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Remuneração de Fármacos baseada em resultados terapêuticos efetivos

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Outcome-Based Payment ganha espaço nos medicamentos

O termo empatia deriva do grego (empatheia: ‘estar em sentimento’), sendo a “capacidade de se colocar no lugar do outro, tentando agir e pensar como ele, buscando compreender seus afetos para identificar-se com eles”. Quando a África do Sul descobre uma nova variante do Sars-CoV-2, divulga mundialmente e recebe em troca um colossal apartheid das nações civilizadas é sinal de que a Covid-19 tem o poder de reduzir a empatia, potencializar a antipatia e fazer as lideranças globais desprezarem um dos mais óbvios cânones epidemiológicos: “si quieres ser feliz, no pienses demasiado, simplemente vacuna a todas las sociedades que no puedan hacerlo por sí solas”, nas palavras de Vargas Llosa. Se os imunizantes chegam pouco ao continente africano, o que dirá dos medicamentos em geral (um quarto dos doentes do planeta está na África). Com 30 milhões de km² (três vezes a Europa), as dificuldades para analgésicos, antimaláricos, antibióticos e todas as demais moléculas chegarem a um ponto de distribuição africano são brutais, viajando milhares de quilômetros em estradas, portos e aeroportos até alcançar o corpo do paciente (sem falar no tráfico farmacêutico). Mas o maior problema, obviamente, é o preço. A maioria dos países africanos não consegue pagar pelos medicamentos, sendo que um “simples paracetamol custa em geral vinte a trinta vezes o preço internacional” (fonte: “Alerte produit médical n.4 - 2020” – OMS). Infelizmente nosso ‘código postal’ ainda determina quanto tempo vamos viver.

Esse obscurantismo está levando muitas matrizes dos Sistemas de Saúde, consagradas ao longo do século XX, a ganharem entropia, travando um intenso confronto com o “bom-senso-civilizatório”. Todos os dias cresce a discussão sobre acesso a saúde” e sua “iniquidade”. Um debate que pressiona fortemente os mercados (públicos e privados) e incendeia a opinião pública, as vezes com razão, noutras por ignorância, sem esquecer dos incêndios causados por influenciadores setoriais. Trata-se, portanto, de um dilema heroico: como ampliar o acesso numa sociedade capitalista, autocentrada e muitas vezes apática.

Um dos eixos do debate sobre iniquidade na Saúde foca, certamente, a indústria farmacêutica e seus modelos de precificação, que vão da “porta-da-fábrica”, passando pelo atacado até chegar ao varejo. Os fármacos têm preços que seguem diretrizes próprias, carregadas de ciência, prudência e risco. Se analisados somente no contexto vetusto de “como a sociedade pode controlar o preço dos medicamentos?”, a discussão não passa de uma “aporia” (aporetikós), um termo que Platão usava “quando um diálogo sempre terminava sem solução final”, ou seja, quando era impossível obter resposta ou conclusão a uma determinada indagação. O “controle de preços farmacêuticos” continuará a esbarrar nos parâmetros da ‘oferta x demanda’, algo que não cabe maiores discussões num mundo com “7,2 bilhões de pacientes”: quanto maior a porção demandante sem uma oferta proporcional, maior será o ‘ângulo positivo’ da curva de precificação. Ponto final. O Estado pode (e deve) adicionar subsídios a essa equação, mas trata-se de uma política pública que depende cada vez menos dos custos da manufatura.

Todavia, no século XXI, os problemas de health-inequity transcendem a filosofia grega, passando para aquilo que o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) chamou de “anomia”: quando uma sociedade fica confusa em suas regras, sem valores objetivos e sem limites, sendo “incapaz de integrar indivíduos que estão afastados por uma imprecisa consciência coletiva”. Em outras palavras: quando “parece” que não há nada mais o que fazer, aceita-se com resignação não fazer mais nada. Todos os Sistemas de Saúde passaram a experimentar na pandemia esse ‘éter anômico’, onde a ausência de protocolos “justos e equitativos” leva coletivos sociais ao isolamento sistêmico, gerando uma série de crises e até patologias sociais. Passamos a aceitar o inaceitável, chegando a enxergar “africanos como vizinhos inconvenientes”.

