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Vamos vestir ultrassom, ingerir endoscopia e fazer ressonância em casa

Article-Vamos vestir ultrassom, ingerir endoscopia e fazer ressonância em casa

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Novos concorrentes para a Medicina Diagnóstica por Imagem

"O que aconteceria se você tivesse uma antena enrolada no corpo, podendo olhar para um átomo, e depois para outro átomo, e logo depois para outro, indo de um tecido para próximo e, sem nunca invadir o corpo, obter a química de cada órgão", explicou o médico Raymond Vahan Damadian, inventor do “scanner de ressonância magnética”, falecido em 02 de agosto de 2022, aos 86 anos. Em 1977, Damadian foi o primeiro a realizar uma varredura de corpo inteiro de um ser humano para diagnosticar câncer. Muitos cientistas, físicos e lideranças médicas acharam sua ideia absurda na época, mas o voluntarioso Raymond nunca pensou em desistir de seu invento, tendo salvo desde a década de 70 alguns milhões de pacientes. Como explicou o ensaísta Kurt Vonnegut: “Temos que estar continuamente pulando de penhascos e desenvolvendo asas enquanto caímos”.

Em 29 de julho de 2022, um grupo de pesquisadores divulgou na Science o estudo “Bioadhesive ultrasound for long-term continuous imaging of diverse organs”, mostrando algo que pode colocar a indústria de diagnóstico por imagem uma geração à frente: “um adesivo do tamanho de um selo postal colado na pele de um ser humano pode fornecer imagens contínuas de ultrassom, por até 48 horas, aferindo em tempo real alterações nos pulmões, coração e estômago”. Imagine seu celular mostrando não apenas a sua frequência cardíaca, mas uma imagem em tempo real de seu coração enquanto bate. Uma espécie de band-aid com sonar. Sim, de maneira flexível, barata e rápida logo poderemos ver imagens internas de nosso corpo, com médicos tomando decisões baseadas em nanosensores digitais que captam imagens intracorporais.

A ultrassonografia poin-of-care já havia sido um salto gigantesco, capaz de estabelecer parâmetros ultrassonográficos à beira do leito. Agora, não importa se você está num leito de hospital ou fazendo running, ou trabalhando, bebendo com os amigos, ou mesmo descendo uma montanha-russa a 60 km/hora com seus filhos: o adesivo estará em seu braço monitorando ultrassonograficamente seu corpo. Uma equipe chefiada por Xuanhe Zhao, engenheiro do Massachusetts Institute of Technology (MIT), aplicou wearables-adesivos de ultrassom no braço, pescoço, peito e cintura de 15 voluntários, que beberam suco, levantaram pesos, correram e pedalaram no laboratório. Enquanto faziam essas atividades, imagens de ultrassom revelavam alterações no tamanho e forma dos pulmões, diafragma, coração, estômago e principais artérias e veias. Raymond ficaria extasiado.

Ainda faltam estágios para a experiência poder ser empregada pela comunidade médica de forma utilitária, mas o anúncio causou enorme furor e ansiedade. A ultrassonografia é amplamente utilizada para examinar danos, ou para diagnóstico oncológico, rastreamento de bactérias e inúmeros outros benefícios. Todavia, o método requer contato próximo entre o transdutor e a área-alvo, dificultando, por exemplo, a captação de imagens por um longo período de tempo, especialmente se o paciente estiver em movimento. O novo método possui um conjunto de sondas piezoelétricas rígidas ligadas a pele por meio de um elastômero hidrogel transparente (adesivo). Testes (in vivo) mostraram que o dispositivo pode ser usado confortavelmente por 48 horas, conectando o device a uma plataforma de ultrassom disponível comercialmente. O conjunto permite imagens contínuas da artéria carótida, do pulmão e abdome, gerando insights cruciais sobre biologia do desenvolvimento humano. O dispositivo de ultrassom bioadesivo (denominado BAUS - bioadhesive ultrasound) é uma sonda de ultrassom fina e rígida, aderente de forma robusta à pele (antidesidratante), fornecendo imagens de diversos órgãos.  

