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A COVID-19 me fez refletir sobre potencial desvantagem do modelo hospitalista

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A questão não é nova: envolve familiaridade com o médico responsável principal enquanto no hospital. Sequer é exclusiva do modelo hospitalista. No Brasil, já acontece a ausência de familiaridade com outros modelos de assistência, como nos casos de equipes que assumem somente o cuidado hospitalar, mas organizam-se sem horizontalidade alguma e com seus membros passando pela enfermaria na tradicional correria, sem “criar raízes”. Relembre como funciona a verdadeira Medicina Hospitalista aqui.

Em termos gerais, pacientes nos EUA aceitam perder em familiaridade e ganhar em disponibilidade:

boas evidências disso e, do ponto de vista da complexidade de um hospital moderno e dos movimentos da qualidade e segurança do paciente, faz todo sentido. Ocorre que, para tal, são imperativas algumas competências e habilidades não-técnicas para hospitalistas, entre elas comunicação e decisão compartilhada. São fundamentais ainda empatia e humildade. Precisarão ser capazes de ajustar nortes científicos a valores e preferências individuais de pacientes que não infrequentemente começam o acompanhamento como absolutos estranhos. Estas características devem antagonizar o comum cacoete do médico brasileiro de atuar em modelo de relação com o paciente paternalista ou sacerdotal:

Fonte: Goldim JR, Francisconi CF

Segundo Adriana Campos e Daniela de Oliveira (leia na fonte aqui):

“o termo paternalismo tem origem latina, sendo derivado do substantivo pater (ou seja, pai), remetendo-se ao modelo patriarcal de organização familiar, onde o pai exerce sua autoridade sobre todos os membros da família, em especial, no tratamento dado aos filhos. Desde a tradição médica hipocrática, verifica-se que essa também é uma atitude própria dos médicos. Segundo os fundamentos hipocráticos, o profissional deveria indicar e aplicar o tratamento ao paciente com base na sua exclusiva opinião e experiência, fundamentando sua conduta no princípio da beneficência. O paciente, em contrapartida, assumiria uma atitude passiva diante das decisões tomadas pelo médico, cabendo-lhe apenas a obrigação de cumprir as determinações daquele profissional. É por essa razão que o paternalismo pode ser entendido como a conduta médica que desconsidera intencionalmente a autonomia e/ou o consentimento do paciente, justificando tal ação pela intenção de proporcionar um benefício, ou ainda, evitar um dano ou risco à saúde do paciente”.

Ocorre que isso perde completamente o sentido em contexto envolvendo ações bem-intencionadas com grau de incerteza acima da média e potenciais consequências negativas não intencionais. O médico, ou um ecossistema moral qualquer, não teria o direito de impor crenças e apostas a outros sem a devida permissão. E a atual pandemia é precisamente um mar de incertezas acima da média!

Incerteza existe mesmo nas “melhores vias”, como tantas vezes já explicou meu amigo Luis Correia em seu blog Medicina Baseada em Evidências. Podemos escolher uma para um destino qualquer, cujo tráfego seja usualmente muito melhor do que nas demais. No entanto, na ocasião pode ocorrer um acidente lá, tornando aquele caminho o pior naquele momento. Então, garantias não existem nem nos “melhores caminhos”. Mas é justo que uma incerteza acima da média (que do ponto de vista prático, em algum momento da conversa, deveria tirar da boca do profissional um humilde “no fundo, não sabemos”) seja muito bem explicada e discutida, principalmente quando envolve qualquer risco, mesmo que pequeno.

A COVID-19 traz consigo incertezas sob formas e apresentações poucas vezes experimentadas na história da medicina moderna: uma mistura de quantidade e profundidade incomuns, imediatamente fragmentadas em contexto da primeira pandemia da era das redes sociais e dos aplicativos multiplataformas de mensagens instantâneas, quando não distorcidas (Fake News tradicionais ou científicas). Em 2009, quando aconteceu a do H1N1, os smartphones já existiam, mas não tinham o alcance que têm hoje. A empresa WhatsApp foi fundada naquele mesmo ano na Califórnia, e o aplicativo era exclusivo para iPhones. Agora, estou sentindo, mais do que nunca, falta do médico “porta-voz” do paciente, conhecedor de sua história, de seus valores e de suas preferências.

