A cada ano, formam-se no Brasil milhares de novos médicos. Para muitos jovens, o CRM (Conselho Regional de Medicina) na mão ainda é visto como passaporte automático para estabilidade, prestígio e boa remuneração. Mas os dados mais recentes mostram um cenário bem diferente – e, na minha visão, bastante desafiador.

Hoje, cerca de 35 mil estudantes concluem medicina e entram no mercado de trabalho por ano, e esse número deve ultrapassar os 50 mil egressos anuais nos próximos anos, impulsionado pelo crescimento do número de vagas e escolas médicas em todo o país. 

Em 2025, o Brasil atingiu 494 escolas médicas, com 50.974 vagas de ingresso por ano – mais que o triplo do número de faculdades que existia há 20 anos.  Se nada mudar, em poucos anos estaremos próximos da marca de 50 mil novos médicos formados anualmente.

Dito isso, fica a reflexão: o que acontece com todos esses médicos depois da colação de grau?

O gargalo da residência: números que não fecham

A residência médica ainda é, com razão, o “padrão-ouro” de formação especializada. O problema é que a conta simplesmente não fecha.

Segundo dados da Demografia Médica 2025, de 2017–2018 para 2023–2024, passamos de 17.130 graduados em medicina para 32.611 egressos. No mesmo período, as vagas de residência aumentaram bem menos: de 13.322 para apenas 16.189 vagas. 

Ou seja:

  • Em 2023–2024, tivemos 32.611 novos médicos disputando 16.189 vagas de residência.
  • Isso significa um déficit anual de mais de 16 mil médicos sem vaga de residência, e essa defasagem quase triplicou no período analisado. 

Quando projetamos esse cenário para o futuro, com turmas de graduação cada vez maiores, fica claro: não há, e não haverá, residência para todo mundo.

O resultado já aparece nos números gerais: em dezembro de 2024, o Brasil tinha 353.287 médicos especialistas (59,1%) e 244.141 generalistas (40,9%), ou seja, quase metade dos médicos sem título de especialista. 

Não se trata apenas de estatística. Estamos formando uma “geração do CRM sem rumo”: jovens médicos que chegam ao mercado sem um caminho estruturado de desenvolvimento, empurrados para decisões de carreira por pressão financeira, geográfica ou simples falta de informação.

Os caminhos (nem sempre conscientes) do recém-formado

Diante desse cenário, enxergo quatro trajetórias principais que se repetem hoje entre os jovens médicos no Brasil.

1. A corrida exaustiva pelos preparatórios e residências disputadas

O primeiro grupo é o dos que entram na “linha de batalha” dos cursinhos de residência. É o caminho mais tradicional:

  • Alguns passam no R1 logo no primeiro ciclo.
  • Muitos repetem provas por 2, 3, 4 anos, conciliando plantões mal remunerados, dívidas estudantis e pressão familiar.

Há méritos claros aqui: a residência bem escolhida ainda oferece formação robusta, acesso a casos complexos, preceptoria estruturada e melhor empregabilidade. Mas os custos emocionais são altos:

  • Burnout precoce, sensação de fracasso a cada reprovação.
  • Adiamento da vida financeira (casamento, filhos, compra de casa) porque “a vida só começa depois da residência”.
  • Risco de escolher a especialidade mais “quente” do mercado, e não aquela que faz sentido para a vocação do médico.

O problema não está em fazer prova de residência, mas em colocar toda a estratégia de carreira em um funil cada vez mais estreito, sem plano B consistente.

2. Pós-graduações e especializações fora da residência

O segundo caminho é o dos médicos que buscam programas de pós-graduação e especialização lato sensu, MBAs, fellowships e cursos avançados oferecidos por hospitais, instituições privadas e sociedades de especialidade.

Esse movimento cresceu muito nos últimos anos, por três razões principais:

  1. Defasagem de vagas de residência – muita gente não consegue entrar, mas precisa se diferenciar.
  2. Flexibilidade – muitos cursos permitem conciliar estudos com trabalho clínico.
  3. Novas áreas de atuação – dor, medicina esportiva, estética, gestão em saúde, tecnologia médica, telemedicina, longevidade, entre outras.

Aqui, porém, existe um ponto crítico: nem toda pós-graduação é igual. Há programas sérios, com forte componente prático, supervisão adequada e inserção em serviços consolidados. E há também cursos essencialmente teóricos, com pouca ou nenhuma experiência de campo, que prometem “formar especialistas” sem entregar o que o mercado e os pacientes esperam.

Para o jovem médico, a pergunta não deveria ser “tem certificado?”, mas:

  • Qual é a carga prática real?
  • Quem são os preceptores e onde atuam?
  • O programa tem integração com serviços de referência?
  • Como os ex-alunos estão hoje?

