Informações geradas no cotidiano dos pacientes — como prontuários eletrônicos, dados de wearables e registros de uso de dispositivos — já começam a embasar decisões regulatórias sobre tecnologias em saúde. Esse movimento vem ganhando força na ANVISA e em outras agências globais, como explicou Letícia Barel Filier, especialista em Regulação e Vigilância Sanitária da agência, durante a palestra “Evidência do Mundo Real: A Nova Fronteira da Regulação Sanitária”, na Jornada Regulatória e Diálogos ABIMED durante Hospitalar 2025.
Letícia explicou que os dados do mundo real (ou Real-World Data – RWD) são todos aqueles gerados fora dos estudos clínicos tradicionais. Já as evidências do mundo real (Real-World Evidence – RWE) são o resultado da análise estruturada desses dados, com o objetivo de entender melhor os benefícios e riscos de tecnologias em saúde. “É importante entender que dado não é sinônimo de evidência. É preciso transformar esse dado em informação útil e confiável para apoiar decisões regulatórias”, ressaltou.
Um novo olhar para o ciclo de vida dos produtos
Na prática, isso significa que os dados do cotidiano dos pacientes podem ser usados em diferentes etapas: desde a concepção de um produto, passando pela obtenção de registro, até o monitoramento após a entrada no mercado.
“Esses dados vêm sendo usados, por exemplo, para gerar hipóteses de estudo, para apoiar pedidos de extensão de indicação de uso e até para atualizar informações de segurança”, contou Letícia. E em países como Estados Unidos e Japão, já existem caminhos regulatórios que permitem uma aprovação condicional, com base em dados preliminares, desde que a empresa continue monitorando e coletando dados no uso real após o lançamento.
Evidências do Mundo Real: Dados reais, desafios reais
Apesar do entusiasmo com o tema, Letícia fez questão de destacar que o uso de dados do mundo real não é uma solução mágica. Pelo contrário: exige muito cuidado. “Esses dados precisam ser relevantes, confiáveis e coletados de forma estruturada. E é essencial que todo o processo seja planejado antes da coleta, para evitar vieses e garantir integridade”, explicou.
Além disso, o uso de RWE ainda enfrenta obstáculos como a falta de padronização, a qualidade dos dados, o respeito à privacidade dos pacientes e a dificuldade de estabelecer relações de causa e efeito, já que os dados são observacionais — ou seja, não resultam de um experimento controlado.

Experiências que inspiram
Letícia compartilhou exemplos internacionais que mostram como os dados do mundo real podem fortalecer o processo regulatório. No Reino Unido, por exemplo, o sistema público de saúde (NHS) coleta dados anonimizados da população que são utilizados tanto pela agência reguladora quanto pelos formuladores de políticas públicas. Nos EUA, iniciativas como a rede de epidemiologia de dispositivos médicos e o NEST (Centro Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde) trabalham em conjunto com empresas, universidades e órgãos públicos para melhorar a vigilância e o uso de dados em toda a jornada dos dispositivos médicos.
“O avanço desse tema lá fora só aconteceu porque houve parceria entre todos os envolvidos: reguladores, indústria, academia e sistema de saúde. No Brasil, precisamos caminhar nessa mesma direção”, destacou.
E o Brasil, como está?
Por aqui, a ANVISA já reconhece a possibilidade de usar evidências do mundo real em alguns contextos. O guia de avaliação clínica da agência, por exemplo, permite o uso desses dados desde que apresentem qualidade e robustez suficientes para apoiar decisões regulatórias. Além disso, iniciativas como a Rede Sentinela, o Registro Nacional de Implantes e o sistema de vigilância pós-mercado são fontes importantes de informação.
“É claro que ainda não podemos substituir totalmente os estudos clínicos tradicionais por evidências do mundo real, especialmente no caso de tecnologias inovadoras. Mas esses dados já têm um papel complementar importante e devem ganhar ainda mais espaço”, afirmou, enfatizando a importância de uma nova regulação sanitária.
Letícia também destacou o papel dos dados reais no desenvolvimento de soluções baseadas em inteligência artificial. “Para treinar um algoritmo com segurança, você precisa de dados abrangentes e representativos da população. É isso que garante que a tecnologia funcione no mundo real”, explicou.
Quer saber mais sobre o assunto? A Jornada Regulatória e Diálogos ABIMED vai até dia 23 de maio na Hospitalar 2025. O evento é gratuito, e o credenciamento já está aberto. Adquira seu ingresso!