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Depois do Open Banking, ‘Open Health’ reinventa a cadeia de saúde

Article-Depois do Open Banking, ‘Open Health’ reinventa a cadeia de saúde

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A sempre sonhada integração do registro eletrônico

“Um dia o pavão olhou para o céu e reclamou ao criador: ‘destes a mim a beleza, sendo eu a mais encantadora das aves, mas não me destes o poder de voar’. O urubu, lá de cima, vendo o pavão também reclamou: ‘me fizestes o mais feio dos pássaros e me obrigas a voar mostrando a todos minha feiura’... contam os exegetas da criação que do nada criou-se o peru, que é feio, não voa e morre na véspera”. Precisamos parar de criar perus na Saúde do país.

O registro eletrônico de saúde (EHR) foi inventado para historiar os problemas clínicos dos pacientes, sendo seu repositório de dados um dos mais importantes “ativos de saúde individual e populacional”. Todavia, a falta de compartilhamento de seus dados com a cadeia de saúde transforma os EHRs em silos fechados sob a guarda das empresas do setor. No Brasil, por exemplo, ele é um peru: não é usado, nem compartilhado e não consegue decolar. Poucos Provedores e Operadoras de Saúde tem algo minimamente similar a um Prontuário Eletrônico (strictu-senso), e quando têm “não mostram a ninguém” (nem ao paciente).

Deixar de ‘criar perus’, ou planejar passos de largo e efetivo alcance, significa, por exemplo, implementar 2 vetores que podem mudar a saúde no país: (1º.) obrigatoriedade de os players do setor implementarem e utilizarem os EHRs; e (2º.) compulsoriedade de compartilhar seus dados dentro da cadeia sanitária com total anuência e autorização do paciente. O primeiro vetor depende de uma política pública de saúde’ que institua mandatoriamente o uso do EHR em todas as instituições do país; o segundo depende do domínio das ‘tecnologias interoperáveis de redes públicas’, que já é familiar no país, sendo implementada atualmente em nossa indústria bancária com o nome de Open Banking (até dezembro todos os players de serviços bancários estarão integrados em uma plataforma aberta, com correntistas consentindo acesso a seus dados por qualquer instituição que ele assim desejar). Fora disso, são perus.

Os “bancos” e o “setor de saúde” têm algo em comum: são conhecidos mundialmente por dificultar o acesso e o compartilhamento dos dados de seus clientes. Uma luta de meio século, mas que está mudando rapidamente. No segmento bancário, vários países (Reino Unido, Rússia, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Coreia do Sul, Japão, Arábia Saudita, Nigéria, Quênia, México, etc.) e regiões (União Europeia) passaram a regular o compartilhamento de informações financeiras, ‘decretando’ o cliente como o fiel autorizador e consentidor do acesso a seus dados. O “milagre” do Open Banking, ou Open Finance, regulamenta plataformas abertas e promove a intercambialidade de dados entre os prestadores de serviços financeiros. Isso possibilita que o correntista do Banco A autorize que o Banco B acesse de forma segura seus dados, obtendo em troca facilidades e ofertas (linhas de crédito, juros menores, taxas reduzidas, ampliação dos limites de cheque especial, etc.). Em 2014, o Banco Central acenou para os bancos nacionais (Febraban) o ‘rumo do open banking’, que foi devidamente contemporizado pelo setor, afinal, meia dúzia de grandes bancos se fartando há meio século de produzir lucros não estaria interessada em interoperar dados com seus concorrentes. Mas o fenômeno das Fintechs (hoje, mais de 600 no país) foi mais forte e em 2020 o próprio BC estipulou as regras, regulações e requisitos de interoperabilidade, dando prazo para que a operação Open Banking iniciasse em 2021. No caso do Open Insurance, o setor de seguros foi mais inteligente e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) assumiu a regulação do programa, que tem até 31 de julho de 2022 para decolar (“Estrutura definitiva de governança”). Como explica o próprio BC, o alvo é múltiplo, mas simples: “cada pessoa poderá criar o seu próprio banco”. Uma revolução estupenda, de inúmeras complexidades e inequívocos ganhos aos usuários. Tudo indica que os prazos serão cumpridos, com o país revelando um dos mais rápidos e efetivos projetos de Open Finance do mundo.

