O cuidado em saúde vive uma mudança estrutural que reposiciona a Atenção Primária à Saúde (APS). Nesse novo cenário, o modelo deixa de ser visto apenas como porta de entrada e passa a se consolidar como o principal eixo de navegação do paciente — uma bússola capaz de coordenar caminhos, garantir continuidade e equilibrar qualidade e custo. Impulsionada por dados, telemedicina, automação inteligente e modelos assistenciais baseados em valor, a APS se transforma em uma verdadeira plataforma de coordenação.
Uma ampla revisão de literatura mostra que a transformação da APS é uma tendência global – equipes multidisciplinares, modelos de pagamento alternativos e maior acesso foram identificados como componentes-chave nessa mudança. Em um total de 107 estudos analisados, o componente mais frequentemente empregado na APS foi a expansão de equipes multidisciplinares (46% dos estudos).
No Brasil, há crescente evidência de que a telemedicina está se consolidando como inovação estratégica para a APS. Uma revisão nacional de literatura aponta redução de filas, ampliação do acesso e resolutividade equivalente à presencial em baixa e média complexidade.
Operadoras estão reposicionando a APS para liderar a coordenação do cuidado
A transformação da APS tem se intensificado entre as operadoras, que buscam reposicionar esse nível de atenção como eixo central da coordenação do cuidado. A Amil e a Alice ilustram esse movimento do setor, combinando tecnologia, equipes multidisciplinares e modelos assistenciais orientados a desfechos.
O diretor médico da Amil, Charles Souleyman, destaca que a operadora reformulou seus Programas de Saúde e Linhas de Cuidado para integrar APS, atenção especializada e hospitais.
O novo desenho nasceu de um amplo estudo de saúde populacional que identificou as condições clínicas mais prevalentes e estruturou 10 Linhas de Cuidado, contemplando áreas como Cardiologia, Saúde Mental, Obstetrícia, Oncologia, Endocrinologia e Ortopedia. Os beneficiários podem aderir voluntariamente e, a partir de sua participação, passam a contar com acompanhamento contínuo, foco em prevenção e acesso gratuito ao aplicativo Namu, com conteúdos de bem-estar.
Para integrar APS, telemedicina e gestão de crônicos, a Amil estruturou modelos híbridos, com consultas presenciais e digitais, além do papel do enfermeiro navegador, que monitora beneficiários, realiza contatos periódicos e acompanha pacientes de maior risco.
O Programa Viva Bem, da Linha de Clínica Médica e Geriatria, é um exemplo dessa abordagem. Ele oferece consultas médicas, atendimentos de enfermagem e terapias multidisciplinares — presenciais ou por telemedicina — garantindo acesso ampliado, inclusive a pacientes acamados em qualquer região do Brasil. Um enfermeiro navegador atua como elo essencial ao monitorar remotamente os beneficiários, acompanhar suas jornadas e garantir coordenação efetiva entre todas as Linhas de Cuidado.

“O monitoramento remoto está presente em todas as Linhas de Cuidado, com dados e históricos integrados ao prontuário eletrônico em uma plataforma de telemedicina aprimorada com elementos de IA. Indicadores como redução de internações, diminuição de passagens em prontos-socorros e queda no custo assistencial por paciente engajado demonstram o impacto do modelo.” Para Souleyman, a tecnologia fortalece — e não substitui — o vínculo clínico, ao permitir mais tempo para acolhimento e acompanhamento.
Esse movimento também é observado na Alice. O líder médico do Time de Atenção Primária, Daniel Knupp, destaca que o cuidado coordenado é sustentado por dois pilares: o Time de Saúde — composto por médicos de família e enfermeiros com cobertura universal — e a tecnologia, que integra toda a jornada – do cuidado contínuo às interações com especialistas, exames, laboratórios e hospitais parceiros.
