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Passaporte-Vacina: imunidade de rebanho ou rebanhos privilegiados?

Article-Passaporte-Vacina: imunidade de rebanho ou rebanhos privilegiados?

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Debate sobre o complexo certificado global de vacinação

‘A controvérsia acompanha o coronavírus de perto’. Aonde ele vai, ela emerge criando tensões e dissenso. A querela do momento chama-se ‘vaccine passport’, os certificados de vacinação emitidos por Governos ou por instituições, sendo em geral aplicativos de smartphone confirmando a vacinação do portador, ou o seu teste negativo em PT-PCR. Seu alvitre é um primor: permitir que famílias se reúnam, economias reiniciem e milhões de pessoas vacinadas voltem à normalidade. Mas essa conciliação gera uma coleção de dúvidas éticas, logísticas e até jurídicas. Obviamente, a maioria das versões do passaporte-vacina são orientadas às viagens nacionais e internacionais. Mas outros tipos pretendem ir além, liberando a entrada em locais públicos ou privados somente àqueles com certificação de “vacinado”, como academias, salas de concertos, restaurantes, cinemas, pubs, shoppings, etc. Os protestos contra alguma “sombra de discriminação” nesse modelo emergiram no Reino Unido, Dinamarca, EUA e em boa parte da União Europeia.

Israel, por exemplo, que já inoculou mais da metade da população, introduziu em fevereiro o seu Aplicativo "Green Pass", que permite confirmar os indivíduos vacinados contra a Covid-19, ou se têm algum nível de imunidade após contrair o vírus. O App, que dá acesso a museus, shoppings, piscinas, restaurantes, etc., imediatamente espalhou pelo mundo a desconfiança de que o passaporte-vacina seja mais um catalizador de discriminação social. Quiçá o debate seja menor no Brasil, que ainda não atingiu o estágio de conforto para pensar no “dia de amanhã”, estando ainda preso ao “dia de ontem” e na quantidade de óbitos que farão as curvas superarem aquelas do dia anterior (ainda estamos na fase de discutir o ‘passaporte para a vida’). Apesar das controvérsias, é certo que o vaccine-passport veio para ficar. Os ‘sistemas de identificação de imunidade epidêmica’ passaram a ser o primeiro grande passo para a reconquista da ‘normalidade’ (seja lá o que isso for). Além de Israel, quase todas as nações estão avançando em seu desenvolvimento, como os EUA, onde o Department of Health and Human Services trabalha diuturnamente para estabelecer padrões tecnológicos e logísticos para a sua implantação.

Da mesma forma, a União Europeia já propõe a implementação de um Digital Green Certificate, permitindo aos vacinados viajar livremente por suas fronteiras. No Reino Unido, qualquer pessoa que tenha sido vacinada recebe um cartão de vacinação’ com detalhes armazenados em seu registro médico digital, mas um esquema de "covid status certification" está agora sendo estudado pelo governo britânico, para (1) registrar os vacinados, (2) acusar a negatividade do teste mais recente e (3) certificar a imunidade natural. Os passaportes britânicos também dariam acesso a teatros, casas noturnas, eventos esportivos, etc. Todas essas plataformas levam o debate muito além das viagens internacionais, podendo chegar até as normas de direito trabalhista (poderia uma Lei liberar empresas a pedirem provas de imunização a seus funcionários?), ou mesmo aos direitos fundamentais (teria o Estado autoridade de exigir comprovação de vacina a todo e qualquer cidadão, ainda que a vacinação não seja obrigatória?).

Estamos no estágio do debate em que o consenso se distancia do bom senso: todos querem a mesma coisa (free circulation), mas nem todos sabem qual a melhor forma de verificar quando e quanto o ‘rebanho já está imunizado’, e como separá-lo dos habituais rebanhos privilegiados’. Enquanto a OMS informa (06/04) não apoiar uma prova obrigatória de imunização devido a “incerteza de que a vacinação contra a Covid-19 evite a transmissão do vírus”, várias universidades norte-americanas, como Rutgers, Brown e Cornell, já se preparam para exigir uma ‘prova de vacinação’ dos alunos. Na aviação civil, algumas companhias aéreas, como JetBlue e United, passaram a testar com seus tripulantes o aplicativo CommonPass, dedicado ao controle de informações pessoais, enquanto a Airlines for America, grupo das principais companhias aéreas dos EUA, se opõe a qualquer prova obrigatória de vacinação nas viagens (“porém, gostaria que uma forma limpa e fácil fosse apresentada pelos viajantes mostrando seu status vacinal”). Os próximos meses, quiçá anos, vão mostrar qual será a nova dialética dos viajantes (turistas ou não). Estariam nossos verões salvos com um simples passaporte-vacina? É provável que não. Os passaportes criam divisões entre jovens e idosos, ricos e pobres, urbanos e rurais, sintomáticos e assintomáticos, etc. Embora sem ele as viagens possam ser impraticáveis, com ele teremos transporte, mas também teremos um sentimento amargo de que a Covid-19 ‘estará reduzindo a autonomia do mundo’.