Nesse sentido, os stakeholders das cadeias sanitárias, águias que percebem à distância os movimentos entrópicos, já se movimentam para antecipar soluções de acesso antes que as transformações disruptivas convulsionem o jogo. Um dos modelos em ascensão para reduzir custos no setor de saúde é o OBP (Outcome-Based Payment), que remunera o provedor em função da qualidade do produto ou do serviço. Melhor desfecho, melhor remuneração. Essa é uma marcha evolutiva mesmo nos EUA (arquétipo do liberalismo comercial): “em 2019, perto de 61% de todos os pagamentos realizados por prestadores de cuidados de saúde nos EUA foram feitos por arranjos baseados em valor”, explica o report “Alternative payment models (APMs)”, publicado pela HCPLAN (Health Care Payment Learning & Action Network). A Covid-19 só acelerou a marcha, sinalizando ser imperativo adotar uma visão transversal de valor baseado em desempenho”, seja na lide da remuneração médica, nos serviços hospitalares, na comercialização de medicamentos, ou em outras instâncias transacionais dentro da cadeia de saúde.

Não importa a fase dos projetos, a ‘monetização baseada em resultados’ já é uma realidade também no setor farmacêutico. Em novembro de 2021, a Avalere Health, empresa norte-americana especializada em estratégias, políticas e análise de dados em Saúde, publicou um estudo (“Over Half of Health Plans Use Outcomes-Based Contracts”) realizado com 51 Planos de Saúde e Gestoras de Benefícios Farmacêuticos (PBMs) dos EUA, representando uma cobertura de 59 milhões de vidas. A pesquisa indica que 56% das fontes pagadoras já assinaram contratos de OBC (Outcomes-Based Contract), um derivativo do modelo de OBP, voltado ao fornecimento de medicamentos. “OBCs incluem um acordo entre planos de saúde e fabricantes de medicamentos que vincula o reembolso do produto a resultados clínicos de qualidade ou de utilização específica”, explica o estudo. Segundo o trabalho, em 2021 perto de 12% das fontes pagadoras relataram ter atualmente mais de 10 OBCs em vigência, o dobro do número de 2020. As áreas terapêuticas prioritárias são: cardiovascular (79%), endocrinologia (68%), aparelho respiratório (54%) e oncologia (44 %). Vale ressaltar que os OBCs não só viabilizam o pagamento por desempenho terapêutico, como também permitem que o mesmo seja realizado parceladamente, sempre que as métricas de avaliação do paciente careçam de meses ou anos de aferição. O relatório mostra que para avançar com mais efetividade os OBCs precisam de: (1) modelos robustos de governança; (2) regulação clara e transparente; e uma (3) confiança sólida entre todos os players envolvidos.  

Ao mesmo tempo, o Reino Unido (NHS) publicou a Fase 2 de seu projeto piloto para “remuneração de medicamentos contra o câncer baseados em resultados terapêuticos”. O piloto britânico (“Outcome-based payment for cancer drugs”) vincula o preço do medicamento aos resultado que o mesmo oferece aos pacientes do NHS. Iniciado em 2018, trata-se de um trabalho conjunto de várias entidades (Cancer Research UK; RAND Europe; University College London, etc.) objetivando compreender a extensão dos dados necessários (NHS) para um OBP em nível nacional. A Fase 2 (2019-2020) mostrou que a perspectiva em relação aos resultados clínicos é positiva, mas que melhorias ainda são necessárias para identificar a capacidade dos pacientes em retornar às suas atividades normais, como também dados sobre efeitos colaterais de longo prazo. Ou seja, está claro que é viável um modelo de OBP britânico para medicamentos, sendo os próximos passos explorar as possibilidades com as partes interessadas, discutindo parâmetros regulatórios, comerciais e aspectos operacionais.

