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“Quando o cheiro torna-se digital, e o nariz-eletrônico evidencial”

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O salto da tecnologia olfativa

Em dezembro de 2022, na Alemanha, turistas se reuniram no Museu Ulm em torno da pintura “Cristo nel limbo”, criada pelo pintor alemão Martin Schaffner (1478–1548). Todos respiravam fundo, ficando ali por minutos sentido o cheiro da fumaça e do enxofre que evocava os “portões do inferno” retratado na obra renascentista. Graças a difusores portáteis de perfume, eles sentiam o “aroma da obra”. A experiência fazia parte da turnê Follow Your Nose: a Guided Tour with Smells”, que combinava obras de arte que retratam elementos odoríferos (jardins, flores, almofadas de perfume, mesas fartas de comida, etc.) com aromas reconstruídos artificialmente. “A sensação é deslumbrante”, explica Rachel Herz, neurocientista da Brown University e especialista na ciência do olfato. “Isso torna o cheiro realmente único em relação à forma como experimentamos o mundo ao nosso redor. Nossa experiência com o perfume é emocional e visceral devido a nossa estrutura neural”, resume Herz. O projeto “Siga seu cheiro” foi desenvolvido pela Odeuropa, uma organização de pesquisa que reúne expertise em mineração sensorial e patrimônio olfativo. A Inteligência Artificial está sendo usada no projeto para pesquisar documentos históricos e rastrear cheiros da Europa (desde o final do século XVI até o início do século XX). A pesquisa continua: mais de 250 mil documentos em sete idiomas diferentes estão sendo “esquadrinhados” para descobrir como a Europa cheirava no passado. A informação será usada para criar a Encyclopaedia of Smell Heritage.

O cheiro é nosso sentido mais oprimido. Mas, aos poucos, essa realidade está mudando e o que vem pela frente mostra como teremos acesso a uma infinidade de novas descobertas olfativas. O “cheiro digital” (‘olfactory technology’), por exemplo, é uma combinação de software e hardware para representar via Internet ‘odores em formato digital’. Trata-se de uma ‘tecnologia que permite às pessoas transmitir, reproduzir e recapturar cheiros e fragrâncias virtualmente sem estar perto da fonte do aroma’. Um sensor utiliza algoritmos para produzir o cheiro necessário, sendo que ambos reconhecem e analisam a composição química de um aroma específico, gerando uma “representação digital correspondente ao odor”. Cheiros digitais também já podem ser obtidos em laboratório por meio de simulação: dados do sistema olfativo humano (receptores que reagem à estrutura molecular do cheiro) são usados ​​para criar matrizes que produzem representações digitais de diferentes odores. Nesse caso, o olfato digital requer um difusor ou dispensador. Ao conectar esses dispositivos ao computador, o cheiro pode ser liberado e experimentado pelo usuário em um ambiente virtual.

Talvez você ache tudo isso aquelas propostas fashion para compelir o consumo de metaverso ou de realidade virtuais. É possível que seja verdade, mas, depois de anos de pesquisa, a tecnologia olfativa dá um salto triplo: estudo publicado em 2023 por pesquisadores da University of Massachusetts Amherst (“Microbial nanowires with genetically modified peptide ligands to sustainably fabricate electronic sensing devices”) tem tudo para mudar, em pouco tempo, o poder das inovações  olfativas. O estudo mostrou que um nanofio (10 mil vezes mais fino que um cabelo humano) pode ser “cultivado por bactérias comuns”, sendo capaz de ser ajustado para "cheirar" uma vasta gama de marcadores químicos. A pesquisa causou grande assombro, primeiro pelo refinamento do trabalho e segundo por sua conclusão: “os nanofios produzidos microbianamente podem ser projetados para detecção efetiva de uma diversidade de gases de importância biomédica, ambiental ou prática. Também será possível adaptar nanofios para detectar elementos não voláteis, como proteínas, vírus, bactérias patogênicas e íons metálicos. Sensores (‘protein nanowires’) demonstraram inúmeras novas possibilidades para desenvolver dispositivos de monitoramento, autoalimentados e sustentáveis, voltados a aplicações biomédicas”.

