faz parte da divisão Informa Markets da Informa PLC

Este site é operado por uma empresa ou empresas de propriedade da Informa PLC e todos os direitos autorais residem com eles. A sede da Informa PLC é 5 Howick Place, Londres SW1P 1WG. Registrado na Inglaterra e no País de Gales. Número 8860726.

Quando o profissional de saúde é a segunda vítima

Article-Quando o profissional de saúde é a segunda vítima

Profissional de Saúde.png

Quem lê o título deste artigo pode ter uma rápida impressão de que nas próximas linhas serão apresentadas justificativas para defesa do profissional de saúde, frente aos eventos que causam danos a pacientes em consultórios e hospitais. Não é essa a ideia. Aqui falamos de profissionais que têm como valor e premissa básica do seu trabalho o cuidado com o ser humano de forma integral, com qualidade e segurança. No entanto, esses mesmos profissionais, pela sua condição de humanos falíveis, também podem cometer erros, trazendo consequências desfavoráveis e danosas aos pacientes. Vale destacar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define “eventos adversos no cuidado de saúde” como incidentes que resultam em danos não intencionais decorrentes da assistência e não relacionados à evolução natural da doença de base do paciente. Quando trago à tona uma condição do profissional de saúde que raramente é levada em consideração pela sociedade – de ser uma segunda vítima - é porque os eventos adversos no cuidado com os pacientes, na grande maioria das vezes, advêm de falhas de processos, e não falha de pessoas, como revelou o relatório To Err is Human (Errar é Humano) do Institute of Medicine (IOM) de 1999, considerado um marco na história da segurança do paciente. O relatório apontou que cerca de 100 mil pessoas morreram em hospitais a cada ano, vítimas de eventos adversos nos Estados Unidos. Essa alta incidência resultou numa taxa de mortalidade maior do que as atribuídas aos pacientes com HIV positivo, câncer de mama ou atropelamentos.¹

Estudos realizados em outros países como Austrália, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia, Dinamarca, França, Portugal, Turquia, Espanha, Suécia, Holanda e Brasil, também apontaram uma alta incidência de eventos adversos. Em média, 10% dos pacientes internados sofrem algum tipo de evento adverso e destes 50% seriam evitáveis.² São inúmeros os casos noticiados pela mídia, porém, sem o devido espaço para o entendimento do contexto no qual ocorrem e das reais causas que os geraram.

Importante deixar aqui todo o meu respeito aos pacientes e famílias que tiveram diagnósticos equivocados, tratamentos atrasados ou inadequados, e até óbitos, devido a qualquer tipo de falha em ambientes de saúde. Ao mesmo tempo, é fundamental separar o joio do trigo e investir em educação e aprendizado, em substituição à culpa e até mesmo a punição, quando, obviamente, for descartada qualquer evidência de dolo. Ainda hoje, vimos acontecer com frequência o julgamento e punição de profissionais envolvidos em tais eventos, ao tempo que organizações prometem rever seus processos para que o problema não ocorra novamente. Porém, se voltarmos e analisarmos os inúmeros casos noticiados, cabe a pergunta “o que verdadeiramente mudou nestas organizações a partir de desfechos trágicos envolvendo pacientes e profissionais?”. Passamos assim a refletir o quanto a segurança do paciente é definida como prioridade nas organizações de saúde, e quais estruturas, métodos e processos são escolhidos para análise criteriosa dos eventos adversos que acontecem em seus ambientes. Já sabemos que eles ocorrem por causas multifatoriais, e se não trabalhada a verdadeira causa raiz, podem ocorrer de novo, provocando até desfechos ainda mais graves.

