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ChatGPT – Apertem os cintos, o piloto chegou!

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Uma nova primavera para os Sistemas de Saúde

Deve ter sido muito difícil a descrição dos sete dias da Criação do Mundo. Mesmo um pesquisador atento, lendo o livro do Gênesis (“No princípio Deus Criou o céu e a terra”) ou testemunhando in loco os acontecimentos, teria enorme embaraço em explicar os fatos (“Haja luz, e houve luz, com Deus a chamando de Dia, e as trevas de Noite”). Não menos complexo é explicar o fenômeno da mais espantosa máquina de inteligência artificial (IA) até aqui apresentada ao mundo: ChatGPT (e olha que estamos só no primeiro dia). Guardadas as devidas proporções, seu impacto na sociedade deste século pode ter alguma analogia com a passagem sagrada do Genesis: “nada do que virá depois se compara ao que veio antes”.

(Antes de prosseguirmos, vale ressaltar que a cada 30 segundos o ChatGPT é melhorado, amplificado e redimensionado. Milhões de usuários, dos mais toscos aos mais bem preparados, estão realimentando sua massa de dados e aperfeiçoando sua eficiência algorítmica com incrível velocidade. Sua força de ‘retroalimentação’ não tem prescedentes na IA do século XXI. Assim, tudo o que este paper pretende explicar e analisar sobre a ferramenta pode estar obsoleto em duas ou três semanas (talvez dias), sendo uma “missão impossível” estabelecer os próximos avanços que envolvem ‘AI Generative’. Portanto, “este texto se ‘autodestruirá’ em 5 segundos...”). 

Em 2 de fevereiro de 2023, a Reuters informou que a aplicação ChatGPT atingiu cerca de 100 milhões de usuários ativos em janeiro, apenas dois meses após o seu lançamento, tornando-se o “software de crescimento mais rápido na história” (o tal do TikTok levou 9 meses para atingir esse montante). ChatGPT é um ‘transformador’, um software de inteligência artificial (AI) cujo significado de seu acrônimo (GPT) é “Generative Pre-training Transformer”. Não vem de outra galáxia, não é um duende superdotado e nem pode responder a tudo o que perguntam. Mas, vai causar um grande abalo na vida inteligente de nossos tempos. É provável que nada seja tão disruptivo nos próximos anos do que as “máquinas generativas de IA”, a ‘família’ que pariu a plataforma conversacional ChatGPT. Corporações, academia, Estados, mercados, comunidade tecnológica e cada indivíduo conectado ao mundo receberá “perturbações” socioeconômicas e comportamentais dessa tecnologia. Menos por sua versão atual e mais por suas próximas versões, a tecnologia GPT talvez seja a mais marcante mudança no bioma digital desde a criptografia. “O software está comendo o mundo!”, diriam os poetas do apocalipse.

ChatGPT é um modelo de linguagem massiva de conversação (LLM), embricado em linguagem natural e desenvolvido pela empresa OpenAI, sendo baseado em arquitetura GPT-3 e estacionado no eixo das ferramentas de deep learning. Utiliza a massa de dados que circunda a Internet (até 2021) e funciona no modo conversacional com os usuários, inclusive em conjunto com outras aplicações (com licenciamento da OpenAI). Grosso modo, trata-se um chatbot algoritmizado capaz de gerar respostas às questões dos usuários. Por utilizar Processamento de Linguagem Natural (NLP), pode ser usado para uma incrível variedade de aplicações. Foi projetado para ser personalizável e pode ser ‘treinado’ por meio de bases de dados específicas, que melhoram o seu desempenho em tarefas singulares. Você pergunta, dialoga, instiga, ou mesmo oferece trilhas sobre o que quer saber e o ChatGPT lhe devolve um manancial de conteúdo, em geral bem articulado. Todas as respostas ou documentações apresentadas por ele são verdadeiras? Não, há vários exemplos de erros e relatórios citados que não existem. Mas, tudo razoavelmente fácil de checar (inclusive com ajuda do Google). Embora ainda seja uma plataforma minimamente errática, seu uso nos permite prever um ‘godzilla’ à frente, ganhando em assertividade e precisão a cada nova versão.