Governos, empresas e indivíduos estão gastando cada vez mais para manter a saúde (segundo a consultoria EY, só os gastos globais com medicamentos devem aumentar entre 2% e 5% ao ano nos próximos cinco anos). Nesse sentido, um modelo de reembolso alicerçado em resultados permite que parte do desencaixe em fármacos ocorra tão somente se o tratamento for um sucesso ou for capaz de produzir resultados positivos na saúde do paciente. O alvo em OBP é saber se o preço do medicamento está de acordo com os benefícios que ele proporciona, existindo vários modelos de reembolso com base em resultados terapêuticos. Exemplos: (1) compartilhamento de custos: os fabricantes oferecem um desconto total ou parcial às fontes pagadoras nos ciclos iniciais do tratamento (pacientes elegíveis); (2) compartilhamento de riscos: os fabricantes oferecem reembolso parcial aos pacientes que não respondem ao tratamento; (3) taxa de sucesso: o pagamento é devido aos fabricantes apenas para pacientes que respondem positivamente ao tratamento; ou (4) remuneração por resultado: os fabricantes reembolsam totalmente as fontes pagadoras nos casos em que os pacientes que não respondam a medicação. Leia-se em “fabricantes” não só a cadeia de manufatura, como eventualmente todos os demais envolvidos na ‘drugs-supply-chain’. No futuro, os OBPs deverão envolver propostas de reciprocity stimulus, promovendo riscos compartilhados para desenvolvimento de novas medicações, até com o envolvimento dos pacientes.

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos EUA também entrou no debate divulgando em setembro de 2021 um documento (“Comprehensive Plan for Addressing High Drug Prices”) que apresenta várias opções para lidar com os altos preços do setor. Um dos principais vetores da agência é justamente testar os modelos de pagamentos-baseados em-valor’, especificamente no âmbito do Medicare. Nesse sentido, o Center for Medicare and Medicaid Innovation (CMMI) deve criar modelos obrigatórios em pequena escala que ‘vinculem’ os pagamentos dos fármacos a métricas de ‘resultados clínicos consolidados’, explica o projeto.

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A própria indústria farmacêutica está na vanguarda dos projetos de OBP. A Roche, por exemplo, lançou o “Modelo de Reembolso Personalizado” (PRM - Personalized Reimbursement Model) em vários países, objetivando precificar os medicamentos de acordo com os benefícios que eles proporcionam aos pacientes em diferentes indicações. Na França, alguns laboratórios farmacêuticos também são remunerados por determinados tratamentos de acordo com sua eficácia, em contratos assinados diretamente com órgãos públicos franceses. Um medicamento da Celgene, por exemplo, contra mieloma múltiplo (8.900 € ao mês) é eficiente apenas para um terço dos casos. O fármaco da Gilead (contra hepatite C), com custo de 41.000 € por paciente (tratamento de 12 semanas), teria um valor significativo para apenas 30% dos pacientes com HCV. Na Itália, a Agência Italiana de Medicamentos (AIFA) desde 2006 tem experimentado diferentes OBPs (‘contratti di comprovata efficacia clinica’). Um dos modelos implementados refere-se a uma terapia com ‘células CAR-T’ contra a leucemia, da Novartis (“Kymriah”). A novidade está no pagamento: 3 parcelas, sendo a 1ª. na adesão ao programa, a 2ª. durante o tratamento e a 3ª. no quinto ano de sobrevida do paciente. Desde 2019, o mesmo tratamento é aplicado na Alemanha em contrato similar (custo de 32.000 € por paciente), sendo parcelado e dividido entre as Caixas de Seguro Saúde (Betriebskrankenkassen) e a Novartis.