No segmento da saúde, o compartilhamento dos “registros digitais dos pacientes” (EHRs – Electronic Health Records) se arrasta a décadas, mas nos últimos anos, principalmente com o advento das ‘General Data Protection Regulations’ (nossa LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados), o Open Health ganha musculatura. De forma muito parecida ao Open Banking, sua regulação possibilita a integração da cadeia de saúde de forma segura (criptografada), abrangente e com o consentimento total do usuário. Muito países perderam vidas na Covid-19 pela ausência de obrigatoriedade dos EHRs (vetor 1), como o Brasil. Outras nações, como os EUA, encheram seus obituários pandêmicos pela falta do vetor 2: compulsoriedade de compartilhar dados nacionalmente com anuência e autorização do paciente. Ter acesso on-line as informações clínicas dos pacientes, na hora certa, de maneira padronizada e com impacto direto na decisão clínica é a lógica do “Open Health”. Além disso, esse compartilhamento pode gerar uma abundante variabilidade de acessos, com uma ilimitada oferta de modelos e custos de atendimento. Em outras palavras, Open Health permitirá “que cada pessoa possa criar sua própria plataforma de serviços médicos”, utilizando inúmeros players, múltiplos serviços de diferentes fornecedores (incluindo os serviços públicos), pressionando a competitividade e gerando linhas sólidas de integração entre a saúde pública e a privada (no Brasil, por exemplo, uma consistente ‘operação-casada’ entre o SUS e a Saúde Suplementar).

Da mesma forma, seria desnecessário salientar a importância desse compartilhamento em todos os aspectos utilitaristas dos “sistemas nacionais de saúde”, incluindo o acompanhamento epidemiológico. O estudo “Real-time prediction of COVID-19 related mortality using Electronic Health Records”, publicado este ano pela Nature, mostra a importância dos ‘dois vetores’ na mortalidade pandêmica. Os pesquisadores criaram um ‘sistema de alerta precoce’, denominado CovEWS, que avalia o risco de mortalidade relacionado a Covid-19. O sistema utilizou ‘2.863 anos de tempo de observação’, em um coorte superior a 66 mil pacientes, de 69 diferentes instituições de saúde. O resultado mostrou que o CovEWS previu uma mortalidade de 78,8%, deixando claro a importância dos modelos preditivos baseados em EHRs, que podem reduzir os riscos de decisões equivocadas ou atrasadas no trato epidêmico. O CovEWS utiliza algoritmos de Análise de Sobrevivência (‘survival function’) e fornece avisos precoces de mortalidade (desempenho preditivo) com até 192 horas de antecedência. Em outras palavras: independente da ferramenta de predição, os EHRs salvam vidas e reduzem os efeitos críticos para grande parte dos pacientes. Assim, ter e compartilhar dados clínicos seguros e estruturados deve ser a mais importante “vacina digital deste século”.

Já o estudo “International Analysis of Electronic Health Records of Children and Youth Hospitalized With COVID-19 Infection in 6 Countries”, publicado pela JAMA (Journal of the American Medical Association) em julho de 2021, mostra que os dados de EHRs (extraídos dos Sistemas de Saúde de 6 diferentes países) permitem identificar tendências em hospitalizações de crianças e jovens com Covid-19, definindo características clínicas e epidemiológicas que possibilitam o monitoramento das populações pediátricas. Os pesquisadores da OMS e de várias instituições de controle epidêmico demoraram alguns meses para identificar a prevalência da Covid-19 nos jovens, sendo que a integração e interoperabilidade dos EHRs poderia ter explicitado essa variável com muito mais antecedência.