A plataforma pode (1) gerar, construir e concluir textos em vários formatos, como artigos, histórias, narrativas, livros, pesquisas, etc.; (2) pode ser usada para criar assistentes virtuais que entendam e respondam às entradas dos usuários. O alcance depende do questionamento e de inúmeros fatores que instiguem as respostas; (3) traduz idiomas, bem como resume, corrigi, expande e sintetiza textos em vários idiomas; (4) classifica, categoriza e qualifica publicações, pesquisas científicas, livros ou qualquer texto, podendo responder as demandas no padrão que o usuário desejar (por exemplo: como ficaria o texto que você está lendo se fosse escrito no Século XVI? Ou como ele ficaria em sânscrito?); (5) possui uma enorme capacidade de condensar e compendiar documentos, leis, regulações, narrativas, sermões, longos discursos, etc., extraindo as principais informações segundo a classificação e o desejo do usuário (é capaz de resumir o contexto de um livro de 400 páginas em poucos minutos).

Todavia, é na Saúde que as promessas ‘generativas em IA’ crescem. Existem já catalogadas perto de 200 aplicações da plataforma ChatGPT no segmento sanitário. Algumas delas vão revolucionar as cadeias de saúde ainda este ano. Pode ser utilizada na criação de ‘chatbots’ que respondam aos pacientes e seus cuidadores, verificando sintomas, provendo triagem, fazendo agendamento e fornecendo outras informações sanitárias básicas. O velho contact-center de atendimento robótico (uras-chatbots), com limitadas possibilidades de suporte aos provedores de serviços de saúde, tem seus dias contados. Como o ChatGPT opera em modo conversacional, ele pode turbinar os call-centers, respondendo vários níveis de perguntas do paciente, sempre aumentando sua assertividade quando a base de dados de consulta seja mais específica. Se o médico-consultante, por exemplo, for um oncologista, certamente terá mais precisão nas respostas se orientar o ChatGPT a pesquisar em uma base de dados oncológica (quando fizer a pergunta, ele pode indicar qual banco de dados deve ser acessado). A Nice, por exemplo, gigante mundial de software de autoatendimento, já anunciou a integração do CXone Expert com o ChatGPT.

Da mesma forma, a ferramenta pode também resumir relatórios médicos, laudos, pesquisas e ensaios clínicos, tornando-os mais acessíveis aos profissionais de saúde e aos pacientes. O Epic-Chatbot, por exemplo, já usa o ChatGPT para extrair dados de sua aplicação Epic-EHR, gerando relatórios médicos para cada perfil médico, como extratos demográficos, linhas diagnósticas, matrizes terapêuticas, avaliações de progresso do paciente, etc. Nos últimos dias de janeiro, a OpenAI apresentou nos EUA o ChatGPT Plus, um serviço de assinatura mensal de US$ 20 que pode fornecer respostas mais rápidas, acesso preferencial durante os horários de pico e admissão prioritária a novos recursos. Talvez nem seja uma estratégia de monetização, mas de contenção. Quando milhões de usuários podem chegar a ser bilhões em menos de um ano, a OpenAI passa a ter um desafio: tentar controlar esse fluxo, que é bom do ponto de vista de testagem e ampliação da base de conhecimento, mas é perigoso quando milhões passam a exigir da empresa uma velocidade de atualização que ela não pode acompanhar.

