O avanço da cirurgia ambulatorial no Brasil é uma das mais promissoras alavancas para a transformação do nosso sistema de saúde. As Unidades de Cirurgia Ambulatorial (UCAs), com sua estrutura de custos enxuta, processos otimizados e foco na experiência do paciente, representam uma resposta direta às pressões de custo e à crise de acesso que desafiam operadoras e hospitais.

Contudo, o potencial máximo deste modelo, capaz de entregar maior eficiência, qualidade e redução de custos, encontra-se limitado por uma barreira sistêmica na saúde nacional: o modelo de remuneração predominante do fee for service (FFS).

Sabemos que o FFS é um modelo que recompensa o volume de serviços em detrimento do valor gerado, criando um paradoxo que penaliza a eficiência e a custo-efetividade. Em um sistema que paga por item, no que chamamos de “conta aberta”, um procedimento mais rápido, com menos materiais e menos intercorrências, paradoxalmente, gera uma receita menor.

Essa lógica anacrônica não apenas freia a expansão de um modelo cirúrgico mais inteligente, mas também perpetua o desalinhamento de incentivos entre quem paga e quem presta o cuidado.

É hora de deslocar a conversa da estrutura de custos interna da UCA para sua integração estratégica no ecossistema financeiro da saúde. Para destravar o verdadeiro valor da cirurgia ambulatorial, precisamos de um novo modelo prático de pagamento.

A solução reside nos modelos de remuneração baseados em valor, com destaque para os Bundled Payments (Pagamentos por Pacote), que quando bem projetados entre fonte pagadora e prestador, podem representar uma relação de ganho mútuo de escala, receita e eficiência.

A solução: alinhando incentivos com os pacotes cirúrgicos

O conceito de pacote (bundled payment) é uma das formas mais diretas e efetivas de migração do FFS. Trata-se de um pagamento único e abrangente por um episódio de cuidado completo. Em vez de remunerar separadamente a consulta, os exames, a taxa de sala, os honorários do cirurgião, a anestesia e o acompanhamento, o pacote engloba todos os componentes necessários para um determinado procedimento.

Pode incluir absolutamente tudo que envolve o evento, ou as partes mais críticas e variáveis, como órteses, próteses e materiais especiais (OPMEs), diárias, taxas e honorários médicos. 

Essa abordagem transforma a dinâmica de relacionamento entre prestadores e pagadores, fazendo com que deixe de ser uma relação transacional e passe a ser uma parceria estratégica, onde o sucesso é medido pelo desfecho clínico e pela eficiência do processo como um todo. O incentivo coletivo passa a ser a entrega do melhor resultado ao menor custo possível, eliminando o desperdício e a utilização de serviços desnecessários.

Cirurgiões, anestesistas e a gestão da UCA passam a compartilhar o risco e, consequentemente, os ganhos de um cuidado bem-sucedido e custo-efetivo. Para que isto ocorra, fatores como o conhecimento aprofundado dos custos, protocolos clínicos que não sacrifiquem o cuidado com escolhas “mais baratas” e uma interação transparente e integrada entre fonte pagadora e prestadores é fundamental. 

Menos custo, mais qualidade

A transição para pagamentos por pacote não é uma aposta teórica. Estudos demonstram que a implementação de pacotes de pagamento pode reduzir os gastos com episódios cirúrgicos entre 10% e 40%, mantendo ou até melhorando a qualidade assistencial.

A economia é gerada principalmente pela redução do uso de cuidados pós-agudos desnecessários, pela redução da super indicação de procedimentos, pela padronização de protocolos clínicos e uso de materiais, especialmente quando os procedimentos envolvem dispositivos implantáveis ou tecnologias de maior custo.

O modelo para a Cirurgia Ambulatorial no Brasil

A implementação de um modelo de pacotes para a realidade cirúrgica ambulatorial brasileira é perfeitamente factível. Não podemos deixar de considerar que cada vez mais procedimentos eletivos podem ser realizados com total segurança em regime ambulatorial.

Mais precisamente, 80% do que é cirúrgico, em caráter eletivo, tem o potencial de ser realizado por UCAs de múltiplas especialidades, sem prejuízo de qualidade e segurança. 

Tomemos como exemplo um procedimento comum como a artroscopia de joelho. Um pacote de cuidados completo poderia ser estruturado da seguinte forma:

  • Fase pré-operatória: inclui a consulta de avaliação com o cirurgião e o anestesista;
  • Fase intra-operatória: engloba a utilização de todos os recursos operatórios previstos, como sala cirúrgica, recuperação pós-anestésica, honorários da equipe cirúrgica e de anestesia, todos os materiais, medicamentos e órteses e próteses (OPMEs) padronizados;
  • Fase pós-operatória: cobre um período definido de acompanhamento, como 30 ou 60 dias, incluindo as consultas de retorno e o manejo de intercorrências simples diretamente relacionadas ao procedimento.

A chave para o sucesso é a definição clara do que está incluído no pacote, a padronização de protocolos clínicos e a seleção adequada de pacientes, garantindo que o escopo do cuidado seja previsível e alinhado ao ambiente cirúrgico ambulatorial.

Contexto brasileiro

O Brasil tem avançado a passos lentos na adoção de novos modelos de remuneração. A cultura do FFS, a fragmentação dos sistemas de informação e a resistência à mudança são barreiras conhecidas. Contudo, o crescimento das UCAs e a pressão financeira insustentável sobre as operadoras de saúde criam um cenário fértil para a inovação.

Nunca é tarde para que pagadores e prestadores iniciem uma colaboração proativa neste sentido. O momento é mais do que propício para desenhar e lançar programas-piloto de pacotes focados em procedimentos cirúrgicos de alta frequência e baixa complexidade realizados em UCAs. São crescentes os movimentos que estão ocorrendo atualmente para quebrar o status quo do FFS e demonstrar, com dados da nossa realidade, que é possível construir um sistema mais racional e sustentável.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Ambulatorial (SOBRACAM) já atua como um catalisador essencial nesse processo, oferecendo orientação e consultoria especializada para conectar os principais players do ecossistema: CFOs, executivos de planos de saúde e as próprias UCAs.

O trabalho da SOBRACAM posiciona os modelos de remuneração baseados em valor como uma ferramenta estratégica para otimizar credenciamentos e a gestão da sinistralidade, construindo as pontes para o alinhamento de interesses entre pagadores e prestadores, em prol de um sistema de saúde mais sustentável.

A excelência operacional da cirurgia ambulatorial é uma realidade que certamente será impulsionada pela adoção de novos modelos de remuneração. O próximo passo, com apoio dos pagamentos baseados em valor, é um elemento fundamental para destravar seu verdadeiro potencial transformador para a saúde no Brasil. A era do fee for service tem seus dias contados e o futuro da remuneração cirúrgica (e em saúde), será cada vez mais baseada em valor.