O BAUS pode ser usado em várias partes do corpo, fornecendo de forma flexível imagens para os hospitais monitorarem pacientes sem exigir que técnicos “segurem sondas de ultrassom”, podendo até dispensar esses profissionais. “Você não precisa de um ultrassonografista treinado, e não precisa de uma enorme máquina de ultrassom, podendo implantá-lo em comunidades de recursos muito baixos”, diz Philip Tan, da University of Texas (Austin). A longo prazo, esses adesivos podem ajudar a monitorar os pulmões de pacientes em casa, observando doenças cardiovasculares, ou rastreado um tumor cancerígeno em crescimento, ou até mesmo fornecendo monitoramento contínuo de um feto se desenvolvendo no útero. Embora essas ondas de ultrassom sejam de baixa potência, sem riscos conhecidos, a equipe diz que estudará quaisquer efeitos colaterais potenciais a exposição prolongada. O objetivo dos pesquisadores é ter o BAUS (que tem cerca de 3 milímetros de espessura) sendo vendidos em farmácias, captado pelo smartphone do usuário, que teria as imagens mostradas em 3D.

“Coloque um adesivo sobre o coração da pessoa e as imagens que são captadas podem ajudar a prever ataques cardíacos e coágulos sanguíneos potenciais, meses antes do desastre”, explica Aparna Singh, engenheira biomédica da Columbia University. “Colado em um paciente com COVID-19, por exemplo, o BAUS poderia detectar de maneira simples problemas pulmonares à medida que eles se desenvolvem”, completa ela. Ainda é cedo para custos, mas as projeções mostram que o device poderia custar por volta de US$ 100, sendo barateado à medida que a tecnologia fosse sendo desenvolvida. Que orgulho da medicina teria Raymond!

Na mesma direção, crescem as perspectivas da endoscopia por ingestão”, uma técnica não invasiva que utiliza uma cápsula endoscópica que permite o exame completo do trato gastrointestinal. Com uso descartável, sem fio e conhecida como cápsula de vídeo’, o device está equipado com fonte de luz, transmissor, bateria e câmera. Ela captura as imagens no intestino delgado, estômago e esôfago, que são usadas para diagnosticar doenças gastrointestinais. O mercado global de sistemas de cápsulas endoscópicas vem se expandindo em ritmo acelerado devido à (1) crescente demanda pelo procedimento que usa técnicas minimamente invasivas; (2) a sensível melhoria tecnológica; (3) o crescimento da população geriátrica e (4) o aumento da prevalência de câncer em todo o mundo.

Um exemplo da concorrência que a indústria de Medicina por Imagem vai enfrentar pode ser visto no NHS. O teste ScotCap, uma endoscopia de cápsula do cólon, está sendo introduzido nos conselhos de saúde do NHS da Escócia, sendo usado como uma alternativa à colonoscopia. O médico decide se é apropriado para o paciente, dependendo de seus sintomas e de quaisquer testes anteriores. A “endoscopia de cápsula do cólon” é um procedimento indolor que com uma câmera examina o intestino grosso (cólon), que normalmente é verificado pela colonoscopia. O ScotCap Test é uma cápsula ingerível contendo 2 câmeras minúsculas que coletam fotos do revestimento intestinal em busca de quaisquer problemas ou sinais de doença. O teste pode ser feito em qualquer clínica, sendo que brevemente poderá ser realizado em farmácias, onde o paciente comparece para testagem (duração de 30 minutos), sendo que não há efeitos que o impeçam até de dirigir. A enfermeira (ou um profissional minimamente treinado) lhe fornece um cinto especial e um receptor, que o paciente usa por baixo de suas roupas. Recebe também a cápsula, que ingere e volta para casa. O cinto-receptor passa imediatamente a capturar imagens do seu intestino (enviadas wireless), sendo que em casa o teste dura em média 6 horas. O paciente é solicitado a eventualmente tomar algum laxante, que atua como “reforço” para ajudar a movimentação da cápsula pelo intestino, sendo descartada com segurança no vaso sanitário. Um sinal de alerta no cinto informa que o teste está encerrado, com o paciente podendo retirá-lo e voltar a sua vida normal.

