faz parte da divisão Informa Markets da Informa PLC

Este site é operado por uma empresa ou empresas de propriedade da Informa PLC e todos os direitos autorais residem com eles. A sede da Informa PLC é 5 Howick Place, Londres SW1P 1WG. Registrado na Inglaterra e no País de Gales. Número 8860726.

“Geração-Sanduíche”: salvando pais-idosos e filhos-jovens na Covid-19

Article-“Geração-Sanduíche”: salvando pais-idosos e filhos-jovens na Covid-19

SandwichGenerationIllustration_Web.jpg
Os ‘cuidadores-sanduíche’ enfrentando a pandemia

Você luta diariamente no planejamento de sua aposentadoria, trabalha insanamente e ao mesmo tempo cuida de seus filhos em idade escolar e ainda dá assistência financeira e emocional aos pais idosos? Ok, seja bem-vindo a “Geração-Sanduíche”, é uma honra! Assumir a responsabilidade social, emocional e econômica de três gerações é um notável atributo de um ‘cuidador-sanduíche’. Essa crescente legião de ‘ensanduichados’ de meia-idade apoiam a geração de pais ou avós idosos ao mesmo tempo em que cuidam da geração dos filhos estudantes. Quase sempre sobra pouco espaço para suas realizações pessoais, embora para muitos ‘sanduíches’ cuidar “dos seus” é um júbilo incomparável. Eles estão contribuindo decisivamente para reduzir a desamparo na pandemia. Mas seu esforço cobra um preço colossal. A esmagadora pressão da Covid-19 inflou a carga dessa geração (entre 45 e 65 anos), levando milhões de indivíduos (talvez bilhões), especialmente jovens adultos, a voltar a residir e depender de seus parentes.

Nos EUA, em média, 7 em cada 10 pessoas estão agora cuidando de seus filhos e idosos com seus próprios orçamentos (27% estão trabalhando mais horas para obter os recursos extras). De acordo com recente pesquisa (“Caregiving and COVID-19”) da New York Life (terceira maior companhia de seguros de vida dos EUA) cerca de 3 em cada 10 adultos norte-americanos têm um filho menor de 18 anos em casa, sendo que a mulher-sanduíche  (64%) arca com a maior parte desse ‘fardo’. Em outras palavras, a proporção de jovens norte-americanos entre 18 a 29 anos que vivem com seus pais passou a ser maioria, algo que não se via desde a Grande Depressão (“efeito boomerang”). Em julho de 2020, 52% dos jovens adultos nos EUA moravam com um ou ambos os pais, contra 47% em fevereiro do mesmo ano (fonte: Pew Research Center).

No Brasil, que já estava em crise econômica antes da epidemia, muitos millennials nem sequer saíram da residência familiar. Chamada por aqui de “Geração Canguru”, ela abrange indivíduos que dividem o teto com familiares mais velhos, mesmo quando têm emprego ou desenvolvem seus próprios ‘bicos’ e micro negócios. Segundo o IBGE (2015), 1 em cada 4 pessoas de 25 a 34 anos está nessa situação, sendo que a maioria dos “cangurus” é composta por homens (60%). Nem é uma questão de escolaridade: cerca de 35% dos jovens adultos brasileiros que residem na casa paterna têm ao menos ensino superior completo (até 2018, 25% dos jovens brasileiros entre 25 e 34 anos não tinha planos de sair da casa dos pais). A pandemia piorou o quadro, trazendo mais filhos de volta (ou não os ‘deixando’ sair), mas também incorporando os idosos ao “seio domiciliar estendido” (pais, avós, sogros, etc.). Ainda que não residam no mesmo teto, os idosos passaram a ser mais dependentes dos sanduíches. Assim, a Covid-19 tornou-se também um evento de magnitude transgeracional, impactando as tendências sociais, previdenciárias e os novos comportamentos e hábitos de cada país ou região. Em 2020, os sanduíches nacionais passaram a fazer mais malabarismos para cuidar da família e da vida profissional. Um dos fatores para o crescimento dessa geração já estava no radar da teia social pré-pandemia: mudança demográfica (aumento da expectativa de vida), com pais envelhecendo mais tarde, filhos também chegando mais tarde e mulheres ingressando na força de trabalho. Sem falar na carestia nacional, que tende a juntar todos no mesmo teto. Uma das características dos ‘sanduíches-brasileiros’ é a sua invisibilidade: aparecem pouco nas pesquisas, não estão nos jornais, não tem apoio do Estado (portanto, reivindicam pouco), estão ocultos nas áreas mais pobres do país, nas instâncias amazônicas, nos paralelos de pobreza do Nordeste, escondidos e dissimulados nas periferias das metrópoles do Sudeste, sendo, enfim, fantasmas cuidando de idosos e estudantes com a tenacidade de alguém que luta para manter os anéis, em geral familiares.