A pesquisa “Health informatics and EHR to support clinical research in the COVID-19 pandemic: an overview”, publicada em março de 2021 pela Oxford Academic, também escancarou a importância dos EHRs e de seu multi-acesso na Covid-19: “A pandemia mostrou claramente que os dados e suas análises são cruciais para lidar com uma emergência mundial, sendo que o compartilhamento de dados clínicos coletados pelos EHRs não são apenas essenciais para apoiar as atividades do dia-a-dia, mas também podem alavancar a pesquisa e apoiar decisões críticas sobre a eficácia de medicamentos e estratégias terapêuticas. A Covid-19 precisa de estratégias de compartilhamento de dados multi-institucionais capazes de lidar com os desafios que a sociedade enfrenta. A disponibilidade de dados clínicos confiáveis ​​pode impulsionar a compreensão da doença, aprofundando os insights sobre sua variabilidade ao longo do tempo”, explica o report. 

Na realidade, existe ao redor do mundo inúmeras plataformas de Open Health Data, podendo ser nacionais ou federadas, como o Open Database of Healthcare Facilities no Canadá; ou privadas, como o Google Datasets, ou o Registry of Open Data on AWS, ou a espanhola o HealthData29, etc.; ou acadêmicas  (Stanford Medicine, por exemplo); ou de várias outras instituições e autarquias, como o Medical Expenditure Panel Survey (MEPS), que acessa dados em tempo real dos  provedores de serviços nos EUA. Na maioria dos casos o objetivo é compartilhar informações anonimizadas dos EHRs para uso secundário (não diretamente ligado ao paciente). Parte do avanço dessas redes abertas deve-se ao FHIR (Fast Healthcare Interoperability Resources), um padrão HL7 para troca de informações em saúde capaz de interoperar sistemas sanitários digitais. O FHIR ajuda a resolver a explosão de dados em saúde, possibilitando mais acessibilidade, usabilidade e produtividade. Ocorre que quando pensamos em estruturas de Open Health nacionais as coisas transcendem a dimensão tecnológica (segurança e privacidade) e regulatória, com a dimensão cultural tendo uma notável importância. O “open-everything” depende da crença utilitarista de que é preciso “pensar o todo e não somente as partes”, com risco de um projeto se tornar somente mais um espasmo de modernidade (ou, um peru).

Numa manhã ensolarada de março de 2020, os gestores federais da Saúde dos EUA anunciaram as regras finais para o “acesso a informações interoperáveis para transformar a medicina em uma estrutura definitivamente baseada em dados”. A nova regra regulou TICSs (Tecnologias de Informação e Computação em Saúde) seguras, padronizadas e interoperáveis em todo o país, conforme a chamada “Lei de Curas do Século XXI”. No fundo, foi uma ação que já “flanava” por décadas nos gabinetes federais e foi propelida pelo impacto da Covid-19. No Brasil, a RNDS (Rede Nacional de Dados em Saúde), uma plataforma nacional de interoperabilidade de dados em saúde’, instituída em maio de 2020, também contempla o FHIR, que ajuda a suportar o projeto Conecte SUS, nosso programa nacional de transformação digital, que objetiva promover a troca de informações entre todos os pontos da Rede de Atenção à Saúde (de março a novembro de 2020, só nos laboratórios públicos e privados, a RNDS possibilitou um recebimento superior a 4 milhões de laudos diagnósticos da Covid-19). Qual a distância da RNDS para uma estrutura de Open Health? Difícil dizer, mas fácil de perceber a importância de ‘compartilhar dados clínicos’. Deveria ser a ‘meta óbvia’ desta década para o Ministério da Saúde (MS). Tão óbvia que até o Banco Central já estuda a sua implementação.

