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Farmácia Robô não tripulada: transformação digital pelo autoatendimento

Article-Farmácia Robô não tripulada: transformação digital pelo autoatendimento

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RaaS – Robótica como serviço cresce na saúde

A primeira sequência completa do genoma humano demorou 5 anos para ser gerada. Hoje, dez anos depois, a mesma sequência pode ser obtida em 24 horas. Há uma década, um paciente agendava uma consulta médica especializada para as próximas 3 semanas. Hoje, a mediana é de 3 meses em quase todos os países em desenvolvimento. No campo da medicina genômica, houve um colossal avanço (CRISPR!). Na medicina funcional, ou seja, no apoio a ‘jornada do paciente’, nos arrastamos a passos de jabuti, e para trás. A demora em promover bons níveis de transformação digital é um dos principais motivos para a derrocada de vários segmentos das cadeias de saúde, não só no Brasil como no mundo.

Um dos players que mais vem sendo transformado nos últimos anos são as redes de varejo-farmacêutico. Pós-covid, o setor rapidamente perde atributos tradicionais e ganha funcionalidades adicionais. Grandes redes de drogarias nos EUA, por exemplo, como Rite Aid, CVS e Walgreens, fecharão mais de 1.500 lojas físicas. A Rite Aid, inclusive, pediu recuperação judicial em outubro (fechará 150 de seus 2.100 pontos de venda). Da mesma forma, a CVS deve eliminar cerca de 900 lojas até o final de 2024, fazendo reformas para se ajustar às necessidades dos ‘compradores on-line’. Não é diferente com a Walgreens (segunda maior rede dos EUA), que informou o fechamento de 150 lojas até o verão de 2024.

O mercado varejista global de medicamentos está em modo-errante, repleto de linhas sinuosas e atirando para todos os lados em busca de novas dimensões. Esgotou-se em si mesmo na concorrência com as vendas online, lutando para entrar em prumo com as novas demandas dos consumidores. Elementos e verticais tecnológicas empurram o setor para novos caminhos, como: e-commerce, terceirização, sistemas de pagamento sem moeda física, marketing preditivo e personalizado, armazéns autônomos, automação ‘sales-tasks’, experiências figitais com o consumidor, autoatendimento, realidade virtual varejista, modelos híbridos de venda (QRcode), D2C (‘direct to consumer’), lojas físicas desempenhando funções secundárias, aferição imediata e constante da experiência do consumidor, plataformização (multiproduto), personalização de ofertas, gestão robótica de estoques, entrega automatizada em veículos autônomos (drones), sensorização, etc.

Nessa direção, foi apresentada este ano a “farmácia robótica não-tripulada”, desenvolvida na Estônia, funcionando 24 x 7 e já disponível em vários mercados. Sua tecnologia permite que pacientes comprem medicamentos em quiosques robotizados, podendo também realizar no próprio local consultas-remotas com um farmacêutico. Lançada na Europa, trata-se da “farmácia de conveniência” da Grab2Go, uma startup estoniana apoiada pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. Sua tecnologia está ancorada em uma plataforma de inteligência artificial (Autonomous Dark Store), permitindo ao paciente acesso a full-pharmacy-service. O consumidor pode adquirir drogas prescritas, medicamentos de venda livre, cosméticos farmacêuticos, vitaminas e suplementos nutricionais. Utiliza unicamente um serviço de touchscreen que inclui uma eventual videochamada com um farmacêutico na própria estação. Os medicamentos estão disponíveis segundo a demanda local, considerando as especificidades de cada região. Entre outras instalações, o autosserviço já está disponível na rede de farmácias Benu, na Estônia (acompanhe no vídeo).

Os “robôs manipuladores de lojas de conveniência” têm sido aplicados em vários setores. Um dos desafios resolvidos por eles são os ‘sistemas autônomos de reabastecimento’, uma tarefa que exige minucioso planejamento, navegação inteligente e controle robótico em tempo real, além de segurança ao consumidor. Seus novos algoritmos já são capazes de responder às estratégias de reabastecimento e controle de robôs móveis. O estudo “Development of an Autonomous Robot Replenishment System for Convenience Stores”, publicado em 2023, mostra a engenharia por trás dessa operação. Assim, o setor varejista se transforma digitalmente, se reinventa e se prepara para novos saltos em apoio às conveniências do consumidor.

A transformação digital do varejo farmacêutico envolve basicamente quatro eixos centrais: (1) autoatendimento; (2) remotelização; (3) robotização na relação com o consumidor (chatbots, humanoides, etc.) e (4) serviços personalizados. O autoatendimento (self-service) é um dos estágios mais diretos para se alcançar o próximo nível na distribuição de medicamentos e insumos de saúde. Quase todas as indústrias de serviços deram largos passos nessa direção (nos últimos três anos, segundo relatório da Global Data, foram registadas e concedidas mais de 156 mil patentes no setor “quiosques automatizados de autoatendimento”). Na saúde, a disponibilidade de aplicações de autoatendimento ainda é tímida. Não por falta de demanda: conforme o Google Trends, o número de pesquisas por “autocuidado” quase quadruplicou desde 2018.