É verdade que as digital-pills (biossensores ingeríveis) já estiveram mais em evidência, basta lembrar as “pílulas inteligentes” da Proteus Digital Health, um empresa avaliada em 2001 por US$ 1,5 bilhão, mas que entrou em falência em 2020. Se a gestação da pílula foi a fórceps, sua tecnologia nunca deixou de avançar. Hoje, inúmeros projetos ganham corpo, enquanto pesquisas e estudos crescem em ritmo acelerado avaliando a dimensão desse mercado. O trabalho “Noninvasive assessment of gut function using transcriptional recording sentinel cells”, por exemplo, publicado na Science em maio/2021, mostra que a medição não invasiva do trato intestinal (testada em animais) é um caminho sem volta.

Não menos animador, são os recentes equipamentos de Ressonância Magnética (MRI) menores, portáteis e capazes de operar fora do ambiente hospitalar ou das instalações dos labs de diagnósticos por imagem. O Hyperfine Swoop Portable MR Imaging System, por exemplo, é uma unidade de MRI portátil que usa inteligência artificial (IA) para converter os sinais em imagens detalhadas do cérebro. O uso de IA permite coletar imagens com sinais mais fracos, utilizando um ímã menor e um campo magnético reduzido, possibilitando que a RM seja capaz de se deslocar até a cabeceira do leito. O Swoop Portable MR é o primeiro dispositivo do tipo aprovado pela FDA, já sendo utilizado por várias unidades hospitalares, como UC Davis Medical Center (Califórnia) e o MHealth Fairview University of Minnesota Medical Center, que o testa desde 2021. “A tecnologia de ressonância magnética portátil não apenas melhorará a pontualidade e o acesso à neuroimagem dos pacientes graves, mas também melhorará a sua segurança, já que quase 40% deles tem lesão cerebral e apresentam complicações durante o transporte, incluindo a utilização de um scanner de MRI fixo”, diz Matthew Bobinski, chefe da Divisão de Neurorradiologia do UC Davis Medical Center. Um equipamento de MRI fixo chega a pesar 4 toneladas, podendo custar mais de US$ 4 milhões, sendo que o portátil custa por volta de US$ 600 mil. Em resumo: ao invés do paciente se deslocar até uma máquina de MRI, ela se desloca até ele. Lá está Raymond pulando de entusiasmo!

Scanners de ressonância magnética são a ferramenta de diagnóstico mais valiosa para avaliar lesões e distúrbios cerebrais. No entanto, cerca de dois terços das pessoas em todo o mundo não têm acesso à essa tecnologia, sendo que mais de 90% dessas máquinas estão localizadas em países de alta renda. Ao contrário da eletroencefalografia (EEG) ou de uma espectroscopia (fNIRS), que podem ser realizadas dentro de um consultório médico, ou na casa do paciente, a RM continua refém do hospital ou de um “ambiente laboratorial de serviços de imagem”. Todavia, isso está mudando. O estudo “Residential MRI: Development of A Mobile Anywhere-Everywhere MRI Lab”, publicado em novembro de 2021 por pesquisadores da Fundação Bill & Melinda Gates, mostra o desenvolvimento e implantação de um laboratório móvel de imagem, alocado numa ‘van de carga’ (modificada), que incorpora um RMI permanente e de baixo campo magnético. O transporte permite, pela primeira vez, uma ‘RM-residencial’ rápida, rotineira e que rompe com as barreiras tradicionais de acesso, podendo inclusive usar o portátil Swoop MR Imaging System para realizar o exame. Inúmeros outros projetos caminham nessa direção: equipamentos seguros de RM capazes de coletar imagens em qualquer lugar, como “ao pé da residência” do paciente, ou mesmo em escolas, parques e demais logradouros públicos. Desde janeiro de 2022 uma equipe da Medical University of South Carolina (MUSC) testa a RM-portátil da Hyperfine para exames de pacientes com AVC enquanto são transportados por ambulância. Trata-se, portanto, de um avanço também logístico, que com a estrutura 5G permitirá um grande salto no número de aplicativos, sensores, biossensores, nanodevices, capsulas inteligentes, IoMT, etc., capazes de prover exames remotos turbinados por inteligência artificial.