“Os pagamentos parcelados, baseados em resultados efetivos, podem ser uma solução promissora para o acesso a terapias ‘possivelmente’ curativas e de alto custo. No entanto, a sua implementação na Europa, por exemplo, exigirá mudanças organizacionais que superem os desafios enfrentados por fontes pagadoras, fabricantes e provedores de saúde. Pagamentos por desempenho, ‘algoritmizados por dados que advenham da coleta de registros automatizados’, podem aliviar várias barreiras e apoiar o reembolso das terapias”, é o que explica o trabalho “Barriers and Opportunities for Implementation of Outcome-Based Spread Payments”, publicado em 2020 por pesquisadores belgas, sendo uma revisão sistemática de literatura técnica publicada sobre o tema (1.503 publicações selecionadas e 174 incluídas).

O que acontecerá com o os PBMs (Programas de Benefício em Medicamentos)? Como mostra o estudo “Performance-based pharmacy payment models: key components and critical implementation”, publicado em novembro de 2021 no  Journal Medicare Pharmacy, os PBMs poderão se transformar em PBPPMs (Performance-based Pharmacy Payment Models), como já ocorre nos EUA. “Os PBPPMs são viáveis, requerendo o desenvolvimento e implementações que envolvam: (1) ter ou aumentar a transparência e alinhamento das medidas com a estrutura de incentivos; (2) adotar modelos de negócios inovadores; (3) planejar e usar cuidadosamente roteiros que descrevam a aceitação e implementações bem-sucedidas; e (4) fomentar a cultura de qualidade em todos os níveis de atenção à saúde”, explica o estudo.

Mas talvez seja na medicina genética que os modelos OBPs obtenham maior aderência. O número crescente de ‘genetoterapias’ na Europa e nos EUA nos últimos 5 anos mobiliza os agentes do setor a criar mecanismos de reembolso inovadores. A notícia da visão recuperada de um homem completamente cego, parcialmente restaurada por proteínas encontradas nas algas (terapia optogenética), ganhou as manchetes em maio de 2021, mostrando que os avanços nesse segmento estão cada vez mais claros e tangíveis. Uma revisão detalhada do uso dos OBPs nos EUA e Europa, na vertical genética, é apresentada no profundo trabalho publicado em abril de 2021 (“The use of innovative payment mechanisms for gene therapies in Europe and the USA”), onde esquemas de reembolso por desempenho (descritos país a país) mostram poder para alavancar as terapias genéticas rapidamente. “À medida que o fluxo dessas terapias se aproxima do mercado, o mesmo ocorre com a conscientização e o reconhecimento dos esquemas de pagamento baseados em resultados, sendo um mecanismo potencialmente eficaz para reduzir a incerteza dos dados de longo prazo. Este estudo mostra uma tendência crescente na disposição das partes interessadas em considerar e adotar soluções inovadoras de pagamento”, completa o estudo.

Sempre fica uma pergunta: até onde cada um de nós sofre com a exclusão de acesso dos esquecidos, mas pouco faz individualmente para reverter a consciência coletiva? Considerado o “pai da sociologia”, Durkheim se afastou da filosofia e se embrenhou no mundo dos ‘fatos sociais’, onde se sentia mais recompensado. Nem Marx ou Weber pensaram tão bem a ‘arquitetura da ciência social’ como ele. Foi o primeiro professor de sociologia da França, produzindo uma ‘investigação social’ que até então a humanidade desconhecia. Sua monografia “Le suicide: Étude de sociologie”, por exemplo, até hoje é um dos pilares do tema. Mas é de sua obra seminal “Les règles de la méthode sociologique”, publicada em 1895, que Durkheim deixa uma ‘mensagem’ que pode nos ajudar intimamente: “Todo o ambiente social sempre nos parece repleto de forças contrárias, que quase sempre só existem em nossas próprias mentes. São construções individuais e por vezes hostis. Em geral a única coisa que precisamos fazer é ignorá-las e seguir em frente na construção do coletivo”.


Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)