O ChatGPT também pode ser ajustado a tarefas ou domínios factuais. Mas cuidado! A ideia de que ele pode substituir a autoria de um documento, como, por exemplo, uma prova escolar, ou uma Tese de Doutorado, ou uma pesquisa científica é simplista, ingênua e datada. Já existem ferramentas capazes de identificar se uma ‘escrita’ passou pelo ‘crivo’, ou foi gerada pelo ChatGPT, ou por outra aplicação generativa de IA. A própria OpenAI estimula essas acareações (possuindo inclusive sua própria ferramenta de aferição), não pretendendo que o produto seja um “logro”, mascarando os incautos que pretendem utilizá-la para plágios, falsas interpretações, etc. Se essas ferramentas de acareação ainda são tímidas, logo ganharão corpo e capacidade de esquadrinhamento. Como explica o paper do MIT Technology Review (“A watermark for chatbots can expose text written by an AI”): “Padrões ocultos, propositadamente enterrados em textos gerados por IA, podem ajudar a identificá-los, permitindo-nos dizer se as palavras que estamos lendo são escritas por um humano ou não. Essas “marcas d’água” são invisíveis ao olho humano, mas permitem que os computadores detectem que o texto provavelmente vem de um sistema de IA. Se incorporados em modelos de linguagem, podem ajudar a evitar alguns dos problemas que esses modelos já causam (alunos trapaceando e utilizando aplicações generativas para escrever redações em nome deles)”. John Kirchenbauer, pesquisador da Universidade de Maryland, que desenvolve ‘aplicações de marca d’agua’ para identificar o “dna” de um texto, ressalta o estágio do ChatGPT: “No momento, é o Velho Oeste”. Como dito acima, estamos “só no primeiro dia” e o que vem pela frente é uma artilharia tecnológica pesada, que, da mesma forma, usa IA para obstruir a má fé (embora ela sempre vá existir em maior ou menor escala).

O processamento de linguagem natural (NLP) vem sendo desenvolvido desde 2015. Trata-se de uma “corrida do ouro” que está apenas começando. Andrew Feldman, CEO da Cerebras Systems, uma das enfant-terribles de inteligência artificial (em 2021 lançou a máquina de IA mais rápida do mundo, com 1,2 trilhão de transistores), explicou o estágio atual das NLPs: “…os grandes modelos linguísticos estão sendo subestimados e estamos apenas começando a ver o impacto deles. Haverá vencedores e emergentes em cada uma das três camadas do ecossistema (hardware, infraestrutura e aplicativos). Em 2023 e depois, veremos a ascensão de grandes modelos linguísticos em várias partes da economia”. Soluções de IA tem potencial de aumentar o PIB global em 1,2% ao ano, adicionando US$13 trilhões a ele até 2030.

O ChatGPT também traduz textos médicos (como o MedTranslate, que já utiliza o ChatGPT), ou realiza traduções (intérprete em tempo real) durante as teleconsultas, permitindo que os profissionais de saúde se comuniquem em diferentes idiomas. Além disso, gera “diagnostic data-analytics” automaticamente, cruzando dados de análises clínicas para adicionar prospecções de patologias potenciais (baseadas em evidências científicas). Assim, um laudo laboratorial tutorado por uma plataforma generativa e acompanhado por staff técnico-científico será necessariamente um “refino diagnóstico”, ou, em alguns anos, ou meses, uma segunda ou terceira opinião clínico-diagnóstica. O desafio para o setor de medicina diagnóstica será entender seu papel nessa cadeia de decisão: o paciente utilizará ChatGPT, seu médico também, a seguradora idem, o concorrente mais ainda, então o que pode ser feito para estar adiante de todos? Da mesma forma, as ‘generativas em IA’ serão usadas para analisar grandes volumes de dados, identificando e extraindo deles propedêutica e sintomatologia que auxiliem na descoberta de novas opções terapêuticas ou farmacológicas. Alguém pode levantar a mão e discordar: “Big Data já faz isso!”. É verdade, mas plataformas de Big Data operando (interconectadas) com plataformas Generativas farão melhor, mais rápido, muito mais barato e talvez até de forma automatizada.