Um excelente artigo publicado em janeiro/2021 na BBC (“Why the sandwich generation' is so stressed out”) mostra o vazio existencial dos ‘cuidadores-sanduíche’, que nada mais são do que baby-boomers de meia-idade fazendo equilibrismo para cuidar das duas gerações, além da sua própria. Desde a última década, é crescente o número de pessoas em risco de cuidar simultaneamente de filhos e pais. Essa “geração-imprensada” tem sido estudada cada vez mais no Ocidente. Há extensa literatura sobre os cuidados prestados por filhos adultos a seus pais idosos e o impacto dessa atenção na sua própria vida. Desde a década de 1980, quando a 'geração-sanduíche' foi estudada pela primeira vez por Dorothy A. Miller, professora da University of Kentucky, em seu trabalho “The ‘sandwich’ generation: adult children of the aging” (1981), ficou clara as dimensões do problema, mostrando, principalmente, que a carga maior estava se concentrando nas mulheres, que portavam o estigma de “cuidador-natural”. Somente em 2013 começaram a surgir estudos inserindo os homens nessa instância cuidadora, como no excelente trabalho da Dra. Esther M. Friedman (“New Estimates of the Sandwich Generation in the Income Dynamics”). Na realidade, a partir do final do século XX muitos sociólogos, antropólogos e pesquisadores passaram a notar que havia um desbalanceamento orgânico dentro das famílias, cuja dependência das pontas geracionais impactava a estabilidade familiar. A Covid-19 veio como um raio nesse contexto, criando uma inimaginável pressão sobre os cuidadores-sanduíche que se viram “sequestrados” em sua autonomia, tendo que se multiplicar para atender aos pais e filhos vivos. Isso se alastrou ao redor do mundo, como explica o texto da BBC“Nas Filipinas, as ‘mulheres-sanduíche’ tendem a ter entre 30 e 35 anos, na Inglaterra e País de Gales estão entre 45 e 54 anos e no Canadá entre os 45 e 64 anos”. No Reino Unido, cerca de 3% da população está cuidando de mais de uma geração, seja na mesma casa ou em locais diferentes, com 1/3 dos indivíduos com 55 anos 'imprensado' entre pais/sogros e seus netos. No Canadá, perto de 1/5 dos profissionais estão trabalhando e cuidando de seus filhos, tendo adicionado um membro mais velho a sua ‘trincheira’. Não importa o país, o que salta aos olhos é que a Covid-19 está fazendo a geração-sanduíche enfrentar cada vez mais estressores financeiros e novas demandas socioemocionais, criando um overload de proporções descomunais.

Mas eles são aguerridos e nem tudo é negativo, como explica a Dra. Athina Vlachantoni, gerontologista da University of Southampton e estudiosa dos efeitos geracionais sobre as famílias: “estar inserido em responsabilidades multigeracionais também traz benefícios. Em particular, avós saudáveis ​​podem ser um grande benefício para os pais que trabalham. O papel dos avós aumentou significativamente nos últimos 15 anos. Pais mais velhos podem, por exemplo, facilitar as mulheres mais jovens a se manter no mercado de trabalho”. Vlachantoni também analisou a ‘geração-sanduíche’ da China, em seu estudo “Informal care provision across multiple generations in China”, publicado pela Cambridge University em 2019. As conclusões não foram muitos díspares: 1/3 dos indivíduos chineses de meia-idade (45-64) estão espremidos entre pais/sogros mais velhos e netos mais novos, com 15% dos sanduíches-chineses prestando cuidados há duas gerações simultaneamente (60% deles cuidam de netos em idade tenra). O certo é que tanto no Oriente como no Ocidente o número de cuidadores-sanduíche está aumentando sobremaneira. Sem falar no “sanduíche-duplo”, quando pessoas na casa dos 60 anos ajudam a cuidar também dos netos (ler: “A Double-Sandwich in a Four-generation Family”, notável estudo da israelense Shlomit Manor, publicado em maio de 2020).

Seria irreal não salientar que depois dos profissionais de saúde, são os ‘sanduíches’ que fazem a diferença nos tempos pandêmicos. Embora dominados pela insegurança do futuro, são eles que reduzem as comoções e “convocam o seu entorno para suportar o próximo dia”. Mesmo com evidências mostrando que a geração-sanduíche sofre um retrator impacto profissional, podendo até afetar indiretamente a empregabilidade de seus filhos adultos (ler estudo “The dynamics of social care and employment in mid-life”, também da Dra. Vlachantoni) é ela que está altruisticamente sustentando mais indivíduos desassistidos. Sem o seu esforço a sociedade global estaria ainda mais vulnerável.

Os ‘sanduíches’ lutam e sobrevivem da mesma forma como as árvores. Como explica a pesquisadora Suzanne Simard (University of British Columbia): “nas florestas, os recursos tendem a fluir das árvores maiores e mais antigas para as mais novas e menores; os sinais de alarme químico gerados por uma árvore, prepara as mais próximas para o perigo; o DNA na ponta das raízes mostra a existência de condutos subterrâneos que ligam quase todas as árvores da floresta, mesmo as de espécies diferentes; se uma árvore está à beira da morte, ela deixa uma parte substancial de seu carbono para seus vizinhos”. Como na floresta, o ‘sanduíche-raiz’ mostra que elementos solitários competindo individualmente por espaço e recursos não resistem aos desastres. Mostra também que quando conectados e integrados os ‘sanduíches’ formam uma parceria simbiótica que pode ‘tricotar’ qualquer solo pandêmico.

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor