faz parte da divisão Informa Markets da Informa PLC

Este site é operado por uma empresa ou empresas de propriedade da Informa PLC e todos os direitos autorais residem com eles. A sede da Informa PLC é 5 Howick Place, Londres SW1P 1WG. Registrado na Inglaterra e no País de Gales. Número 8860726.

Health Coach: os ‘conselheiros de saúde’ farão parte de nossa vida

Article-Health Coach: os ‘conselheiros de saúde’ farão parte de nossa vida

Online-Coaching.jpg
‘Digital Health Coach’ também ganha espaço nos sistemas de saúde

Perto de 2 bilhões de pessoas no mundo estão em sobrepeso; 1/6 da população do planeta morre de câncer, sendo que 50% das patologias oncológicas já são evitáveis; 31% dos indivíduos vêm a óbito todos os anos por doenças cardiovasculares; ou, como explicaria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017): o mundo é uma profusão de “patologias líquidas” que se espalham por todos os cantos, ocupando todas as regiões e todos os perfis socioeconômicos. O ‘peso da gestão de enfermidades’, que para as nações é uma evidência incontornável, pode ser para as mesmas nações uma das maiores oportunidades de empregabilidade no século XXI. Nessa direção, emerge com velocidade o modelo de Health Coach: os chamados “profissionais de saúde não-clínicos”. Também conhecidos como “patient navigators” ou “healthcare concierge”, eles se tornaram na pandemia uma poderosa ‘ferramenta humana’ capaz de suportar as doenças crônicas, os danos colaterais da Covid-19, sem deixar de orientar os pacientes para o ‘santo-graal’ do bem-estar. Anote: em pouco tempo você poderá ser um health coach, ou estará utilizando um para apoiar familiares, amigos, empregados, beneficiários de planos de saúde, ou até poderá estar contratando um para auxiliá-lo na curva da longevidade.  

Os health coaches não são recentes. Já em 2014 um relatório do Instituto Brookings  mostrava que quase a metade de todos os ‘healthcare workers’ do mundo eram ‘profissionais-não-clínicos-com-intensa-interação-com-pacientes’. O estudo adiantava que havia um "redesenho da prática médica", com profissionais ‘sem-bacharelado’ assumindo cada vez mais responsabilidades nos cuidados assistenciais. “Embora existam muitas discussões sobre a força de trabalho na saúde se concentrar em médicos e outras ocupações com avançados graus de escolaridade, os Sistemas de Saúde não funcionariam sem aqueles que não dispõe de formação superior. Esses trabalhadores realizam uma variedade de tarefas clínico-assistenciais e suporte administrativo, mas trabalham principalmente para atingir um 'triplo objetivo': (1) melhorar a experiência no atendimento, (2) incrementar os resultados sanitários e (3) reduzir os custos per capita com saúde”, expos o documento do Brookings.

Segundo a AMA (American Medical Association): “um health coach é alguém cuja principal responsabilidade é fornecer orientação personalizada aos pacientes enquanto eles se movem pelo sistema de saúde. O termo, também conhecido como ‘patient navigator’, é frequentemente usado de forma intercambiável com a expressão 'advogado do paciente', e a função pode ser desempenhada formal ou informalmente por indivíduos com acumulada experiência clínica ou administrativa, ou por alguém com experiência pessoal em desafios relacionados à saúde”. É nesse particular que crescem as opções: tecnicamente qualquer indivíduo independente da formação pode ser um health coach, bastando para isso ter acumulado experiência em uma determinada condição sanitária. Um filho que cuidou do pai com Alzheimer por 15 anos, por exemplo, poderia ter um lote de predicados que o capacitasse a ajudar outras pessoas nas mesmas condições, ainda que necessitasse de treinamento. Essa deve ser a próxima geração dos “cuidadores de saúde”, sejam eles informais-voluntários ou formais-profissionais, que passarão a ser a espinha dorsal do controle sistêmico das patologias crônicas. Por outro lado, não devemos confundi-los com ‘personal trainings’, ou ‘aconselhadores nutricionais’, que sempre serão benvindos, mas que não tem o compromisso com a saudabilidade transversal dos pacientes.