O aplicativo ChatGPT pode, em segundos, realizar “drug interaction check”, acessando bulários internacionais, em qualquer idioma. Da mesma forma, pode realizar “symptom checking” dialogando com pacientes e médicos, acessando on-line o EHR. Pode também ser ajustado e prover relatórios de “eventos adversos”, identificando padrões e tendências que melhorem a segurança do paciente. O MedSafety, por exemplo, já utiliza o ChatGPT para auxiliar o médico a relatar eventos adversos relacionados ao uso de medicamentos, incluindo efeitos colaterais, interações arriscadas e reações alérgicas.

Os Assistentes Médicos Virtuais (MedWhat; MedVa; Neolytix; MedChat; etc.), que quintuplicaram em volume nos últimos três anos, só farão sentido quando integrados as plataformas generativas de IA (utilizando NLP). Dos mais simples aos mais sofisticados ‘virtual-attendants’, como o MyCancerCompanion, eles serão instigados a interfacear com as generativas devido a sua amplitude comunicacional, forçando-os a utilizar os modelos GPT-3 em suas plataformas. Sem falar na pesquisa médica ou nos “trials” para novas tecnologias farmacêuticas. O Pubmed-Chatbot, por exemplo, já usa o ChatGPT para auxiliar os pesquisadores a encontrar artigos científicos relevantes no PubMed. Ele permite que façam perguntas em linguagem natural e o chatbot recupera os artigos mais relevantes (você pode pedir, por exemplo, os 15 últimos papers sobre um determinado tema dentro da base Pubmed). Um paciente ou médico que precise encontrar ensaios clínicos que correspondam à uma condição médica rara poderá ter acesso a eles em minutos. O ChatGPT não só encontra a publicação, como também (1) a sintetiza (resumos em vários graus de interesse e sofisticação); (2) responde perguntas sobre o significado de cada parâmetro do ensaio; e (3) cria critérios de elegibilidade, localização e informações de contato com os pesquisadores (já existem mais de 6 mil doenças raras identificadas). Um aspecto importante é que a qualidade das respostas do ChatGPT depende da qualidade dos prompts. Respostas podem ser incorretas porque as perguntas são inconsistentes, ou toscas, ou não são compreendidas pela aplicação.

Ocorre que todos esses benefícios carecem nessa primeira fase de testes, regulação e muita transpiração para “checar” cada informação cuspida pelo ChatGPT, ou por qualquer outra plataforma semelhante. A responsabilidade diagnóstica será sempre do médico. Erros, ou evidências inventadas ou mal interpretadas já existem. A boa notícia é que todos estão testando incessantemente. Milhões de usuários passam dias em cima das respostas tentando “identificar fakenotes” da ferramenta (sim, esse serviço em breve será monetizado). Da mesma forma, todas as empresas que asseguram já estar usando as “generativas” (algumas aqui citadas) podem estar blefando, ou só testando, ou mesmo apavoradas com o desmoronamento de seu negócio, ou eufóricas com as novas perspectivas. O fato é que ninguém ficará indiferente ou afastado.

Se o “piloto” apareceu na sala de comando, não apareceu sozinho. Várias outras plataformas em IA caminham na mesma direção, como Midjourney, ou DALL-E, ou Whisper (ambas da própria OpenAI), DeepMind's Alpha Code da Google, Jasper, etc., cada uma fazendo “estragos” em diferentes setores (arte, publicidade, advocacia, arquitetura, serviços bancários, etc.). As big-players de tecnologia se alvoraçam em esticar a perna, como a Microsoft, que anunciou em Davos2023 que o ChatGPT será integrado ao ‘Microsoft Azure’ e ao ‘Bing’ ("em breve"). O Google, obviamente, é a mais vulnerável, mas também a mais preparada: seus projetos em “IA generative” são testados há pelo menos 4 anos. Erik Brynjolfsson, diretor do Stanford's Digital Economy Lab, explicou o impacto das generativas na empregabilidade dos EUA: "A maior parte da economia dos EUA está centrada em conhecimento e trabalho de informação, sendo exatamente isso que será mais diretamente afetado pelas plataformas. Eu colocaria pessoas como advogados no topo da lista. Mas gosto de usar a palavra afetado e não substituído, porque acho que, se bem-feito, IA não substituirá advogados; só aqueles que não trabalharem com IA".