Assim, os nanofios, quando especialmente ajustados, podem ser combinados com vestíveis (wearables) se transformando em ferramentas para monitorar possíveis complicações de saúde. A descoberta, liderada por Derek Lovley (professor de Microbiologia da UMass Amherst) e Jun Yao (professor de engenharia elétrica da mesma universidade), está baseada em nossa estrutura nasal. “O nariz humano tem centenas de receptores, cada um sensível a uma molécula específica”, diz Yao. “Eles são muito mais sensíveis e eficientes do que qualquer dispositivo mecânico ou químico que possa ser projetado. Nós nos perguntamos como poderíamos alavancar o próprio design biológico em vez de depender de um material sintético”, completa ele. Para fazer isso, eles usaram uma bactéria conhecida como geobacter sulfurreducens, que tem a “capacidade natural de desenvolver nanofios minúsculos e eletricamente condutores”. Assim, eles passaram a editá-la geneticamente. “O que fizemos”, diz Lovley, “foi pegar o 'gene-nanofio' e uni-lo ao DNA de Escherichia Coli, uma das bactérias mais difundidas no mundo".

Modificados geneticamente, os nanofios se tornam 100 vezes mais responsivos à amônia, por exemplo. Nessa direção, os “nanofios produzidos por micróbios” funcionam muito melhor como sensores do que os elementos anteriores (fabricados com silício ou metal). A partir desse estudo, os novos sensores terão aplicações evidenciais na medicina e na prática clínico-assistencial (evidência é o caráter daquilo que é incontestável, que todos podem verificar e que prova a existência com alto grau de probabilidade). Toshiyuki Ueki, outro coautor da pesquisa, explica: “é possível projetar peptídeos únicos, cada um se ligando especificamente a molécula de interesse. Assim, à medida que mais ‘moléculas rastreadoras’ emitidas pelo corpo são identificadas (específicas para uma determinada doença), podemos desenvolver sensores que incorporam centenas de diferentes ‘nanofios farejadores’ [de produtos químicos], capazes de monitorar todos os tipos de condições de saúde”, concluiu Ueki. Como esses nanofios são cultivados por bactérias, eles são orgânicos, biodegradáveis e muito mais ecológicos do que qualquer material inorgânico (sintético). No fundo, a descoberta é um poderoso nariz-eletrônico (e-Nose) capaz de transformar o monitoramento da saúde. e-Nose é conhecido como um dispositivo utilizado para detectar diferentes tipos de odores, sendo cada vez mais útil em aplicações como segurança alimentar, monitoramento ambiental e diagnóstico médico (podendo fornecer resultados em tempo real). A novidade, obtida pela University of Massachusetts Amherst, são os nanofios microbianos, um avanço extraordinário para velocidade de produção e redução do custeio das “máquinas olfativas”. 

Do cheiro digital até o nariz-eletrônico, essas plataformas possuem uma convergência: imitam o nariz humano. Para isso, o arsenal de elementos que permitem essa simulação é cada vez mais poderoso (sensores ópticos, espectrometria de massa, espectrometria de mobilidade iônica, cromatografia gasosa, espectroscopia infravermelha, óxido metálico, detector de fotoionização, sensores catalíticos, gás eletroquímico, ondas acústicas, microbalança de cristal de quartzo, etc.). Some-se a isso o uso de Inteligência Artificial para análise de componentes, ou identificação de vetores aromáticos, ou mesmo para reconhecimento de padrões olfativos, sem falar numa infinidade de algoritmos específicos para cada vetor aromático (na indústria de perfumaria, por exemplo, machine learning é capaz de combinar uma centena de vetores olfativos, gerando bibliotecas de odores minuciosamente configurados para garantir patentes).

e-Nose não é uma inovação periférica, ou frugal, ou meramente orientada a instâncias laboratoriais. Algumas aplicações já são realidade e serão mais eficientes e efetivas com os “nanofios microbianos”, como, por exemplo: (1) identificar os níveis de qualidade dos vinhos (ou de inúmeros outros destilados) no contexto de sua produção, comercialização ou degustação (acidez, por exemplo); (2) durante o processo de elaboração, as azeitonas são primeiro tratadas com álcalis, passando depois por uma fase de lavagem e fermentação em salmoura, que lhes confere características organolépticas únicas. O e-Nose é capaz de discriminar salmouras sintéticas, alteradas por diferentes fungos de acordo com seus atributos olfativos; (3) o nariz-eletrônico já é também uma poderosa ferramenta no monitoramento da qualidade do chá, uma indústria que depende notavelmente da infusão de folhas, flores, raízes, plantas, etc. Os avanços olfativos chegarão a nossa cozinha, estarão presentes nos ambientes de trabalho e serão de fundamental relevância na área biomédica.  

