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Tédio na pandemia: os horrores de conviver consigo mesmo

Article-Tédio na pandemia: os horrores de conviver consigo mesmo

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O fastio causado pelo isolamento na Covid-19

“Fomos convidados para ir à guerra, mas tudo o que nos solicitaram é sentar no sofá”. Não se preocupe com a guerra, concentre-se no maior inimigo: o tédio. Essa sensação de insatisfação que nos acompanha todos os dias nos últimos 12 meses é um estado emocional único, diferente para cada indivíduo e notoriamente desconfortável. Também chamado de “fadiga pandêmica”, o tédio tende a parecer algo trivial se comparado a infecção do coronavírus, ou a perda de emprego, a carestia, o distanciamento familiar e até a morte. Reclamar dos tempos entediantes, não preenchidos por produtividade ou diversão, pode até parecer um ato egocêntrico ou lunático, mas não é bem assim. O tédio talvez seja um dos fatores nucleares para explicar o baixo “distanciamento social” em muitas regiões do mundo. Segundo pesquisadores da University of Waterloo e Duke University pessoas que tendem ao tédio descontrolado têm maior probabilidade de quebrar as regras de isolamento e partir para os encontros sociais. Mais que isso: ‘as próprias medidas de contenção a Covid-19 causam tédio’ (lavar mãos a cada hora, mascarar a cada visita, etc.), ficando cada vez mais difícil para as pessoas seguirem as regras de proteção, ou mesmo quaisquer outras regras. Ainda que à primeira vista possa ser atraente ter tempo para ‘não fazer nada’, para muitos trata-se de um movimento dolorosamente asfixiante. Outro estudo publicado em 2014 (“Just think: The challenges of the disengaged mind”), mostra que ser deixado sozinho com os ‘próprios pensamentos’ inflama o tédio. Alguns dos participantes dessa pesquisa preferiram ‘autoadministrar choques elétricos leves em vez de ficarem por conta própria com seus pensamentos’. Segundo conta uma das pesquisadoras do estudo, a psicóloga da University of FloridaErin Westgate, os alunos tinham a opção de apertar um botão para receber um suave choque elétrico. Cerca de 2/3 dos homens e 1/4 das mulheres apertavam o botão, alguns repetidamente, sugerindo que mesmo alguma dor pode ser preferível ao confronto com o auto pensamento.

tédio é um estado psicológico que a maioria das pessoas experimenta regularmente. Em tempos de coronavírus ele vem acompanhado de solidão, tristeza, frustração, ansiedade, medo, raiva e ressentimento, sendo em geral sentimentos gerados ​​pela perda das atividades e das relações sociais. É verdade que existe uma “galera” compulsivamente desobediente ao distanciamento social, em geral por ignorância, egoísmo, niilismo, etc. Mas mesmo a maioria das pessoas, que têm um bom entendimento da seriedade do isolamento na Covid-19, sofrem sobremaneira com o enfado, talvez até mais do que os outros. Em todas as humanidades ocidentais o tédio costuma ser descrito como uma ‘falha individual’. O pessimista Schopenhauer definia o tédio como “nada além da sensação do vazio da existência”Sartre o chamou de "lepra da alma" e Kierkegaard viu nele a “raiz de todos os males”.  Na verdade, são definições rasteiras. No século XXI, o tédio recebeu inúmeras outras interpretações neurológicas e mais científicas. Essa sensação de ‘vazio do fazer’ (que Tolstói chamou de “o desejo dos desejos”) ultimamente tem sido avaliada por pesquisadores como um “sinal”, um chamado ao corpo para que ele “mude a marcha”.

Westgate, profunda conhecedora do tema e autora de outro estudo (“Boring thoughts and bored minds: The MAC model of boredom and cognitive engagement”) ressalta: “O tédio é um sinal de que você não está significativamente envolvido no mundo”. Ela identifica dois caminhos para o tédio: (1) perda de foco ou (2) perda de significado. Westgate mostra que tanto a baixa estimulação quanto a superestimulação podem causar um curto-circuito em nossa ‘capacidade de prestar atenção’. Na Covid-19, por exemplo, passamos a ser “zumbis-urbanos” com baixa capacidade de nos focarmos em qualquer coisa. Nos tornamos ‘eremitas isolados em cavernas residenciais’, ensimesmados, dispersos e reféns de nossos próprios pensamentos, que, convenhamos, diante dos fatos não são nada positivos. “Você pode ficar entediado porque algo é significativo, mas não consegue prestar atenção porque é muito fácil ou muito difícil. Você também pode ficar entediado porque consegue prestar atenção, mas parece não fazer sentido. Mas se algo não tem sentido e você não consegue prestar atenção, você fica duplamente entediado, explica Westgate. Em geral, na pandemia, há uma ideia aguda cercando nossas mentes: ‘nada faz muito sentido’. Fomos engolidos por novas estruturas tão rapidamente que o sentido das coisas parece ter ficado no passado (“em 2019 as coisas faziam sentido”). Até mesmo assistir ao noticiário, que no início da Covid-19 podia nos levar a compulsão, hoje tornou-se monótono e entediante.