Desde que a OpenAI lançou o ChatGPT (30 de novembro, 2022), vários aplicativos prometeram integrá-lo diretamente ao WhatsApp. Não era simples de operacionalizar. Um programa (“God In A Box”, não ria do nome) passou a permitir que o ChatGPT acompanhe as peguntas e envie as mensagens diretamente pelo WhatsApp. “É como ter um advogado, um médico, um editor de conteúdo e um amigo que sabe tudo no bolso, no WhatsApp”, explicou no twitter o jovem indiano Varun Mayya (29 anos), criador de um dos ‘integrators’ que permite o uso conjunto do ChatGPT e WhatsApp (mais de mil usuários/hora no dia seguinte ao twitter). Da mesma forma, dúzias de outros programadores criaram aplicações para utilizar ambas as plataformas simultaneamente, como a EnablersDAO, que criou o zapGPT.

Aqueles que têm medo de IA ocupar seu espaço profissional, estão “meio-corretos”. Mas, não há “copo cheio ou copo vazio”; não perca tempo pensando nessa ótica mambembe (autoajuda). O que há é “copo”, e ele só existe para ser ocupado. Pense no que você poderia produzir a mais se “clonasse a si mesmo”, digamos, 10 vezes. É o que as plataformas generativas vão permitir. Ou você se decuplica e aproveita o avanço, ou alguém o fará no seu lugar, mas aí será outro copo (o seu só pode ser preenchido por você). IA e suas aplicações não são um desafio a empregabilidade, mas a produtividade. Aumentar em 30% a produtividade de alguém em menos de um ano é uma revolução, aumentar em dez vezes é um “fenômeno assombroso”, que só ocorre a cada meio século. A tecnologia generativa é mais do que a IA generativa. A inteligência artificial é apenas uma peça no mosaico, sendo tão somente a ‘camada inferior’ da “pilha tecnológica”. A camada do aplicativo (superior, no topo) é onde poderemos observar a colaboração entre IA-machine + humanos”. Milhares desses aplicativos serão criados nos próximos dois ou três anos em todos os setores. Poderemos escolher em que lugar do processo de amadurecimento vamos estar:primeiro, as pessoas vão ridicularizar as generativas, tratando-as como um logro; depois irão criticar veementemente (usando como argumento da moral kantiniana até a ética de Tomás de Aquino); na sequência vão se assustar, com redução de sono; depois ficarão apavoradas, com a eliminação do sono; e, finalmente, vão se juntar aos demais, se acomodar no aprendizado e gozar”.  Quanto mais tempo demorarmos nesse amadurecimento, menos tempo teremos para preencher o copo. Em menos de 18 meses, plataformas como ChatGPT estarão em todas as empresas e estruturas governamentais.

O estudo “Performance of ChatGPT on USMLE: Potential for AI-Assisted Medical Education”, publicado em dezembro de 2022, mostra como uma plataforma generativa vai também pousar nas Escolas de Medicina. Causou enorme polêmica. A pesquisa avalia o desempenho do ChatGPT no Exame de Licenciamento Médico dos EUA (USMLE), que consiste em três fases examinatórias (etapas). A plataforma realizou os três exames sem qualquer treinamento especializado ou reforço, demonstrando alto nível de concordância e perspicácia. “Esses resultados sugerem que grandes modelos de linguagem podem ter o potencial de auxiliar na educação médica e, potencialmente, na tomada de decisões clínicas. Inspirados pelo notável desempenho do ChatGPT no USMLE, médicos da AnsibleHealth, uma clínica virtual para doenças pulmonares crônicas, começaram a experimentar o ChatGPT como parte de seu fluxo de trabalho. Inserindo consultas de maneira segura e sem identificação, médicos solicitam que o ChatGPT ajude nas tarefas de redação, que são tradicionalmente onerosas, como redigir cartas aos beneficiários, simplificar relatórios de radiologia e outras atividades densas, facilitando a compreensão do paciente e até mesmo o debate livre com médicos para estimular insights diagnósticos. No geral, os médicos relataram uma redução de 33% no tempo necessário para preencher a documentação e tarefas indiretas de atendimento ao paciente”, explicou o estudo. A polêmica veio da coragem dos pesquisadores de inserir o “ChatGPT” como um dos autores da pesquisa. A comunidade científica bradou ‘cantos de guerra’ contrária a inclusão. Não entenderam que o copo foi ocupado.