O estudo “Diagnostic Performance of Electronic Noses in Cancer Diagnoses Using Exhaled Breath”, publicado em 2022, mostra o resultado do nariz-eletrônico na prospecção do câncer. A revisão sistemática (em meta-análise) identificou 52 estudos com 3.677 pacientes com câncer, a partir dos quais a análise descobriu que os narizes-eletrônicos podem ter uma sensibilidade de 90% e uma especificidade de 87% na detecção de câncer. O estudo avalia o contexto a partir do uso de compostos orgânicos voláteis (VOCs) na respiração exalada. VOCs são produtos da degradação de processos bioquímicos no corpo humano que podem ser detectados na respiração. Devido à sua baixa solubilidade no sangue, os VOCs se difundem facilmente no ar (alveolar) e são posteriormente excretados pela respiração, permitindo a sua detecção.

Outro potencial gigantesco que as novas tecnologias olfativas carregam (já em teste) é a possibilidade de combinar o nariz-eletrônico com a quimiometria, fornecendo uma ‘impressão digital olfativa’ única do crescimento de cada microrganismo (utiliza sensores de gás). É o que mostra o trabalhoA Lab-Made E-Nose-MOS Device for Assessing the Bacterial Growth in a Solid Culture Medium”, publicado em 2022.  A conclusão da pesquisa: “o dispositivo sensor olfatório permitiu avaliar o número de unidades formadoras de colônias (ou seja, o número de microrganismos) de cada uma das quatro bactérias estudadas, cultivadas separadamente em meio de cultura sólido BHI, com os respectivos erros quadráticos médios tão baixos quanto 1 a 4 colônias. Mesmo com toda cautela que cabe nesse tipo de pesquisa, o estudo pode ser visto como uma prova de conceito de que o nariz-eletrônico é uma estratégia complementar rápida, não invasiva e ecológica comparando as convencionais abordagens analíticas”.

Da mesma forma, obtivemos acesso a uma pesquisa ainda em fase de validação (a ser publicada no Journal of Breath Research em março/abril de 2023), intitulada “A review on electronic nose for diagnosis and monitoring treatment response in lung câncer”, que assevera: “A maioria dos casos de câncer de pulmão são diagnosticados em estágio avançado devido a recursos limitados de infraestrutura, recursos humanos capacitados ou demora na suspeição clínica. A tomografia computadorizada (LDCT) é uma ferramenta de triagem para a detecção precoce desse câncer, mas pode não ser uma opção viável para a maioria dos países em desenvolvimento. O nariz-eletrônico (e-NOSE) é um dispositivo não invasivo desenvolvido para o diagnóstico de câncer de pulmão, monitorando a resposta pela análise do ar exalado de compostos orgânicos voláteis (VOCs). A ‘impressão respiratória’ mostrou diferir não apenas entre câncer de pulmão e outras doenças respiratórias, mas também entre vários tipos de câncer de pulmão. Portanto, postulamos que a análise da respiração por nariz-eletrônico pode ser um potencial biomarcador para a detecção precoce desse câncer”.

