Na interseção entre saúde, tecnologia e design, a arquitetura hospitalar está sendo moldada para pensar o ambiente de saúde como um ecossistema adaptável, inteligente e centrado no paciente. A inovação, nesse contexto, não é apenas uma escolha estética ou funcional, mas uma necessidade estratégica para enfrentar os desafios da medicina moderna.
As tendências de design hospitalar evoluíram ao longo do tempo para refletir mudanças profundas na área da saúde, enfatizando não apenas a tecnologia médica avançada, mas também um foco maior no bem-estar proporcionado por essas instalações.
A integração de tecnologias avançadas, como telemedicina, dispositivos vestíveis e quartos hospitalares inteligentes, mostrou o potencial de melhorar o atendimento ao paciente, agilizar os fluxos de trabalho e melhorar a eficiência geral das instalações de saúde.
No entanto, integrar tecnologias mais modernas como IoT, automação, inteligência artificial e realidade aumentada à realidade hospitalar começa com uma revisão séria da infraestrutura.
“Hospitais modernos são ambientes digitais por natureza e, para que esse ecossistema funcione, a rede precisa suportar essa demanda. Segundo o Observatório Anahp 2024, 74% dos hospitais enfrentam problemas de cobertura de rede em áreas críticas. Isso é incompatível com uma realidade onde cada leito pode ter mais de 50 dispositivos conectados. A infraestrutura precisa prever redes cabeadas estruturadas, Wi-Fi de alta densidade, capacidade elétrica redundante e, principalmente, espaço físico preparado para sensores, gateways e integração entre sistemas”, explica Lucas Albrecht de Almeida, cofundador e CRO da Nexxto.
Segundo ele, ainda é comum que hospitais invistam em tecnologia sem ajustar a base. “Ações como automatizar processos ou adquirir sistemas de prescrição eletrônica sem resolver gargalos de infraestrutura levam a falhas recorrentes.”
Nesse cenário, algumas áreas acabam sendo negligenciadas, como farmácia, almoxarifado e centros de diagnóstico, onde a cobertura Wi-Fi é limitada ou inexistente. “Isso gera falhas operacionais que impactam diretamente a segurança do paciente.” Segundo a Anahp, 38% dos hospitais reportam falhas de conectividade justamente nesses ambientes. Soma-se a isso a falta de no-breaks dedicados, circuitos estáveis e sistemas legados que não conversam entre si.
“A arquitetura hospitalar evolui na mesma velocidade da medicina — que é, por natureza, efêmera e em constante transformação. Por isso, na minha visão como médico e arquiteto, projetar um hospital já significa considerar um edifício em permanente estado de atualização tecnológica. Desde as fases iniciais do projeto, criamos espaços técnicos, como shafts, casas de máquina, salas de TI, entre outros espaços para acomodação de toda infraestrutura, prevendo a introdução de novas tecnologias ao longo do tempo”, explica Gustavo Zoghbi, diretor da Medine Arquitetura Hospitalar.
Desafios na integração entre tecnologias emergentes e projetos hospitalares
A integração entre tecnologias emergentes e projetos arquitetônicos hospitalares oferece enormes possibilidades de inovação — mas também apresenta desafios complexos.
Na opinião de Zoghbi, um dos mais relevantes está na integração entre diferentes sistemas tecnológicos em uma única plataforma de gestão. Cada sistema (climatização, iluminação, segurança, controle de acesso, equipamentos médicos etc.) tende a operar em sua própria linguagem, o que dificulta a interoperabilidade.
“O ideal seria termos uma central única capaz de consolidar todas as informações dos sensores e sistemas do edifício — algo ainda distante da realidade na maioria dos hospitais. Além disso, há um fator cultural: muitos clientes preferem adiar a implementação de tecnologias até após a obra, por questões orçamentárias, o que compromete essa implementação.”
Sheila Walbe Ornstein, professora titular do Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo, comenta que grande parte dos hospitais brasileiros opera com infraestruturas antigas, que não foram projetadas para suportar sistemas tecnológicos modernos.
“A adaptação estrutural para abrigar redes inteligentes, sensores, equipamentos de imagem de última geração e sistemas automatizados exige investimentos altos e obras complexas, muitas vezes inviáveis sem interrupção dos serviços. Em algumas estruturas mais antigas consegue-se fazer adaptações, mas em outras, não.”
Além disso, Sheila comenta que a implantação de tecnologias como gêmeos digitais, sensores inteligentes e sistemas baseados em IA requer alto investimento inicial. “Em muitos casos, o orçamento destinado à obra civil não contempla esses avanços, que passam a ser considerados ‘acessórios’, e não parte essencial do projeto desde o início.”