Um trabalho realizado pela psicóloga e pesquisadora da Rutgers University-Newark (EUA), Samantha Heintzelman, intitulado “Routines and Meaning in Life”, mostra que “rotinas simples, como pegar café na mesma cafeteria todos os dias, ou almoçar em pé com um amigo, dão na verdade significado à vida”. Ou seja, as diretrizes do distanciamento social que visam nos proteger de uma doença viral, também roubam coisas aparentemente pequenas, mas que dão essência à nossa vida. No fundo, o tédio é um desgosto profundo que provoca desinteresse por tudo o que nos cerca, inclusive por nós mesmos, sendo que no impulso saímos fazendo coisas que buscam estancar o fastio. “Normalmente o tédio diz que você deve fazer outra coisa, mas no contexto da pandemia ... isso pode não ser a melhor coisa”, explica o psicólogo Wanja Wolff, da University of Konstanz (Alemanha). Uma pesquisa dele mostra que as pessoas frequentemente entediadas têm maior risco de contrair o coronavírus: a contaminação mira aqueles que debandam da introspecção e da melancolia e se arriscam na multidão.

Não faltam sugestões e guidelines para conviver com o tédio, que vão das ideias mais científicas até as mais caseiras. Nessa cesta de orientações entram, claro, as medicações e os aplicativos “no-boredom”. O app BetterHelp, por exemplo, segue a linha do acompanhamento on-line, sendo um dos mais antigos e utilizados do mercado. Ele disponibiliza uma rede superior a 10 mil terapeutas para o suporte virtual. Já o Youper é um assistente de saúde emocional que utiliza inteligência artificial para ajudar as pessoas a reduzir seus níveis de ansiedade, mau humor e dificuldades no sono. Atua numa variada gama de estratégias de TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), Mindfulness, etc. O notável é que você pode ter uma conversa digital com ele, ouvindo ‘suas táticas’ para manter uma atenção plena ou as narrativas para melhorar o sono, além de conter um “rastreador de humor” para monitorar suas emoções. O Daylioindicado regularmente por terapeutas, permite que você mantenha um diário privado (gratuito) com suas atividades rotineiras de forma a entender como elas afetam seu humor e ansiedade. O agendamento no diário é feito por meio de emojis, que ajudam a “espelhar seu estado de ânimo a cada dia”, utilizando também lembretes e alertas para seguir metas e construir novos hábitos. Os aplicativos também podem ser entediantes e escapistas (a maioria o são), mas nesse interminável lockdown nunca “deixe um sintoma gostar muito de você”.

Manter a atenção e o desligamento das atividades mentais perturbadoras, nos leva muitas vezes a acrescentar “camadas às coisas que já estamos fazendo”. Se assistir uma série de TV parece útil, passamos a consumir várias séries simultaneamente. Se um naco de bolo nos alivia, o devoramos por inteiro. Todavia, como explica Julian J. Haladyn, professor na OCAD University e autor do livro “Boredom Studies Reader”, o efeito irônico é que as atividades adicionais podem nos levar a mais tédio. Para ele, o fastio na pandemia não é uma experiência única e as camadas de experiências enfadonhas acumuladas nos parecem opressoras. “De muitas maneiras as pessoas ficam entediadas só por estarem entediadas, e por conseguinte tendemos a enxergar nisso a depressão. Mas esse tédio indescritível também nos faz perguntas importantes sobre o que fazemos quando a vida está em pausa”, explica ele.

Mesmo quando o ‘tédio nos obriga a conviver conosco mesmo’, tendo que ‘ouvir’ a mente expor nossas misérias e fragilidades, talvez haja algo de útil nessa perspectiva. Peter Toohey, professor na University of Calgary (Canadá) e autor do livro “Boredom: A Lively History”, resumiu essa utilidade“o tédio indica que algo está errado, e por essa lógica talvez tenha sido ‘projetado’ para encorajar as pessoas a mudar o seu comportamento e se proteger das toxinas sociais. Talvez devêssemos vê-lo como a gota, ou a angina, ou os pequenos derrames: como um sinal de que as coisas vão piorar se não mudarmos o estilo de vida”. Nesse sentido, o tédio teria também uma função evolutiva: se ele existe desde os tempos das cavernas, e nos alerta constantemente sobre as coisas enfadonhas, talvez ele tenha ajudado os seres humanos a chegar até aqui, e, quiçá, também nos ajude a chegar ao próximo ano.

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor

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