Em função da pandemia, milhões de pessoas assumiram sozinhas o cuidado de familiares próximos, uma vez que outros parentes deixaram de atendê-los por medo do coronavírus. O programa global Embracing Carers, que conta com apoio da farmacêutica Merck, publicou estudo em fevereiro de 2021 mostrando que a Covid-19 aumentou sobremaneira a demanda por cuidadores informais (voluntário). Cerca de 68% dos cuidadores que responderam ao estudo no Brasil reportaram uma piora na própria situação financeira (no mundo o percentual não superou 54%). O problema cresce com a longevidade, onde cada vez mais a ‘condição de bem viver compete com a de sobreviver’. Segundo o IBGE, a população brasileira superou a marca de 30,2 milhões de pessoas idosas, apresentando um crescimento de 18% nos últimos cinco anos (4,8 milhões de novos idosos). Essa expressiva demanda de ‘cuidadores de idosos’ (independentemente de suas morbidades) fez crescer a necessidade dos “cuidadores formais”, que recebem carga de habilitação, são remunerados e passaram a ser relevantes no cuidado domiciliar (ainda mais quando a pandemia demonizou os “lares de idosos”). Já existem ações e intervenções legislativas para regular a profissão no Brasil, mas caminham a passos de cágado (como quase sempre na regulação sanitária). Desde novembro de 2012, por exemplo, o Projeto de Lei nº 4.702, que visa regulamentar a profissão do cuidador (ABVD - Atividades Básicas de Vida Diária), se arrasta.

A demanda por cuidadores informais é crescente no mundo todo. No Japão, por exemplo, o déficit de home-helpers’ (kaigosha) já ultrapassa 300 mil profissionais, sendo a procura crescente devido ao fato de que em 2025 as pessoas nascidas no pós-guerra completarão 75 anos. A longevidade e a pandemia deixam um rastro crescente de enfermidades e insuficiências assistenciais (veja no estudo “Mental Health and the Covid-19 Pandemic”), mas aquilo que na engenharia sanitária é um problema, passa a ser uma oportunidade para aqueles que estão à frente das crises e objetivam legitimamente lucrar com elas. Em meio à crise da Covid-19, o mercado global de cuidados de saúde (healthcare caregivers) foi de US$ 111,2 bilhões em 2020, sendo projetado atingir US$ 234,6 bilhões em 2027, ou seja, crescerá 11,2% anualmente entre 2020 e 2027 (fonte: "Health Caregiving - Global Market Trajectory & Analytics"). Assim, o mercado de health coaches entrou definitivamente no radar dos investidores, que sempre observam o impacto das transformações pontuais nas tendências globais (entre 2020 e 2024, os gastos globais com saúde devem aumentar em 3,9% ao ano, uma taxa de crescimento consideravelmente maior aos 2,8% registrados entre 2015 e 2019, que já era alta). Nesse sentido, o cuidador-voluntário, que é cada vez mais açodado por uma sociedade que precisa trabalhar insanamente, cede espaço ao health-coaching-business. Os empreendimentos nessa direção esquentam as turbinas para ser um dos grandes negócios utilitaristas do ecossistema de saúde, podendo atingir uma escala mundial superior a 300 milhões de profissionais treinados e habilitados a exercer as funções de coaching em saúde. Nos EUA, existem mais de 48 milhões de cuidadores familiares, que agora podem passam a receber reembolso do governo por meio do projeto de lei (bipartidário) Credit for Caring Act (lei federal). Ele permitirá o fornecimento de um crédito federal de até US$ 5.000 aos cuidadores familiares que trabalham, o que ajudaria a custear os quase US$ 7.000 que muitas famílias gastam a cada ano em ‘cuidados informais’. A lei é um passo inicial mas definitivo para tornar o health coaching uma iniciativa remunerada pelo próprio Estado. Segundo a AARP (Associação Americana de Aposentados), em 2017 cerca de 41 milhões de caregivers informais destinaram 34 bilhões de horas de cuidado a um adulto com limitações. Isso significa que o Estado deixou de arrecadar fiscalmente perto de US$ 470 bilhões num único ano. A mesma AARP, em seu estudo “Caregiving Innovation Frontiers” de 2017, já mostrava que em 2020 (mesmo sem pandemia) os EUA teriam 117 milhões de norte-americanos precisando de caregivers, sinalizando um mercado potencial de health coaches superior a US$ 270 bilhões de 2016 a 2020. Definitivamente esses números cresceram com a Covid-19, e crescerão ainda mais com o represamento dos procedimentos críticos drenados pela superlotação hospitalar.

coaching de saúde é uma abordagem profissional, cujo objetivo é apoiar os pacientes a adquirir conhecimento, habilidades e confiança para se tornarem intervenientes ativos em seu autocuidado. A velha narrativa de “ser preferível ensinar alguém a pescar do que dar-lhe o peixe” mostra com perfeição a diferença entre ‘resgatar um paciente’ e ‘orientar um paciente’. Pacientes precisam ‘aprender a pescar’, e o health coach existe para isso. O médico será sempre o protagonista, mas o health coach vai coadjuvar cada vez a jornada do paciente em busca de alívio, bem-estar e perenidade.