A professora destaca que existe uma preocupação dos gestores hospitalares e dos projetistas em criar um projeto arquitetônico que suporte a infraestrutura necessária até por questões de gestão de riscos, com instalações que, por exemplo, deem apoio adequado ao centro cirúrgico. “Essas tecnologias nascem com o sistema construtivo nos prédios novos. Assim, o edifício aumenta de volume em área construída para apoio, não para receber médicos e pacientes.”
Vale ainda lembrar as regulações essenciais na aprovação de projetos. A legislação brasileira — como a RDC 50/2002, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que dispõe sobre planejamento, programação, elaboração e avaliação de projetos físicos de estabelecimentos assistenciais de saúde -, ainda está sendo atualizada para contemplar inovações tecnológicas complexas. Muitas vezes, projetos altamente inovadores enfrentam entraves burocráticos para aprovação, ou ficam em uma “zona cinzenta” sem regulamentação específica.
Antecipando a infraestrutura hospitalar para as necessidades tecnológicas futuras
“A infraestrutura hospitalar — compreendendo desde o projeto arquitetônico até redes de dados e utilidades técnicas — deve ser pensada como uma plataforma evolutiva, capaz de suportar atualizações constantes, novas integrações e ambientes cada vez mais inteligentes e automatizados”, destaca Sheila.
No olhar de Zoghbi, o hospital é como uma máquina viva. “Máquinas precisam de canais abertos para evoluir. Por isso, prevemos shafts dimensionados para futuras passagens de cabos, forros acessíveis, espaços técnicos distribuídos e reservas técnicas. Essa flexibilidade permite que o hospital cresça tecnologicamente sem precisar de grandes intervenções estruturais. Quanto mais facilitarmos, através de boa engenharia e visão de futuro, mais tranquila serão essas incorporações tecnológicas.”

Um dos caminhos para permitir a escalabilidade das tecnologias ao longo do tempo, diz ele, é prever folgas nas infraestruturas — deixar redes e espaços prontos para receber atualizações ou ampliações tecnológicas sem precisar intervir no edifício inteiro. “Não é incomum prever dutos secos extras, além de áreas técnicas sobressalentes. É uma etapa que exige visão de longo prazo, mesmo que, naquele momento, o hospital ainda não vá instalar as tecnologias mais avançadas.”
Para Almeida, não basta montar um ambiente com tecnologia de ponta hoje se ele já estiver ultrapassado amanhã. “Escalabilidade deve estar na mesa desde o início do projeto. Um ambiente escalável é modular, interoperável e gerenciável. O Gartner estima que, até 2026, mais de 70% das inovações em hospitais dependerão de dados gerados por sensores IoT em tempo real. Isso significa que a infraestrutura precisa acompanhar a evolução tecnológica sem exigir reestruturação a cada nova demanda. Plataformas abertas, com arquitetura de microserviços e integração em cloud são o caminho mais seguro.”
Assim, a infraestrutura deve prever: redes de dados robustas com alta capacidade de tráfego; suporte a dispositivos conectados (IoT), como sensores de monitoramento ambiental e rastreamento de equipamentos; e ambientes preparados para realidade aumentada, telemedicina em tempo real, sistemas avançados de imagem e salas de cirurgia robótica.
Para quem está começando ou planejando implantar inovações tecnológicas, aponta Almeida, um ponto de partida mínimo inclui uma rede estruturada em fibra, switches gerenciáveis, Wi-Fi com autenticação 802.1x em toda a área assistencial, infraestrutura elétrica dedicada para TI e automação, e sistemas com integração via APIs e protocolos padrões (HL7, FHIR, MQTT).
“Segundo a HIMSS LATAM 2024, 92% dos hospitais em estágio avançado de maturidade digital já adotaram esse tipo de estrutura. Isso é o básico para suportar automação, rastreamento, monitoramento térmico e sistemas de apoio à decisão clínica”, destaca Almeida.
Zoghbi acredita que, para os próximos anos, os hospitais estarão conectados em todos os níveis: assistencial, operacional e predial. “É nesse ponto que minha formação médica e arquitetônica se conecta: gosto de traduzir necessidades clínicas em soluções espaciais. Meu papel é garantir que os hospitais estejam preparados não só para o agora, mas também para o que ainda nem chegou.”
À medida que olhamos para o futuro, a interseção entre tecnologia e construção de hospitais promete oferecer instalações que não são apenas edifícios, mas ambientes dinâmicos e adaptativos. Hospitais que vão se destacar nos próximos anos são os que entendem infraestrutura como ativo estratégico, e não como despesa acessória. O desafio está em projetar hospitais que possam incorporar perfeitamente novas tecnologias à medida que surgem.
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