Autoatendimento é a “porta de entrada” do autocuidado, que é a “porta de saída” para muitos dos problemas de insolvência dos Sistemas de Saúde, inclusive públicos. Em vez de esperar por atendimento em sistemas telefônicos entupidos e complexos, pacientes desejam opções de autoatendimento para resolver suas demandas. O report (“Digital-First Customer Experience Report”), publicado em 2022, mostrou que 81% dos usuários desejam mais opções de autosserviço. A desconexão entre o que o paciente deseja e o que as empresas do setor oferecem cobra seu preço: segundo o estudo, 57% dos clientes abandonam uma marca após uma ou duas interações negativas de atendimento. O engajamento do paciente com o sistema de saúde (autossuficiência) está diretamente relacionado à facilidade de uso, conveniência e personalização de serviços. Os varejistas farmacêuticos estão descobrindo isso e incorporando a robótica e as plataformas de IA na equação.

Os quiosques de autoatendimento têm pelo menos 20 anos no mercado de serviços. Mas a “farmácia robótica não-tripulada” conta com um aparato digital impensável há duas décadas. Suportar essa operação sem nenhum humano exige vários níveis tecnológicos já desenvolvidos, como: sistema robótico totalmente autônomo; plataforma em nuvem de ‘autonomous-stores’; coleta de dados por IoT em tempo real; sistema robótico cartesiano de quatro eixos para busca e coleta do medicamento em estoque local; software para separação de pedidos; sistema automatizado de dispensação; sistema autônomo de manutenção preditiva; ‘data analytics’ de dados comportamentais (base de cliente-usuários); IA para disponibilização de sortimento; sistema de telehealth; etc. Essa “sopa de tecnologias em automação” (hard e soft) representa conquistas reais no setor de autoatendimento. É para lá que vamos: baixo custo, alta conveniência para o paciente e simplicidade operacional.

Em seu documento “Self-care interventions for sexual and reproductive health and rights to advance universal health coverage”, publicado em 2023, a OMS denomina de self-care interventions aquelas ‘ferramentas baseadas em evidências que apoiam o autocuidado, incluindo a dispensação de medicamentos, dispositivos médicos, suporte a decisão clínica por aconselhamento de máquina e várias outras tecnologias digitais que possam ser acessadas total ou parcialmente fora das instalações formais de cuidados em saúde'. O autoatendimento está na cartilha da OMS, mas não por conveniência ao paciente e sim pela escassez de mão-de-obra na Saúde. Conforme o documento, mais da metade da população mundial não tem acesso a serviços clínicos essenciais, estimando que a ‘escassez de profissionais de saúde deve atingir 10 milhões em 2030’. “As intervenções de autocuidado oferecem um enorme potencial para melhorar a ação individual e reduzir as desigualdades na saúde, aumentando a disponibilidade de opções de cuidados acessíveis e aceitáveis que complementam os serviços de saúde”, explica o documento.

A demanda mundial por dispositivos digitais de autoatendimento é nítida, principalmente no suporte à saúde da mulher. Dados mostram o impacto que o autoatendimento (quiosques de medicamentos, autotestagem, teleconsulta, etc.) pode trazer ao bioma de saúde feminino: (1) 164 milhões de mulheres em idade reprodutiva (15–49 anos) têm necessidades não atendidas de contracepção; (2) todos os dias, 1 milhão de novas infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) são adquiridas; (3) todos os anos, a infecção pelo HPV é responsável por meio milhão de casos de câncer do colo do útero (270 mil mortes anuais); (4) todos os dias 800 mulheres morrem de causas evitáveis relacionadas à gravidez ou parto; etc.

Dúzias de soluções de ‘self-care interventions’ já estão disponíveis para reduzir esses números, como, por exemplo: (1) automonitoramento da glicemia e/ou pressão arterial durante a gravidez; (2) autoadministração de contracepção injetável; (3) kits preditores de ovulação; (4) autoamostragem de HPV para rastreio cervical; (5) autoteste residencial para diagnóstico de gravidez; (6) aplicativos de automonitoramento voltados a conscientização da fertilidade (com base em sintomas); (7) autocoleta de amostras para testes de HIV, DST; etc. Na área dos aplicativos (apps) voltados à saúde feminina, a oferta é imensa embora a qualidade de boa parte ainda seja discutível.

Na área de automação dos serviços de autoatendimento baseados em robótica, o diferencial não é tecnológico, mas sim o modelo de inclusão. Todas as áreas carentes de automação robótica estão assistindo ao crescimento do modelo RaaS (Robótica como Serviço). Trata-se de um passo a mais na automação, sendo sua principal vantagem a facilidade de adoção: “em vez de comprar equipamentos e tecnologia robótica, os mesmos podem ser acessados como um serviço, permitindo que as empresas ‘aluguem plataformas robóticas’ e as acessem por meio de serviços de assinatura baseados em nuvem”. Além de eliminar os custos de aquisição, o RaaS oferece os benefícios da automação sem os desafios da manutenção. Robôs habilitados por IA já estão presentes em vários estoques hospitalares no Brasil.