Seja por meio do BC, ou do MS, ou das agências reguladoras, ou mesmo das organizações setoriais que gravitam em torno da saúde, o Open Health é inevitável. Na Austrália, por exemplo, o registro eletrônico de saúde “My Health Record (MHR)” contém informações clínicas resumidas de todos os australianos, exceto aqueles que optaram por não participar do programa. Indivíduos e provedores de saúde têm acesso on-line ao sistema, sendo que ao final de 2019 mais de 90% dos australianos já tinham o seu MHR. Qualquer entidade australiana da cadeia de saúde (exceto as Seguradoras) pode solicitar autorização para acessar o MHR para uso secundário, o que significa aproveitar o conhecimento embutido nos MHRs para melhorar o (1) autocuidado; (2) os desfechos clínicos; (3) as pesquisas e estudo randomizados; (4) as estratégias de atenção primária; e (5) o planejamento dos ciclos de desenvolvimento tecnológico.

No Reino Unido, o NHS Digital compila os registros dos pacientes em um “banco nacional de dados”, chamado "the Spine”, que gera o “Summary Care Records (SCR)”, o equivalente britânico ao registro australiano. Ele permite que cada usuário tenha acesso a um ‘resumo de seus dados de saúde’, além de autorizar que as unidades clínicas do país também o acessem (atualmente 98% delas acessam). Da mesma forma, todos os EHRs hospitalares do país são duplicados no NHS Digital, que disponibiliza as informações para, por exemplo, produzir o relatório “Hospital Episode Statistics (HES)”. Esse acesso nacional possibilitou a criação do Clinical Practice Research Datalink (CPRD), o maior banco de dados de pesquisa médica do Reino Unido e um dos cinco maiores do mundo, onde cada GP (médico) pode acessá-lo para suporte a decisão diagnóstica. Um exemplo simples sobre o poder do CPRD está na promoção a saúde: dados de 1,3 milhão de crianças foram analisados por pesquisadores que concluíram que uma vacina contra meningite não estava associada a convulsões, como se suspeitava. Todas essas ações de compartilhamento de dados só existem devido ao conceito de Open Health, que avança no G20 com características e princípios singulares.

Quando pensamos em ‘dados abertos’ nossa intuição costuma relacionar aos dados gerados por organizações do setor público no exercício de suas funções, que podem ser reutilizados pelos cidadãos ou empresas do setor, ou seja: “dados abertos do setor público, ou dados públicos abertos ao setor”. O Brasil vem acumulando larga experiência na operação de “compartilhamento consentido de dados abertos”, sendo que 2021 foi um marco temporal nessa direção. Mesmo sem ‘ferramentas tecnológicas especialistas’, como blockchain, o país vem mostrando força tecnológica com o PIX, Open Banking e Open Insurance. É preciso aproveitar esse conhecimento e usá-lo na direção da saúde. Em todo o mundo, as cadeias de serviços médicos se preparam para conviver com as “plataformas abertas de dados”. Tudo será Open. Já existe o Open Delivery, onde ‘empresas de entregas’ se conectam com o varejo, telefonia e meios de pagamento, permitindo reduzir custos e delays. O Open Travel Alliance unificou a cadeia de serviços de viagens aéreas (hotéis, locadoras de carros, aeroportos, etc.), criando uma malha que transfigurou os serviços do modal aéreo. A revolução das APIs (83% do tráfego pessoal na internet é feito por elas) e a inevitabilidade de integração das cadeias de valor está mudando o curso das indústrias de serviços. Uma boa visão comparativa sobre Open Banking e o compartilhamento de dados dos EHRs foi proposta no estudo “Open Banking and Electronic Health Records”, publicado este ano por pesquisadores australianos da ACM (Association for Computing Machinery).

Nesse sentido, a Covid-19 empurrou a Saúde para o centro do jogo. A interoperabilidade e o compartilhamento de dados clínicos avançarão nos próximos anos o que não avançaram em meio século. Os dois vetores (compulsoriedade dos EHRs; e compartilhamento autorizado pelo usuário) vão redefinir as bases da saúde no país, ainda que boa parte da comunidade médica, associações classistas, agências reguladoras, parlamento e até os próprios players do setor possam resistir. Não adianta governar a saúde só pelo retrovisor, é preciso ousar e deixar de implementar somente soluções circunstanciais, emergenciais, de curto prazo e de efetividade duvidosa. Precisamos parar de inventar perus.


Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)