Ocorre que no século XXI há um elemento não menos importante para os cuidadores formais ou informais: o avanço descomunal das tecnologias digitais em saúde, como Telehealth, Telemonitoramento, Inteligência Artificial e a diligente Ciência de Dados. Está claro que o arsenal tecno-científico em digital health será o eixo amplificador da função de health coaching. Nessa direção, surge o Digital Health Coach, também um ‘agente de mudança’, mas ‘turbinado pelo bioma digital’. Seus vetores coincidem com o coaching presencial: (1) ajudar as pessoas a descobrir o “porquê” das mudanças necessárias à sua saudabilidade; (2) capacitar os indivíduos no suporte aos seus corpos, mentes e circunstâncias; (3) ajudar as pessoas a identificar desafios e pontos cegos que estão impedindo a mudança de seus hábitos; (4) prover suporte e responsabilidade nas verticais que podem desequilibrar seu bem-estar; e (5) usar a “experiência assistencial” para ajudar as pessoas a navegar por uma colossal variedade de preocupações com a saúde. O coaching digital em saúde tem, enfim, a função do cuidador, mas com um sólido suporte cibernético capaz promover uma comunicação online baseada em evidências, estratégias clínicas e intervenções paramédicas (em junho de 2021, um digital health coach nos EUA já tinha salário médio anual US$ 69.502, ou US$ 33,41 por hora).           

O Brasil possui quase 300 mil Agentes Comunitários da Saúde (ACS), pertencentes a Estratégia Saúde da Família (ESF), o programa público mais estruturante do SUS no primeiro atendimento. Todos eles já poderiam ser considerados health coaches, quando exercem esse enorme suporte sanitário domiciliar ao SUS. Mas o Programa precisa alçar voo, se expandir e transformar os ACS em “digital health coaches”, capazes de prover atendimento personalizado e formal utilizando ferramentas de eHealth. Mais do que isso: poderiam expandir a rede arregimentando pacientes com ‘patologias controladas’, ou ‘ex-portadores de doenças’, ou ‘ex-cuidadores informais’ para, devidamente treinados e empoderados tecnologicamente, exercer sua função com muito mais amplitudecomunicação multimodal (presencial e digital) entre o ACS e as famílias agilizaria o contato, ampliando o aconselhamento, além de permitir um grande salto de qualidade na coleta de informações. Os Agentes Comunitários deveriam ser alçados a digital health coaches porque os pacientes já estão cada vez mais digitalizados. 

O psicólogo americano Carl Rogers (1902-1987) foi um dos pioneiros na modalidade de “apoiador funcional”, quando desenvolveu o conceito de person-centered counselling (‘aconselhamento centrado na pessoa’). Ele mudou radicalmente o modelo predominante de tratar doenças psicológicas, acreditando fortemente na capacidade do próprio paciente em alcançar o seu potencial de cura e de crescimento interior. Rogers não está vivo para responder a parte da comunidade médica que acha o modelo de health coaching elitizado, inconsistente e totalmente fora da excelência médica. Da mesma forma, não faltam aqueles que acreditam que os mais necessitados não serão alcançados pelo cuidador formal. É uma colocação pertinente, mas que está “querendo tornar-se ultrapassada”. Um “divisor de águas” foi o estudo “Are Low-Income Peer Health Coaches Able to Master and Utilize Evidence-Based Health Coaching?”, publicado em 2015 no Annals of Family Medicine por pesquisadores do Center for Excellence in Primary Care (University of California). Entre outras coisas, o ensaio clínico randomizado descobriu que pacientes com diabetes tinham níveis mais baixos de hemoglobina glicada após 6 meses de coaching (comparando a pacientes que não receberam qualquer auxílio). Todos os pacientes do estudo eram diabéticos e foram treinados num currículo básico de health coaching. Dos 32 trainees que concluíram o treinamento, 72% não tinham diploma universitário e 25% não chegaram ao fim do ensino médio. Mas eram pacientes com diabetes, e 81% deles concluíram o treinamento e foram aprovados em exames escritos e orais, tornando-se health coaches eficazes. O resultado mostrou que “pacientes diabéticos, de comunidades desfavorecidas e com educação limitada, poderiam ser treinados para servir como coaches de outros pacientes com a mesma patologia”. Estava aberta uma porta surpreendente no primary care, onde ‘doentes poderiam cuidar melhor de outros doentes’ não importando o seu perfil social, desde que fossem devidamente treinados para isso. Carl Rogers talvez tenha chegado o mais perto possível do locus da função de coaching, e fez isso analisando o lado do paciente: “Quando uma pessoa percebe que foi ouvida profundamente, que foi percebida, seus olhos ficam úmidos. Acho que de certa forma ela está chorando por dentro de alegria. É como se dissesse: ‘Graças a Deus, alguém me ouviu. Alguém sabe o que é ser eu”.

 

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar

Head Mentor - eHealth Mentor Institute (EMI)

TAG: Hospitalar