Sempre é bom lembrar um dos principais dilemas dos CIOs no setor de Saúde: dados não-estruturados. Mais de 90% deles não são estruturados (e-mails, registros do paciente, prescrições, guias procedurais, apresentações, teleconsultas, arquivos de mídia, imagens, etc.). O ChatGPT pode ajudar a minimizar o problema por meio da NLP, que pode extrair informações e classificá-las. Ele pode ser treinado a coletar e extrair dados relevantes de registros médicos (não-estruturados), tais como laudos de exames, notas de consultas, prescrições ou qualquer anotação histórica do paciente. Da mesma forma, pode ser treinado para classificar dados não-estruturados em categorias específicas (clínicas ou não), como diagnósticos, condições fisiológicas, parâmetros de tratamentos anteriores, emergências médicas alertadas pelo paciente em contact-centers, anotações informais do paciente em seu Personal Health Record, registros de segundas ou terceiras opiniões (enviadas, por exemplo, por email ou WhatsApp), etc. Essas possibilidades passam agora a ser factíveis por meio dos LLMs (Large Language Models), que podem ser acionadas pela IA generativa.

Haverá má utilização, ou uso criminoso do ChatGPT? Sim, com certeza. Mas os ganhos são majestosos quando comparados aos riscos. A tecnologia generativa é irreversível. Já está acontecendo. O relatório “The Potential Impact of Artificial Intelligence on Healthcare Spending”, publicado pelo National Bureau of Economic Research em janeiro de 2023 e assinado por pesquisadores da McKinsey e Harvard University, mostra o potencial de IA para simplificar os processos existentes em saúde, criando novos e mais eficientes. O estudo revela: (1) Estima-se que os custos administrativos representem cerca de 25% de todos os gastos com saúde nos EUA (os 10 principais sistemas hospitalares norte-americanos foram responsáveis por 18% das internações em 2017). Aproveitar o conhecimento clínico para melhorar a saúde do paciente é uma maneira de reduzir essa carga (até 2022, menos de 10% das organizações de saúde da América do Norte integram tecnologias de IA em seus processos de negócios); (2) O conhecimento médico cresce tão rapidamente que, em média, apenas 6% é ensinado ao novo médico nos cursos de medicina; (3) A adoção da IA na Saúde pode reduzir os custos diretos em 5 a 10% (US$ 200 bilhões a US$ 360 bilhões anuais, em números de 2019), sem sacrificar o acesso. Alguns elementos norteiam a estimativa e podem também estimular as lideranças da Saúde no Brasil, principalmente na Saúde Suplementar. Afinal, os prejuízos do setor em 2022 flertam com a insolvência, ou, no mínimo, com a inépcia.

O estudo divide a Saúde em 5 grupos de players, que representam 80% de seus custos: hospitais, grupos médicos, pagadores privados, instituições públicas pagadoras e outros locais de atendimento (dentistas e saúde domiciliar). Da mesma forma, divide a área Hospitalar, por exemplo, em 9 domínios que podem receber “inputs positivos de IA no custeio e na qualidade de serviço”. São eles: (a) continuidade de cuidados; (b) rede e insights do mercado; (c) cirurgias; (d) análises clínicas, (e) qualidade e segurança; (f) atendimento baseado em valor; (g) reembolso; (h) funções corporativas; e (i) consumidor (veja na figura 1 exemplos de domínios de IA no setor hospitalar citados no estudo).

