contingente de indivíduos que recusam a vacinação e tornam cada vez difícil se alcançar qualquer coisa parecida com uma imunização coletiva. Embora o centro desse fenômeno esteja hoje nos EUA, não faltam antivaxxers mundo adentro. Por que, afinal, o mundo brinca de ‘esconde-esconde’ com os antivacinas?

Um dos paradoxos de 2021 pode estar na eminência de se confirmar: em alguns meses o percentual de vacinados da Covid-19 no Brasil pode ser superior ao dos EUA. A explicação é provocativa: aparentemente existem mais brasileiros desejosos de vacinar do que norte-americanos. Embora por aqui faltem vacinas (ou elas cheguem de paraquedas), está cada vez mais claro que o desejo majoritário de nossa população é pela vacinação. Já nos EUA, as pesquisas mostram que cerca de ‘um quinto dos americanos’ se recusa a receber a vacina, o que faz a taxa de mortalidade voltar a disparar, aumentando também o número de casos nas últimas semanas. A ‘pandemia-de-não-vacinados’ produziu nos EUA um aumento de quase 70% dos casos na segunda quinzena de julho (quase 30 mil novos infectados por dia). As hospitalizações aumentaram 36% e as mortes pelo vírus voltaram a crescer, revertendo uma tendência de queda que vinha desde janeiro. "Há uma mensagem clara que está chegando para os EUA: estamos diante de uma pandemia de não vacinados", expressou a Dra. Rochelle Walensky, diretora do CDC. "Nossa maior preocupação é continuarmos a ver casos evitáveis, hospitalizações e mortes entre os não vacinados”, completa ela. Jeff Zients, coordenador vacinal da Casa Branca, foi mais claro: “Os americanos não vacinados são virtualmente responsáveis por todas as hospitalizações e mortes recentes por Covid-19, sendo que as mortes que ocorrem agora são ainda mais trágicas porque poderiam ser evitadas".

No longínquo ano de 1853, a Grã-Bretanha aprovou a ‘primeira lei de vacinação obrigatória do mundo’. A partir de três meses de idade todas as crianças deviam ser vacinadas contra a varíola, sendo que o descumprimento resultava em multa ao redor de US$ 200 (em valores atuais). Ao longo do século XX, o arsenal de vacinas se expandiu (difteria, tétano, coqueluche, etc.) e as questões éticas relacionadas à equidade vacinal também se expandiram. Some-se a isso o caráter figurativo-alegórico da palavra “rebanho”, que nos últimos meses passou a designar um “conjunto de pessoas que se deixa levar com facilidade, não revelando ideias ou vontades próprias”. Assim, a dissertada imunidade de rebanho criou o estigma popular de que os ‘arrebanhados só obedecem e não legitimam suas decisões’. Um erro grotesco, com certeza, mas que se dissemina nas redes a uma velocidade dez vezes superior a transmissão viral. O filósofo e economista britânico John Stuart Mill (1806-1873), um dos ‘pais do Utilitarismo, cunhou em seu livro “On Liberty”, há séculos, um contexto que parecia ser definitivo: a única base para o uso da coerção estatal [e restrição de liberdade] é quando um indivíduo corre o risco de prejudicar os outros. O bem de uma pessoa, escreveu Mill, é razão insuficiente. Os antivacina da Covid-19 desafiam o pensador, sem colocar nada proporcional em troca.

O fato é que algumas nações já avançam ‘sutilmente’ para algum tipo de obrigatoriedade, começando, obviamente, pela comunidade de profissionais de saúde. É um primeiro passo, não sem controvérsia ou judicialização, mas que sinaliza ‘novos tempos’ em que o driver utilitarista, centrado na compulsoriedade, tende a se sobrepor ao contrato kantiano (“o homem é um ser racional, existe como fim em si mesmo e não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”). Uma pesquisa desenvolvida na Alemanha (“Attitudes on voluntary and mandatory vaccination against COVID-19: Evidence from Germany”), realizada em junho/julho de 2020 (publicada em maio de 2021), procurou identificar o nível de aceitação de uma política de vacinação obrigatória no país (antes, portanto, de qualquer vacinação em massa no mundo). O resultado mostrou que 70% dos alemães adultos estariam voluntariamente dispostos a vacinação, sempre que o imunizante não tivesse efeitos colaterais. Outro resultado, identificou que 50% dessa população seria a favor de uma política vacinal mandatória e a outra metade contra. Mesmo assim, a chanceler Angela Merkel vem afirmando que por enquanto não pretende tornar a vacinação obrigatória. "Estamos numa fase em que ainda procuramos promover as campanhas de imunização por termos mais vacinas do que pessoas que querem ser vacinadas", declarou ela.

A Itália é outro exemplo: em abril último entrou em vigor uma legislação prevendo que "as pessoas que trabalham em estruturas socio-sanitárias, públicas ou privadas, como farmácias e consultórios médicos, estão obrigadas a se vacinar". Em caso de violação, o infrator pode ser suspenso sem remuneração. Se a lei não afeta toda a população, afeta a cadeia de saúde italiana, que, obviamente, critica a nova legislação: 300 profissionais entraram com ação judicial para anular a obrigação, argumentando: "não se trata de uma batalha no-vax, mas de cunho democrático”. Já na sua vizinhança direta, o Vaticano, a vacina passou a ser obrigatória para todos os habitantes a partir de fevereiro de 2021.