Mas os avanços descritos acima são só o começo, principalmente no campo da saúde mental. De acordo com a OMS, uma em cada quatro pessoas sofre atualmente de distúrbios mentais ou neurológicos. À medida que essa tendência aumenta, cresce também a pesquisa sobre a parte mais complexa de nosso corpo: o cérebro. Pesquisadores da Quantum Technology Hub Sensors and Timing (Reino Unido), liderados pelo College of Birmingham, se uniram à Magnetic Shields para criar a empresa Cerca Magnetics. O sistema Cerca é uma técnica de “neuroimagem funcional baseada em tecnologia quântica”. Ele permite que a equipe de pesquisa faça inferências diretas sobre a atividade elétrica dos neurônios, provendo aos neurocientistas um melhor entendimento do funcionamento cerebral (estrutura e função). Usando uma tecnologia denominada MEG (magnetoencefalografia), os pesquisadores podem medir campos magnéticos gerados por correntes elétricas no cérebro, sendo a pesquisa quântica em magnetometria uma das mais importantes para a área de saúde. Para medir campos magnéticos muito pequenos, o Cerca conta com sensores OPM (magnetômetros bombeados opticamente) que exploram as propriedades quânticas dos átomos alcalinos. Assim, o sistema pode criar imagens que mostram “mudanças na atividade cerebral de um momento para o outro”. Comparado as técnicas de imagem estrutural, como ressonância magnética, raio-X ou tomografia computadorizada, o sistema OPM-MEG fornece uma avaliação direta e objetiva da função cerebral com precisão temporal de milissegundos e precisão espacial milimétrica. O “sistema de imagem cerebral vestível” é usado pelo paciente como um capacete, permitindo que ele se mova livremente durante a varredura. Foi implantado no Hospital for Sick Children, em Toronto, para pesquisas sobre autismo e outros diagnósticos. Esse é um dos drivers que a “medicina diagnóstica por imagem” percorrerá: ‘vestíveis baseados em sensores “quânticos” que usam as propriedades fundamentais dos átomos para detectar campos magnéticos locais’. Esses sensores não requerem resfriamento criogênico, são extremamente pequenos e leves, podendo ser montados (como um “lego”) no capacete que o paciente usa.  

A nanociência será um dos desafios que o setor de Medicina Diagnóstica por Imagem passará a enfrentar nos próximos anos, principalmente em países com alta iniquidade, desigualdade e insuficiência de acesso a saúde. Não está claro ainda quem vai liderar essa corrida dentro do mercado de ‘imagens médicas’, produzido por “devices com nano sensores” que podem ser vestíveis, ingeríveis ou implantáveis. As apostas sobre as “locomotivas” que vão liderar esse setor vão desde a própria indústria farmacêutica (a Otsuka Pharmaceuticals é responsável pelo Abilify MyCite, um biossensor ingerível para transtornos mentais); ou a indústria de tecnologia médica (em novembro de 2021, a FDA liberou a PillCam SB3, da Medtronic, uma ingestible-digital-camera para diagnóstico remoto residencial), passando pelo setor de serviços de diagnósticos de imagiologia médica e chegando até os grandes bigtech-players (em julho de 2022 a Amazon adquiriu por US$ 3,4 bilhões a One Medical, uma empresa norte-americana de serviços de saúde centrados no primary care).

Uma “nova partitura” está chegando às cadeias de saúde, onde as capsulas/adesivos vão endurecer o jogo com os grandes provedores de equipamentos de imagem médica. Raymond Vahan Damadian (1936-2022) achava excitante os avanços na tecnologia de imagem. Quando em 2018 recebeu uma premiação em Londres pela profundidade e amplitude de suas realizações, o professor Donlin Long, ex-presidente de neurocirurgia da Universidade Johns Hopkins, explicou: “Se a descoberta da penicilina foi a mais importante da medicina na primeira metade do século 20, a descoberta da ressonância magnética foi a mais importante na segunda metade do século, criando o modelo de diagnóstico mais importante da história de toda a medicina”. Exageros a parte, Raymond certamente é uma inspiração para os iniciantes, esses healthtechs que se movem freneticamente pelas garagens e laboratórios do século XXI, instigando a medicina a ser amanhã mais do que foi ontem, e muito mais do que é hoje...

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)