Estudos sobre eventos adversos descrevem dentre as principais causas a falta de condições estruturais no ambiente de trabalho, de materiais e de equipamentos inadequados; dimensionamento insuficiente de pessoal, sobrecarga de trabalho, cansaço e estresse do profissional; equívocos no planejamento das atividades, falhas de processo e ausência de comunicação efetiva, dentre outras.³

Por sua complexidade, esse é um dos temas que discutiremos em setembro, durante o Congresso da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente, a SOBRASP (https://www.sobrasp2022.com.br/). O profissional de saúde é vítima. A segunda vítima. Este termo foi usado pela primeira vez em 2000, por Albert Wu, professor de política e gestão em saúde na Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, para descrever o impacto dos eventos adversos nos profissionais de saúde.4 A literatura médica descreve relatos de que eles sofrem por se envolverem em eventos adversos e as repercussões podem ser muitas, como respostas emocionais traduzidas em insegurança, vergonha, ansiedade, culpa, e que se não tratadas, podem levar a condições que requerem mais atenção como depressão, transtorno de estresse pós-traumático e ideação suicida.

Segundo pesquisas e estudos divulgados pela OMS, no mundo, todos os anos, ocorrem 421 milhões de internações com cerca de 42,7 milhões de eventos adversos; as infecções hospitalares afetam 14 de cada 100 pacientes internados; pelo menos 7 milhões de pessoas a cada ano sofrem complicações cirúrgicas incapacitantes, das quais mais de 1 milhão morrem; pelo menos 5% dos adultos nos Estados Unidos vivenciam um erro de diagnóstico a cada ano em ambientes ambulatoriais. Esses dados científicos produzidos nos últimos anos são mais do que suficientes para que a cultura da segurança seja a base de trabalho para todo o cuidado, e não uma atividade paralela à gestão da organização.

Existem áreas dedicadas a estudar, planejar e executar ações que promovam a segurança do paciente nas organizações de saúde, que correspondem aos Núcleos de Segurança do Paciente, obrigatórios a partir da publicação da RDC 36 da ANVISA em 2013. Outra ação pouco explorada de forma sistemática nas organizações de saúde do nosso país é a educação do paciente e família, para que eles sejam, também, atores no processo de garantia de sua segurança, tornando-se uma barreira importante para evitar os eventos adversos.

Essa temática é tão importante que o Ministério da Saúde instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), também em 2013, com o intuito de contribuir para a qualificação do cuidado em saúde no Brasil. Este programa é constituído por quatro eixos: o estímulo a uma prática assistencial segura; o envolvimento do cidadão na sua segurança; a inclusão do tema no ensino; e o incremento de pesquisa sobre o tema. As instituições de certificação da qualidade em saúde, como as acreditações hospitalares, também reservam espaço significativo em suas diretrizes e requisitos para a definição dos métodos que aumentem a segurança do paciente e dos profissionais.

Observo que a mudança no cenário atual passa pelo entendimento de que todos nós temos uma parcela de responsabilidade para a implantação de uma cultura de segurança mais efetiva no segmento de saúde. Da indústria às operadoras de planos de saúde, da organização de saúde às entidades regulamentadoras, dos profissionais aos usuários do sistema. É uma construção coletiva que só dará certo se usarmos da verdadeira lógica do aprendizado a partir do evento adverso, pautado em métodos sérios para análise do ocorrido, com transparência e ética para com todos os envolvidos.

É uma pena que, no dia a dia da produção jornalística e nas ainda mais efêmeras redes sociais que impactam a opinião de milhões de pessoas, não caiba o aprofundamento sobre o tema. Espero que esse artigo seja uma pequena contribuição para a sociedade, a fim de que não façamos mais vítimas além daquelas que, infelizmente, ainda sofrem com uma cultura de segurança do paciente incipiente em nosso país.

Fontes:

1. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, McKay T, Pike KC. To err is human. Washington, DC: National Academy Press; 2000.

2. De Vries EM, Ramrattan MA, Smorenburg SM, Gouma DJ, Boermeester MA. The incidence and nature or in-hospital adverse events: a systematic review. Qual Saf Health Care. 2008; 17:216-223.

3. Bohomol E. Promoting professional safety in addition to patient safety. Acta Paul Enferm. 2019;32(5):6-8.

4. Wu AW. Medical error: the second victim. The doctor who makes the mistake needs help too. BMJ. 2000;320(7237):726–727. doi:10.1136/bmj.320.7237.726

divulgaçãoJanaína Regis Lemos Barbosa.jpeg

*Janaína Regis Lemos Barbosa Diretora de Relações Institucionais da SOBRASP