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Sinistralidade: recuperados da Covid-19 serão o grande desafio

Article-Sinistralidade: recuperados da Covid-19 serão o grande desafio

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Sequelas da pandemia desafiam toda a Cadeia de Saúde

A primeira referência histórica a ‘números negativos’ apareceu em um livro chinês da Dinastia Han, 200 a.C. (“The Nine Chapters on the Mathematical Art”). Demorou a ser entendido no Ocidente. Em 1758, o grande matemático britânico Francis Maseres afirmou: “o número negativo escurece toda doutrina das equações e obscurece as coisas que são por natureza óbvias e simples". Somente no século 19 os matemáticos começaram a perceber que os ‘negativos’ realmente existiam e podiam ser calculados. Na pandemia, é simples calcular o saldo dos pacientes recuperados: basta extrair do total de contaminados o número de óbitos. Parece óbvio, mas a Covid-19 está mostrando que a “recuperação” pode ser algo bem mais complexo do que imaginamos. De maneira geral, podemos separar os recuperados em três biotipos básicos: os recuperados-positivos (curados e sem sequelas), os medianamente-recuperados (curados, mas com sequelas circunstanciais e de baixa intensidade), e os recuperados-negativos, aqueles que saíram do quadro patológico, mas mantém sequelas, podendo levar meses, anos ou a vida toda em “processo de recuperação”. Na ciência exata da Economia da Saúde, os recuperados podem também “obscurecer a doutrina das equações”.

Os recuperados-negativos, que nos EUA o CDC (Centers for Disease and Control and Prevention) chama de recovered-long-tail (recuperados de cauda longa), são os que desenvolveram sintomas recorrentes da Covid-19, podendo significar sequelas crônicas da doença. Essa categoria talvez seja o maior desafio dos mecanismos de gestão da sinistralidade dos sistemas de saúde nos próximos anos. Pessoas adoeceram em março de 2020 (até com sintomas leves) e em março de 2021 continuam a manifestar sintomas, como fadiga, perda do olfato, ansiedade, etc., podendo as manifestações regredir completamente e voltar meses depois. Como explica a Dra. Natalie Lambert, professora e pesquisadora da Indiana University School of Medicine“para alguns long-haulers [aqueles que transportam por longas distancias], os sintomas nunca desaparecem. Alguns se sentem completamente recuperados e depois têm uma recaída. Para muitos deles, os sintomas vêm e vão, e então surgem novos sintomas. É uma incerteza constante”. As incógnitas também têm cauda-longa e são inúmeras, incluindo os fatores de infecciosidade e transmissão. Tudo está em pesquisa e estudo, com poucas regras básicas de evitabilidade, o que deixa a Cadeia de Saúde vulnerável e sem respostas profiláticas. Pesquisadores chineses, por exemplo, descobriram que 76% de 1.733 pacientes pesquisados tinham pelo menos um sintoma da SARS-CoV-2 seis meses após ultrapassar a fase aguda, como relatado na The Lancet em janeiro deste ano (“6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study”). No geral, o estudo revela que 63% relataram fadiga ou fraqueza muscular; 26% tiveram dificuldades para respirar; 26% relataram problemas de sono; e 22% revelaram ansiedade ou depressão.

Segundo análise do reputado portal Arquitetos da Saúde (“Bonança ou tempestade perfeita?”), publicada em março de 2021, o forte represamento das contas médicas teve impacto direto e sensível na sinistralidade da Saúde Suplementar: “os prazos máximos de atendimento foram suspensos e as cirurgias eletivas em dado momento também foram suspensas. Mesmo após o retorno desses procedimentos, o que se viu foi um esvaziamento dos prontos-socorros, consultas eletivas, seus consequentes exames solicitados nas consultas e menor quantidade de cirurgias que de fato poderiam ser adiadas. O reflexo disso? Uma queda de 10 pontos percentuais na sinistralidade média do mercado, passando de persistentes 83% para 73%. Isso reflete direta e positivamente no resultado das operadoras”. Independente do desrepresamento dos procedimentos, o colapso pode chegar também com a miríade de “recuperados da Covid-19” que desembarca da pandemia, uma legião que até a segunda semana de abril já era de 110 milhões de indivíduos no mundo, com cerca de 12 milhões no Brasil, sendo provável que esse número no país ultrapasse os três dígitos em 2022.

Dezenas de estudos, quiçá centenas, estão mostrando que as sequelas pandêmicas virão de quase todos os vetores clínico-assistenciais. Um exemplo foi publicado na The Lancet Psychiatry em 7 de abril último: um terço dos pacientes recuperados de Covid-19 sofre sequelas psiquiátricas ou neurológicas. Essa corrosiva conclusão está no estudo realizado por pesquisadores da Oxford University, que conduziram uma amostra com 230 mil pacientes infectados pelo vírus, concluindo que 34% deles foram diagnosticados com distúrbios neurológicos ou psiquiátricos nos 6 meses seguintes à infecção. O coordenador do estudo, Dr. Paul Harrison, foi enfático ao explicar que, embora o risco seja limitado no nível individual, dados da pesquisa mostram que o efeito poderá ser “considerável" para os sistemas de saúde, pois a maioria dos distúrbios relatados podem ser caracterizados como crônicos.