No Reino Unido, o governo tornou obrigatória a vacinação da Covid-19 aos ‘funcionários de lares de idosos e de apoio domiciliar’. A regulação entra em vigor a partir de outubro próximo, com o governo considerando seriamente alargar a medida a todos os funcionários do NHS (Serviço Público de Saúde). Os defensores argumentam que a vacinação contra a Covid-19 não é diferente da vacinação contra a hepatite B, que já é compulsória para alguns profissionais do NHS. Todavia, a controvérsia antiutilitarismo continua. A British Medical Association (BMA) alertou que embora seja desejável que todo o corpo do NHS seja vacinado, "a compulsão é um instrumento contundente que comporta os seus próprios riscos". Perto de 60 mil pessoas assinaram uma petição contra o Governo legislar uma imposição vacinal aos colaboradores do NHS, alegando que “deve ser dado a todos o direito de exercer o livre-arbítrio em relação a qualquer procedimento médico".

Nos EUA não há uma lei federal sobre o tema, mas vários estados e empresas estão impondo a vacinação. A Trinity Health, por exemplo, uma rede católica com 90 hospitais em 22 Estados (30 milhões de usuários), tornou-se um dos primeiros grandes grupos de Saúde do país a decidir em julho pela imunização compulsória. Em abril, mesmo antes da pandemia-de-não-vacinados’ crescer, o hospital Houston Methodist impôs um novo regimento exigindo que seu corpo profissional fosse vacinado (150 deles não o fizeram e foram demitidos). Em junho, a empresa Morgan Stanley foi mais longe: impediu a entrada em seus escritórios de New York de todos funcionários e clientes que não estivessem completamente vacinados. Em São Francisco, California, a prefeitura anunciou em 23 de junho que iria exigir vacinação de seus 35 mil funcionários (incluindo policiais e bombeiros), podendo até demitir aqueles que não se enquadrassem. É utilitarismo na veia. No meio da polêmica, turbinada pela variante Delta, que já representa mais de 80% dos casos no país, tanto o American Medical Colleges como a American Hospital Association se juntaram no coro da vacinação impositiva aos profissionais sanitários.

O governo da Irlanda não excluiu a obrigatoriedade para seus profissionais sanitários, com sua agência se pronunciando: “será um passo mais intrusivo a ser considerado sempre que o risco aos pacientes for sendo elevado devido ao aumento da transmissão comunitária”. Se antecipando a possíveis medidas legais, alguns hospitais da Irlanda já enviaram profissionais para casa (com remuneração integral), evitando que fiquem perto dos pacientes. Na Rússia, Putin se opõe a qualquer compulsoriedade nacional, mas o presidente da Câmara de Moscou decretou em junho que todos os funcionários do setor dos serviços “devem” ser imunizados até 15 de agosto. Na mesma direção, outras cidades, incluindo São Petersburgo, tomaram medidas semelhantes. Não é diferente na Arábia Saudita, onde as autoridades anunciaram em maio que a vacinação será obrigatória a partir de agosto, condicionando-a a permissão de entrada em estabelecimentos governamentais e privados, incluindo escolas, locais de entretenimento e nos transportes públicos.

Na França, em 22 de julho, Gabriel Attal, porta-voz do governo, explicou que a medida não foi descartada. “Com diálogo e educação conseguimos fazer muito, mas o presidente não descarta uma vacinação obrigatória, ainda que seja para convencer os franceses que ainda hesitam”, explicou ele. Para os trabalhadores franceses da saúde, já é fato: Macron determinou em 12 de julho que “todos os profissionais da saúde devem se vacinar até 15 de setembro. Caso contrário, não poderão mais exercer o ofício ou receber remuneração”. O que, obviamente, levou milhares de franceses às ruas de Paris para protestar contra a vacinação coercitiva na comunidade médica.

Um argumento baseado tão somente no princípio do dano não seria sustentável nos dias de hoje, pelo menos é o que pensam aqueles contrários ao consequencialismo utilitarista. De qualquer forma, é difícil imaginar que a pandemia não crave com letras de fogo na consciência majoritária que talvez sejamos a última geração a ter o poder facultativo de vacinar. Na época dos ‘pensadores gregos’, havia o cosmos para comandar nossas intenções. Depois, com o cristianismo, as orientações passaram a ser ‘ordenadas’ pela vontade de Deus. Mas com a modernidade de Descartes (1596-1650), os álibis espirituais foram desaparecendo e o livre-arbítrio foi acumulando poder na mente humana. No fim da quarta metade deste século, talvez seja importante alguma abstração filosófica, ou metafisica, para nos concentrarmos em uma campanha de vacinação da UNICEF, que em sua singeleza talvez seja mais poderosa do que crenças ideológicas: “Quero ser vacinado para conseguir um dia ver uma neta".

 

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar Project
Head Mentor - eHealth Mentor Institute (EMI)