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Exemplos do uso de IA estão em todos os domínios da cadeia de saúde, em alguns casos já sendo utilizados em larga escala. No Brasil, poucos players utilizam. Quantos são os hospitais no país que utilizam Machine Learning (ML), por exemplo, na organização de centros cirúrgicos? A capacidade de agendamento e a organização automatizada de equipamentos, equipes e insumos podem ser facilmente lastreadas por ML, liberando a capacidade instalada e otimizando os recursos profissionais. Alguém dirá: a rotatividade emergencial das salas cirúrgicas e de seus elementos não resiste a lógica cartesiana de IA. Talvez seja verdade, mas talvez seja só ignorância do que essas ferramentas já fazem hoje. O Royal London Hospital (Reino Unido), por exemplo, utiliza IA para otimizar salas cirúrgicas considerando o tempo de duração do procedimento, a disponibilidade de cada membro da equipe, a alocação de equipamentos (robóticos ou mesmo fora da sala cirúrgica), as informações do paciente (EHRs), suas condições pretéritas, o histórico temporal de cada profissional alocado (leadtime), chegando a emular possíveis incidentes ou inconformidades durante o procedimento (alertando o corpo clínico sobre variáveis que estão em risco). O uso de IA nos domínios hospitalares será um dos grandes diferenciais do setor para contenção de custeio. Veja na figura 2 alguns fatores de sucesso para a adoção bem-sucedida da IA, citados no estudo.

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Vale salientar que o estudo do National Bureau of Economic Research não contém uma única linha sobre as plataformas generativas em IA, muito menos sobre o ChatGPT. Assim, é possível imaginar ganhos de custeio muito maiores quando essas tecnologias se tornarem usuais no setor.

Nietzsche (1844-1900) influenciou profundamente o pensamento humano no Século XX. Hoje, sua influência parece crescer ainda mais. Em toda a sua obra, ele explica que dois tipos de forças controlam os homens: as forças ativas e as reativas. A força ativa tem a função de precipitar a ação. Ela energiza, cria, inventa e se apropria, gerando uma realidade inédita. A força ativa não se detém, ou se resume, ou se limita às condições nas quais ela atua. Pelo contrário, ela é excitada pelas condições, sempre gerando algo inédito, algo que modifica as condições e modifica também a si própria. Ela é nobre exatamente porque é capaz de realizar a mudança, capaz de erigir a metamorfose. Ela não se limita a nada, não retarda, não divide; ao contrário, ela ousa e sempre gera algo novo. Por outro lado, a força reativa sempre reage a força ativa, sempre se contrapõe. Sua função é limitar a ação, retardar o novo, bloquear as energias da transformação, sendo sua missão a conservação, ou seja, conservar as coisas como estão. Segundo Nietzsche, a reativa só existe porque existe a ativa. A força reativa não deixa de ser força ou de ser importante porque é reativa; se sofre ação da ativa, ela não é esmagada ou achatada; ela mantém alguma distância, mantém uma espessura de realidade e nunca deixa de se contrapor as iniciativas transformadoras. Nós, humanos, vivemos orientados o tempo todo por essas duas forças. Esse é o nosso périplo.

Estamos no epicentro de mais uma revolução tecnológica. ‘Coisas’, como as tecnologias generativas, IA ou ChatGPT estão chegando para moldar uma nova era, que, a bem da verdade, todos já sabíamos que estava a caminho. A entrada feroz das máquinas de IA na Saúde era esperada e, de certo modo, pretendida. Todos, de algum modo, já estão se posicionando de forma ativa ou reativa. Dificilmente a transformação deixará de acontecer em escala, ainda que muitos fiquem pelo caminho. O próprio Nietzsche explica porque: “Há sempre alguma loucura na transformação. Mas há sempre um pouco de razão na loucura”.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)