Enquanto pesquisas anunciam avanços notáveis na compreensão do olfato, startups (healthtechs) já apresentam plataformas de IA voltadas a tecnologia olfativa. A francesa Aryballe afirma usar aprendizado de máquina e sensores especiais para ajudar os clientes a desenvolver produtos. Semelhante ao nosso olfato, o olfato digital (digital smell) da empresa imita o processo que nosso cérebro usa para identificar e diferenciar odores, capturando assinaturas de aromas por meio de soluções algorítmicas. Seus biossensores, enxertados em fotônica de silício, capturam dados odoríficos e os repassam a máquinas de IA que analisam as “digitais do odor” para que clientes tomem decisões sobre a produção de bebidas, perfumes, etc. Da mesma forma, a Aromyx, com sede em São Francisco (EUA), “replica o paladar e o olfato humano” usando ensaios baseados em células, gerando “uma visão dos sentimentos dos consumidores sobre uma ampla gama de experiências sensoriais”. A biotecnologia somada a IA permite a empresa desenvolver ‘medições sobre o que saboreamos ou cheiramos em uma variedade de situações’. Já a Breathomix e a The eNose Company desenvolveram narizes-eletrônicos também para analisar a respiração dos pacientes, detectando doenças e apoiando o diagnóstico oncológico precoce. A eNose Company, por exemplo, desenvolveu um analisador de respiração portátil para superar obstáculos que impeçam a detecção precoce de patologias como câncer de pulmão e cólon.

O NOS-DX1000, por exemplo, é o dispositivo de olfatometria digital da Sony. Ele promete tornar os testes olfativos muito mais fáceis para pacientes e médicos. Com previsão de comercialização ainda em 2023, ele pode ser operado por tablet, leva apenas 10 minutos para realizar o teste, sendo pequeno e portátil. Um cartucho contido no dispositivo (fabricado pela japonesa Daiichi Yakuhin Sangyo) fornece “cinco cheiros diferentes em oito níveis de intensidade”. A tecnologia “Tensor Valve” (Sony) permite que os cheiros sejam momentaneamente apresentados ao paciente. Isso elimina a necessidade de uma sala especial com ar-condicionado para evitar o vazamento dos odores. “Finalmente alcançamos a digitalização da medição olfativa”, diz Shuji Fujita, um dos líderes do projeto. Médicos de uma legião de pacientes covidianos, que perderam a sensibilidade olfativa pós infecção da Covid-19, poderão utilizar esse tipo de equipamento para monitorar as habilidades olfativas dos pacientes, assim como Laboratórios de Medicina Diagnóstica podem desenvolver linhas de teste baseadas em dispositivos olfativos que combinam novas tecnologias e aprendizado de máquina.

Em resumo: os nanofios descobertos pela University of Massachusetts Amherst vão se juntar a milhares de estudos olfativos que avançam pelo mundo, acelerando o poder de desenvolver centenas de aplicações médicas ou domiciliares capazes de abrir uma nova era na detecção digital do cheiro. Microrganismos poderão montar monômeros de proteínas oligoméricas, com condutividade intrínseca, produzindo um material eletrônico robusto e estável para múltiplas aplicações. O olfato digital está se consolidando e em breve estará disponível “nas melhores casas do ramo”. Nos próximos anos (quiçá meses), o cheiro digital decolará em uma ampla gama de aplicações, que vão desde a detecção de doenças, vigilância da qualidade do ar, detecção de poluentes, monitoramento de alimentos/bebidas, etc. Confira o mediacast “Future of Digital Health” de 29/03, com a participação de Daniel Grecca, Diretor de Saúde Populacional do Hospital Sírio-Libanês, onde o tema “digital smell” também estará sendo abordado.

Imagine-se sentado em frente à uma tela (TV, smartphone, notebook, etc.) vendo e sentindo uma publicidade sobre velas perfumadas, novos sabores de chocolate, cenários campestres paradisíacos e perfumes estravagantes. Pense em clínicas de recuperação olfativa enviando pela Internet aromas capazes de testar nossa qualidade olfativa em tempo real. Nossa “visão” de mundo ganhará reforço epistemológico com as novas tecnologias olfativas. E, talvez, quando você enviar um WhatsApp para a pessoa querida, ele venha acompanhado da fragrância que os acompanhou durante as grandes aventuras. Explicou o médico, etimologista e pesquisador norte-americano Lewis Thomas (1913-1993): "O ato de cheirar algo, qualquer coisa, é notavelmente parecido com o ato de pensar. Imediatamente no momento da percepção, você pode sentir a mente funcionando, enviando odores de um lugar a outro, desencadeando repertórios complexos através do cérebro, pesquisando um elemento após o outro em busca de sinais de reconhecimento, ou de velhas memórias, ou simplesmente de novas conexões com o mundo".

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)