Atualmente, questiona-se a atuação da ANS, as operadoras, os prestadores de serviços (hospitais, profissionais de saúde, etc.) e até mesmo os beneficiários, o que nos permite refletir se na cadeia da saúde suplementar existem ou não vilões que afetam a sustentabilidade do setor.
É comum depararmos em uma conversa informal com argumentos de que as operadoras visam exclusivamente lucrar, impondo aos beneficiários reajustes extremamente abusivos. De fato, são empresas que visam lucro - à exceção das autogestões que não tem finalidade lucrativa, mas será que esse comentado lucro procede? O desempenho financeiro das operadoras é positivo?
De acordo com dados divulgados pela ANS, o setor registrou lucro líquido de R$ 2 bilhões na soma dos seis primeiros meses de 2023. Tal resultado equivale a aproximadamente 1,3% da receita total acumulada no período, que foi de quase R$ 154 bilhões. Ou seja, para cada R$ 100,00 de receitas no 1º sem/2023, o setor auferiu cerca de R$ 1,3 de lucro ou sobra.
Isso significa que o resultado, certamente, é muito inferior à taxa mínima de atratividade, que representa o mínimo que o investidor se propõe a ganhar quando aplica seus recursos em um negócio. A tendência é que o crescimento das despesas seja ainda maior que o crescimento das receitas para os próximos anos.
Sobre os prestadores - que são as peças fundamentais para a manutenção do setor, indago o seguinte: se tudo está interligado e as operadoras não têm tido um lucro com tanta margem financeira de segurança, como supor que os prestadores estariam, se quem paga a conta são as operadoras?
Segundo notícias veiculadas, a AMB solicitou à ANS a disponibilização da segregação de dados de despesas assistenciais para, em linhas gerais, averiguar o quanto os honorários médicos representam do total de custos, o que sugere que a classe não está satisfeita com os resultados.
Destaca-se, também, os crescentes movimentos de incorporações/aquisições de hospitais de grande e pequeno porte, da mesma forma que as operadoras de maior porte estão absorvendo operadoras/prestadores menores.
É notório que o nível de exigências legais e regulatórias tem aumentado exponencialmente, o que, consequentemente, faz com que as operadoras e os prestadores necessitem de uma melhor estrutura econômico-financeira para o cumprimento dessas exigências.
O momento carece de cooperação e até mesmo dessas concentrações, não se nota mais uma predominância de concorrências acirradas a todo e qualquer custo. Afinal, aquela frase “Saúde não tem preço, mas tem valor” nunca fez tanto sentido.
Ademais, ainda existe uma parcela de prestadores envolvidos em esquemas de fraudes relacionados ao reembolso assistido, reembolso sem desembolso, além da quantidade esmagadora de exames realizados desnecessariamente e os empréstimos de carteirinhas praticados pelo próprio beneficiário.
Em um estudo elaborado pelo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS) em parceria com a consultoria Ernst Young (EY), estima-se uma perda de até 12,7% das suas receitas no ano passado, um prejuízo entre R$ 30 a 34 bilhões.
O tema é bastante sensível, pois além de afetar a sustentabilidade do setor, têm como principal coadjuvante o próprio beneficiário que, em sua maioria, sequer tem conhecimento de que está cometendo um crime. Logo, é fundamental a disseminação da informação, de maneira que todos saibam dos crimes em potencial envolvidos nessas práticas ilícitas, tais como: falsidade ideológica, falsificação de documentos particular, uso de documento falso, falsa identidade, ou seja, existe a possibilidade de uma investigação criminal.
Nesse ponto, somente a divulgação de informações com clareza e transparência poderá inibir a participação do beneficiário, com a sua conscientização sobre o uso adequado do plano de saúde. Alinhado a isso, compete às operadoras buscar soluções para mitigar esse problema que tem assolado o mercado, implementando medidas estratégicas, com programas internos de controle, utilizando-se, sempre que possível, de inovações tecnológicas para tentar inibir tal ‘modus operandi’.
Nesse cenário caótico, temos a ANS com a missão de “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais - inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores - e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país”.
A ANS avançou bastante nos últimos anos, mas, ainda, há quem diga que é “pro consumidor”; há quem defenda que priorizam ações que favorecem as operadoras. Contudo, o que deve prevalecer é o equilíbrio e a razoabilidade, pois atuar estritamente como mais um órgão de defesa do consumidor põe em risco a sustentabilidade do setor. Cabe lembrar que a ANS tem sido desafiada com alterações legislativas e PL que ignoram completamente sua autonomia e capacidade técnica e decisória, contribuindo com o aumento das judicializações, totalmente desalinhadas com os entendimentos da ANS.
É nítido que, se não bastassem as tendências do mercado, tais como: o envelhecimento da população, a incorporação de novas tecnologias, o aumento da frequência de utilização, inexistência de limite de valores de utilização, medicamentos de alto custo, ainda existe o fator legislativo que modifica e promete modificar entendimentos já solidificados, acarretando em judicializações para pleitos relacionados a coberturas não previstas no Rol da ANS, à aplicação de reajustes, ao custeio de medicamentos de alto custo, etc.
O ambiente é extremamente complexo – a saúde é o bem mais precioso do cidadão – mas, a natureza dos planos é suplementar e, a meu ver, não deveria ser uma única alternativa, eximindo o Estado das suas responsabilidades, pois o direito à saúde é constitucionalmente garantido a toda a sociedade civil. Nesse ecossistema todos têm seus argumentos para justificar suas ações, com base nisso finalizo com uma sugestão de reflexão: “Existem vilões da saúde suplementar?”.
Débora Coelho é especialista jurídica na Funcional Health Tech, empresa que desenvolve soluções exclusivas para indústria e varejo farmacêutico, operadoras e corretoras de saúde, além de benefícios corporativos. É advogada especializada em consultoria regulatória em Saúde Suplementar, responsável por elaborar pareceres e orientações regulatórias para operadoras de planos de saúde e/ou players atuantes no mercado de saúde suplementar, construção e condução de projetos relacionados ao cumprimento de normativas vigentes; aplicação de treinamentos regulatórios; acompanhamento das normativas da ANS e análise do monitoramentos das obrigações das operadoras.