Alguns países já exigem comprovação de vacinação contra a febre amarela, por exemplo, mas são mínimos os precedentes de restrições vacinais para toda uma sociedade. Quando o ministro das Relações Exteriores do Reino Unido especulou que a prova de vacinação poderia ser exigida em qualquer lugar público, foi imediatamente retrucado pelo congressista Mark Harper“Não acho que você queira exigir que as pessoas tenham de passar por um procedimento médico específico antes de poderem cuidar de sua vida cotidiana”. Talvez os dois lados tenham razão, o que torna o contencioso longo e conturbado. Sem falar nos países de baixa e média renda, que recebem bem menos vacinas (ou sequer iniciaram suas vacinações) e ficariam fora do contexto certificatório, fazendo com que as sociedades mais abastadas ‘chegassem bem antes ao outro lado da pandemia’.

“Há uma inevitabilidade no vaccine-passport”, diz Alexandra Phelan, professora e pesquisadora do Center for Global Health Science & Security da Georgetown University of Medicine. “Fundamentalmente os governos querem implementar esses mecanismos, porque não se trata apenas de proteger a saúde pública, mas de reiniciar a economia e remover as barreiras de viagem”, continua Phelan. Em março, o estado de Nova York começou a usar o Excelsior Pass, um aplicativo desenvolvido pela IBM e baseado no ‘Registro de Vacinação do Estado’. O app verifica o ‘status de vacinação’ daqueles que desejam participar de eventos, ou ir a locais onde existe limitações de capacidade. Do mesmo modo, outras iniciativas crescem nacionalmente nos EUA: indivíduos vacinados nas redes de varejo farmacêutico Walmart e Sam's Club podem obter certificados por meio de padrões desenvolvidos pela Vaccination Credential Initiative, uma coalizão de empresas e também de organizações sem fins lucrativos, que incluem, por exemplo, Microsoft, Salesforce e Mayo Clinic.

União Africana, por seu lado, está desenvolvendo o “My Covid Pass”, um documento que permitiria a travessia fronteiriça segura em todo o continente. Mas talvez o melhor indicativo de que o passaporte veio mesmo para ficar vem do próprio Reino Unido: o Ada Lovelace Institute, uma organização de pesquisa financiada pela instituição de caridade Nuffield Fundation, mantém uma lista de países que já lançaram vaccine-passports  ou expressaram planos de fazê-lo, sendo o projeto patrocinado por organizações mundiais interessadas no tema, como: World Economic Forum; International Air Transport Association; Linux Foundation; MIT; MasterCard; etc. O objetivo é permitir a “liberdade global de movimento”, embora nem tudo seja tão simples quanto o discurso: o ‘passaporte-vacina’ proposto pelo governo chinês, por exemplo, só admitirá viajantes que possam provar que receberam vacinas chinesas.

De qualquer lado que observemos, a certidão-vacinal é um cipoal de problemas e uma guerra diplomática complexa, com cidadãos de países com maior renda per capita saindo na frente. “Isso reflete mais um curso de injustiças históricas”, define Phelan, que junto com a epidemiologista Saskia Popescu argumentou em texto publicado no The New York Times que a desigualdade dos vaccine-passports poderia estender ainda mais a pandemia. “Uma das poucas alavancas que temos nos países de alta renda para querer compartilhar hoje as vacinas (além de ser a coisa certa a fazer) é o desejo de voltar às viagens internacionais e abrir as fronteiras. Essa vantagem será perdida se avançarmos na direção pretendida por esses países, que decidem como será o novo normal”, escreveram elas. Exemplo: enquanto Israel esbanja pujança e competência imunológica, no outro lado de sua fronteira a Palestina vacinou até março o irrisório percentual de 0,2% de sua população (5 milhões de habitantes).

Muitos dos projetos de passaportes de imunização gravitam em torno de aplicativos para smartphone, que mesmo nos EUA uma em cada cinco pessoas não o possui. No Brasil, onde o Ministério do Turismo já projeta um embrião de passaporte vacinal, sempre haverá uma torrente de questões difíceis, como, por exemplo: “o que acontecerá se cidadãos das periferias precisarem mostrar que foram vacinados para entrar em um supermercado, farmácia, shopping ou num ônibus interestadual e isso não for algo que seu telefone móvel seja capaz de prover?”. O abismo pode ir muito além do celular: e se as pessoas não forem alfabetizadas? E se tiverem motivos reais pelos quais ainda não foram vacinadas? Ainda que tudo isso tenha conciliação em algum momento, e certamente terá, emergem também as perguntas técnicasonde estão os dados de vacinação? Como eles podem ser compartilhados? Como acessá-los em países de baixa estrutura tecnológica pública? Como essas nações poderão assegurar a segurança e a privacidade dos dados vacinais?

Na realidade, o passaporte-vacina caiu de ‘paraquedas’ em todos os países. Sua existência vem repleta de dúvidas conceituais que precisariam de uma quadra de maturação, um tempo que a sociedade de 2021 não tem. Está claro que ele será implantado, mas não está claro como vai superar as questões discriminatórias. Maryn McKenna, jornalista, pesquisadora da Brandeis University e autora da excelente obra “Beating Back the Devil: Detectives of the Epidemic Intelligence Service” explica sem milongas: “o vaccine-passport, um documento digital que deveria existir para ‘unir o mundo após o bloqueio’, pode hoje estar balcanizando-o em sistemas fechados, onde apenas alguns aplicativos são aceitos, apenas algumas marcas de vacina são bem-vindas e apenas algumas das certificações serão acessíveis”.

 

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor

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