Uma “cascata de sequelas” pode desaguar nas hostes dos Seguros de Saúde nos próximos meses, ou anos, já estando claro que disfunções pulmonares, hepáticas, cardiovasculares, renais e neurológicas são propicias a estarem no rol das morbidades dos recuperados-negativos. Outro agravante de curto prazo é que a maioria dos estudos atuais são direcionados às ‘sequelas clínicas dos pacientes que foram hospitalizados’, ou seja, uma amostra ainda pequena se comparada àqueles que foram contaminados mas não chegaram à internação. O estudo “SARS-CoV-2 infection and risk of clinical sequelae during the post-acute phase: a retrospective cohort study”, por exemplo, publicado em março deste ano na medRxiv, mostrou o impacto do pós-covid entre adultos de 18 a 65 anos recuperados da fase pré-aguda da doença e com seguro-saúde nos EUA. O resultado revelou que 14% dos indivíduos infectados com menos de 65 anos desenvolveram ‘no mínimo uma nova sequela clínica’, confirmando tipos específicos de sequelas que ocorrem até 4 meses após a fase aguda.

Esse cenário, com impactos diretos e de longo prazo em nossa Cadeia de Saúde Suplementar, notadamente na dimensão da sinistralidade, pode ser o ponto de inflexão que estimule os sistemas público e privado a operar reformas de grande alcance em seus modelos de mutualidade, cooperação e seguridade coletiva, como já estão fazendo outros países. Se o caos pode destruir, também pode revitalizar. Como ainda não sabemos ao certo se a pandemia está na sua mediana, ou em seu ciclo final, ou mostre que vai nos acompanhar por vários anos, cresce a certeza de que o Brasil pode enfrentar uma ‘cauda longa de dificuldades’ envolvendo todos os agentes da Cadeia de Saúde (operadoras, beneficiários, comunidade médica, prestadores de serviços, Estado, etc.). O cálculo da sinistralidade (razão entre despesa assistencial e receita da operadora) pode nunca permitir que ela seja um ‘número negativo’, mas a pandemia está mostrando que ela pode ser ‘negativamente sinistra’, principalmente quando o folego financeiro dos beneficiários desaba pela mesma rampa em que sobe o número de casos. Se o motor da transformação setorial não vier das dificuldades em manter a sinistralidade distante das curvas de insolvência, pode vir pela forma como o usuário passará a se posicionar com relação ao bem-estar e a qualidade de vida no pós-Covid. Os recuperados e os ‘nunca-infectados’ podem juntos estabelecer novas regras de saudabilidadeimpondo um novo diálogo com a Cadeia de Saúde.

Sim, os recuperados podem ser a ignição para transformações na Cadeia de Saúde. No Reino Unido, por exemplo, 7 em cada 10 pacientes hospitalizados com Covid-19 ainda não se recuperaram totalmente após 5 meses. O Phosp-Covid, um dos maiores estudos do mundo com pacientes dentro do chamado covid-longo, acompanha a saúde de 1.077 pacientes que receberam alta hospitalar entre março e novembro de 2020. O estudo concluiu que 5 meses depois, os pacientes apresentavam em média “nove sintomas persistentes, com um em cada cinco atingindo o limiar para uma nova deficiência”. Cerca de 18% deles não conseguiram voltar a trabalhar desde o desenvolvimento da Covid-19. Publicada no journal ‘Respiratory Medicine’ em 09 de abril, outra pesquisa (“Decreased quality of life and spirometric alterations even after mild-moderate Covid-19”) avalia o rescaldo da doença nos índices de qualidade de vida. Realizada com pacientes recuperados do surto (de leve a moderada intensidade), o estudo concluiu existir uma severa diminuição da qualidade de vida (QV) em até 56% deles. Só a ansiedade e a depressão estiveram presentes em 59% dos recuperados, com a persistência de sintomas presente em 63% deles. Talvez a mais importante conclusão do estudo foi descrita pela Dra. Rachael Evans, professora e pesquisadora da University of Leicester e coautora da pesquisa: “Grande parte da variedade de problemas persistentes não foi explicada pela gravidade da doença, mas por outros mecanismos subjacentes, possivelmente ainda mais sistêmicos”. Ou seja, o que está por ser descoberto com relação as sequelas do coronavírus pode ser ainda mais dramático do que o próprio quadro infeccioso da Covid-19.

Já sabemos que a pandemia é uma inconfundível expressão de um ‘número negativo’, que alastra negatividade por quase todos os eixos da sustentabilidade humana. Nos últimos 12 meses acordamos todos os dias mais e mais negativos. Não seria diferente com as organizações que, em parte, sustentam o mecanismo civilizatório de sobrevivência: os sistemas públicos e privados de saúde. Nossa Saúde Suplementar, que hoje pode surfar nas ondas do represamento clínico-assistencial, não escapará do maremoto pós-pandemia, principalmente com a chegada dos recuperados. A garantia de sobrevivência do Setor só poderá ser assegurada com a contínua transformação dele. Quando o célebre matemático Alfred N. Whitehead (1861-1947) compreendeu e aceitou os ‘números negativos’ não deixou de se expressar: “Agora está claro para mim que o progresso mais fundamental tem a ver com a nossa reinterpretação das ideias básicas”.

 

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor

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