É o RaaS que alavanca as farmácias robóticas não-tripuladas, que crescem no vácuo das plataformas de aprendizado de máquina (LLMs). Ou seja, uma ‘regra de ouro’ para a transformação digital em saúde não passa necessariamente pela aquisição de mais infraestrutura, treinamento profissional ou estações de autoatendimento. Tudo isso será disponibilizado por modelos de RaaS, SaaS, IaaS, ou seja, como XaaS (“everything as a service”). De acordo com pesquisa publicada em 2023 pela empresa de consultoria Grand View Research, o mercado de RaaS crescerá de US$ 1,33 bilhão em 2023 para US$ 4,12 bilhões em 2030, expandindo-se a uma taxa de crescimento anual de 17,5%.

Assim, a disponibilidade das farmácias-robôs de autoatendimento não vai crescer só pela conveniência aos desejos dos usuários, mas principalmente pela ausência (ou falência) de mecanismos sistêmicos baseados somente na utilização de profissionais de saúde. Não estamos falando em “inovação por condicionantes à modernidade”, mas de “inovação para sustentabilidade da saúde individual”. No Canadá, por exemplo, o autoatendimento avança para as unidades hospitalares: quiosques instalados em hospitais de Vancouver distribuem preservativos, seringas, tiras de teste medicamentosos, suprimentos para tratamento de feridas, kits de naloxona e vários outros itens. Trata-se de um projeto de saúde pública, promovido pela autoridade local de saúde.

Não são só as mulheres o alvo das plataformas de ‘self-care interventions’: “Um americano nascido em 2019 passará uma parte maior de sua vida tomando medicamentos prescritos do que estando casado ou estudando”, é o que explica o estudo “Life Course Patterns of Prescription Drug Use in the US”, publicado em outubro de 2023 e realizado pela pesquisadora Jessica Ho, professora de sociologia e demografia na Penn State (Universidade Estadual da Pensilvânia). Segundo a pesquisa, os homens americanos passarão aproximadamente 48% de suas vidas ingerindo medicamentos prescritos (as mulheres 60%). O estudo considerou pesquisas nacionais conduzidas pela Agência de Pesquisa e Qualidade em Saúde (AHRQ) e pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de 1996 a 2019. Em média, um menino recém-nascido em 2019, por exemplo, poderia esperar ingerir medicamentos prescritos por aproximadamente 37 anos, ou 48% de sua vida (uma menina, aproximadamente 47,5 anos). O impacto econômico desse consumo é estratosférico: as despesas com medicamentos prescritos nos EUA representarão 15,4% das despesas nacionais com saúde até 2026. Há pouca diferença com outros países, principalmente aqueles que têm deficiências de atendimento clínico-assistencial, como o Brasil.

Nesse sentido, a disponibilidade de medicamentos tem um passo incontornável no médio prazo: vendas online pela Web. Não há possibilidade de abastecer essa “legião fármaco-consumidora” somente no varejo físico ou robótico. Todas as nações incrementam regras, leis e regulamentações para diretrizes de comércio eletrônico de insumos de saúde. De acordo com pesquisa da mesma Grand View Research, 75 países já permitem a venda de medicamentos pela internet. A maioria deles localizados na Europa, América do Norte e Oceania. Possuem regulamentações específicas para essa atividade, alta auditagem e punições severas para os players que as descumprem. O crescimento anual desse setor deve chegar a 19,8% entre 2023 e 2030. No Brasil, a venda de medicamentos pela internet é permitida desde 2010, sendo vedada a oferta em sites que não pertençam às farmácias ou drogarias licenciadas pelos órgãos de vigilância sanitária. 

É provável que os serviços de ‘varejo farmacêutico físico’ tenham os dias contados, migrando de forma crescente para a venda-online e utilizando suas unidades físicas para serviços complementares de saúde, principalmente no primary care. Na conferência HLTH 2023 (Las Vegas), a mesma Walgreens que anunciou o fechamento de lojas anunciou também que passará a oferecer ‘serviços virtuais de saúde direto ao consumidor’ ainda este ano (Walgreens Virtual Healthcare). Os pacientes não poderão usar o seguro para pagar essas visitas, mas a empresa promete cobrar US$ 33 por visitas remotas em chat, e de US$ 36 a US$ 75 em vídeo. O mesmo tipo de serviço cresce também no varejo farmacêutico nacional (confira aqui). A transformação setorial é ungida pela transformação digital, está pressionada pela transformação demográfica, cresce na esteira de um consumidor cada vez mais digitalizado (95% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos usam internet no Brasil – fonte: Cetic.br), contando com o apoio de instituições como a OMS. Além disso, o setor precisa alçar voo antes que as bigtechs ocupem todos os espaços. Não adianta fugir da mudança, ou desacelerar o passo. Ela virá até nós e nos alcançará, sem pedir permissão para nos ultrapassar.

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)