Observo com inquietude e preocupação as tradicionais discussões médicas em época de COVID-19, como pontos e contrapontos sobre controversas legítimas, e suas, até então, sempre óbvias consequências, muito comumente questionáveis. São elas protocolos simploriamente amparados nas opiniões que prevalecem, em meio a hierarquias não necessariamente técnicas, pressões, conflitos e vieses cognitivos diversos. Quando deveriam focar no que gera pouca controversa e mesmo assim deixamos de aplicar nos hospitais: publicação clássica avaliando qualidade do cuidado prestado nos EUA encontrou emprego uniforme de conhecimento consagrado em apenas metade das oportunidades. Ou a ausência completa de qualquer encaminhamento paciente-centrado. É quando médicos comumente travam em ponto onde perdem o foco e passam a estigmatizar os colegas com visão oposta: “céticos demais”, “científicos de menos”; “preciosistas demais”, imprecisos demais”. A célebre frase de Carl Sagan é sempre dita pelos do primeiro grupo: “ausência de evidência não é evidência de ausência”. Os do segundo respondem com “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias” - também de Carl Sagan. E então passam a discutir o que é ou não é alegação extraordinária, utilizando-se de seus valores e de suas preferências pessoais, em círculos que se embaraçam improdutivamente. E, os pacientes, na ponta, seguem sem a solução para o impasse que existe, mas não está nele próprio: está no envolvimento daqueles com a pele em jogo ou seus representantes legítimos.

Ambos os grupos acima estão potencialmente certos. Ou errados. Irrefutável é a existência de um ecossistema onde evidências existem para quase tudo, devendo médicos-cientistas discutir veracidade, relevância e aplicabilidade, não a pura e simples existência. Irrefutável ainda que ensaios clínicos randomizados representam o único desenho de estudo que pode ser considerado confirmatório para testar efeito de intervenções muito específicas, como medicamentos. E que não possuímos e não possuiremos esse tipo de avaliação de alta qualidade para tudo ou todo momento. Faz-se o quê, então?

Mais fácil começar respondendo o que não fazer. Inadequado estaria tanto o profissional com rigor científico que não escuta a vontade daquele seu paciente que, bem informado, deseja percorrer rotas alternativas, contrariando evidências de elevadíssima qualidade apontando o “melhor caminho”, quanto o que tira conclusões de zonas cinza - por mais requintadas ou elaboradas que sejam - e não compartilha desconfortante verdade com quem estará com a pele em jogo: a da incerteza em grau acima da média.

E é o que ocorre atualmente com quase tudo que tem saído na mídia sobre tratamento do coronavírus. É o caso, por exemplo, da anticoagulação terapêutica liberal nos pacientes com a COVID-19. Publicação do Instituto para Práticas Seguras no Uso dos Medicamentos, de 2012, trouxe anticoagulantes “entre as ameaças mais significantes para a saúde resultantes de atividade humana. Servem-me apenas hospitalistas que digam: “o benefício é incerto, e existem os riscos”. Não havendo um ecossistema que favoreça isso, despeitou em mim vontade de, caso adoeça, levar meu médico de confiança para dentro do hospital.

Fazer ou não fazer sem evidências de alta qualidade não deve ser foco de quebra de braços entre médicos - é a hora da ativação de pacientes e familiares. As exceções se encaixariam no “paradigma do paraquedas”, não aplicável para muitas coisas que dizem ser, e verdadeira falta de tempo para diálogos (que deveriam ocorrer a posteriori então).

Adiante então, se é vontade fruto de decisão compartilhada! Apenas não o façamos, médicos, como um pai atucanado para sair e chegar ao seu destino final, e que descobre somente no estacionamento da escola que deixou o filho em casa. Porque pacientes não são filhos - chega de paternalismo! O começo é estarem a bordo. Têm direito ainda de querer dirigir. Ou de delegar a representação ao próprio médico, que, de “enfraquecido” (um medo comum em novos modelos de relação médico-paciente), estará mais fortalecido do que nunca.