A pós-graduação pode ser um excelente caminho – sobretudo em áreas em que a residência é limitada ou inexistente – desde que o médico entenda suas potencialidades e limites. Em muitos casos, ela não substitui a residência em concursos públicos ou processos seletivos hospitalares.

3. Migrar para cidades menores só com o diploma

O terceiro caminho é o do médico que deixa os grandes centros e migra para cidades menores, muitas vezes no interior, apenas com o diploma de graduação.

A Demografia Médica 2025 mostra que 58% dos médicos atuam em capitais e grandes cidades, concentrando oferta e concorrência nesses polos.  Isso abre espaço real em regiões menores, onde:

  • A demanda reprimida por atendimento médico é grande.
  • O médico generalista ainda ocupa posição central na rede de atenção.
  • A comunidade tende a valorizar mais o vínculo longitudinal.

As vantagens são óbvias:

  • Mercado menos saturado.
  • Oportunidade de construir reputação e carteira de pacientes mais rapidamente.
  • Custos de vida muitas vezes menores.

Mas há riscos importantes:

  • Isolamento profissional: pouca troca com outros especialistas, menor acesso a serviços de alta complexidade.
  • Exigência de atuar como “clínico para tudo” sem a base prática que uma boa residência ofereceria.
  • Maior responsabilidade e pressão, especialmente em locais sem retaguarda hospitalar qualificada.

Se bem planejada, com supervisão remota, atualizações constantes e boa rede de apoio, essa pode ser uma escolha estratégica. Sem planejamento, pode se transformar em fonte de ansiedade, insegurança clínica e erros evitáveis.

4. Ficar nos grandes centros sem especialização, aceitando baixas remunerações

Talvez o cenário mais preocupante seja o do médico que permanece nas grandes capitais, sem residência e sem formação complementar sólida, entrando em um ciclo de subemprego médico:

  • Plantões mal remunerados em pronto-atendimento.
  • Jornadas extensas, múltiplos vínculos, contratos precários.
  • Trabalho repetitivo, com pouco espaço para aprendizado estruturado.

Esse é um terreno fértil para a chamada “uberização da medicina”: médicos  substituíveis, pressionados por metas de volume a qualquer preço, com pouca autonomia clínica e quase nenhuma perspectiva de carreira de longo prazo.

Do ponto de vista da saúde pública e privada, isso também é perigoso: um grande contingente de médicos desmotivados, exaustos e sem plano de desenvolvimento impacta diretamente na qualidade assistencial e na experiência do paciente.

O que um jovem médico deveria considerar hoje

Diante desse cenário, a decisão pós-diploma não pode ser automática. Algumas perguntas precisam ser feitas cedo:

  1. Quem eu quero ser como médico daqui a 10 anos?

Mais que a especialidade, é sobre o tipo de vida, rotina, renda desejada, local onde quer morar, equilíbrio entre trabalho e família.

  1. Quais caminhos combinam melhor com esse projeto de vida?
    • Residência em grandes centros?
    • Pós-graduação robusta com foco em prática?
    • Interiorização planejada?
    • Combinação de etapas (por exemplo, 2–3 anos em cidade menor + retorno para especialização)?
  2. Quais competências não clínicas eu preciso desenvolver?

Com o cenário atual, não basta saber clínica e cirurgia. A nova geração de médicos vai precisar, cada vez mais, de:

  1. Gestão de carreira e finanças pessoais.
  2. Comunicação e relacionamento com pacientes, equipes e gestores.
  3. Tecnologia e análise de dados em saúde.
  4. Liderança, negociação e trabalho em equipe.
  5. Estou escolhendo por vocação ou por pânico?

Entrar em qualquer pós, aceitar qualquer trabalho, mudar para qualquer cidade, apenas para “não ficar parado”, é compreensível – mas pode custar caro no médio prazo.

Do “passaporte” ao projeto de carreira

O diploma de medicina deixou de ser um passaporte automático para estabilidade.

Ele é, cada vez mais, apenas o primeiro carimbo de uma jornada que exige escolhas maduras, dados na mesa e muito mais consciência de carreira.

Entre cursinhos de residência, pós-graduações, interiorização e permanência em grandes centros, não existe caminho perfeito. O que existe é a necessidade de:

  • Planejar, em vez de apenas reagir.
  • Combinar formação técnica com competências de negócios e de relacionamento humano.
  • Reivindicar, como categoria, políticas mais responsáveis de formação e especialização.

Se não conectarmos a expansão da graduação médica a um projeto consistente de formação pós-diploma, corremos o risco de transformar a medicina brasileira em um campo de frustrações – tanto para médicos quanto para pacientes.

O jovem médico de hoje não precisa apenas de um CRM.

Ele precisa de estratégia de carreira, boa informação e coragem para fazer escolhas que vão muito além da próxima prova de residência.