“Ao contrário de operadoras que utilizam a APS como barreira, a Alice adota um modelo voluntário: o membro não precisa passar pela APS para acessar especialistas, mas escolhe fazê-lo, porque encontra uma equipe que o conhece integralmente e o guia pelo sistema. O resultado disso é que 50% dos membros têm algum contato mensal com o Time de Saúde, e entre populações de maior risco, o índice supera 70%”, destaca Knupp.
A integração entre APS, telemedicina e monitoramento remoto faz parte do desenho assistencial da Alice desde o início. “Cada membro tem um médico de família que o acompanha longitudinalmente, com consultas presenciais ou digitais. Um time exclusivo de enfermagem monitora populações mais vulneráveis — como pacientes crônicos, gestantes e crianças — atuando de forma remota para identificar lacunas de acompanhamento.”
Knupp acredita que os resultados reforçam o impacto de um modelo coordenado baseado em vínculo e tecnologia. “A Alice opera com 53% de custo de cuidado na carteira empresarial, índice significativamente abaixo da média do setor (superior a 80%), e reajustes mais baixos que o mercado.”
Entre os desfechos clínicos, destacam-se: 46% menos consultas com especialistas; 30% menos uso de pronto-socorro; 19% menos internações; reinternação não programada de 5,8% (versus 8,8% no mercado); melhores indicadores de controle de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão; e melhora superior em marcadores de qualidade de vida e gestão de obesidade.
Na Amil, os resultados do modelo já aparecem nos indicadores monitorados pela operadora. “Acompanhamos taxas de internação e reinternação, passagens por prontos-socorros, adesão terapêutica, melhorias clínicas e dados operacionais. Há evidências de redução de internações, queda no uso de pronto-socorro e menor custo por paciente engajado, refletindo o impacto positivo de um cuidado coordenado.”
Assim como na Amil, a Alice reforça que o avanço tecnológico fortalece o vínculo e a confiança com o paciente. A automação e a IA liberam tempo clínico e garantem histórico completo e atualizado, mas o relacionamento é conduzido por equipes que acompanham o membro ao longo do tempo — o que, segundo Knupp, devolve o foco para o essencial.
APS é foco também em modelos de autogestão em saúde
A Postal Saúde vem passando por uma reestruturação estratégica de seu modelo de Atenção Primária à Saúde. O objetivo é superar a lógica tradicional de “porta de entrada” e posicionar a APS como eixo central de gestão da saúde dos beneficiários — conectando operadora, prestadores e serviços de média e alta complexidade de forma contínua.
No novo modelo, a operadora adota práticas de Gestão de Saúde Populacional (GSP), com análise crítica de dados, estratificação de risco e atuação proativa em prevenção e promoção da saúde. Beneficiários são classificados em grupos de baixa, média ou alta complexidade, garantindo que cada usuário tenha uma jornada assistencial ordenada, longitudinal e integral.
Para isso, a operadora firmou parcerias estratégicas com prestadores responsáveis pelos principais pontos de demanda, fortalecendo o referenciamento e o fluxo de contrarreferência. “Essa integração permite que a APS deixe de atuar isoladamente e passe a funcionar como coordenadora de um cuidado que se materializa de ponta a ponta, reduzindo fragmentação e evitando o uso desnecessário de serviços complexos”, explica Thiago Isola Braga, diretor de Operações de Saúde.
A incorporação de ferramentas digitais tem potencializado o alcance desse modelo. Dashboards operacionais permitem acompanhar em tempo real os atendimentos realizados nas Clínicas de APS, enquanto consultórios digitais multiespecialidades e um serviço de telemedicina 24h ampliam o acesso e funcionam como um “filtro inteligente”, direcionando beneficiários ao nível de atenção mais adequado. Já o monitoramento remoto auxilia na prevenção de agravamentos e fortalece a continuidade do cuidado — especialmente para pacientes com doenças crônicas ou demandas de maior complexidade clínica.
Os resultados começam a aparecer de forma consistente. “Estudos mostram redução de até 26% no custo per capita, refletindo uma desaceleração da sinistralidade. Há também ganho na adesão aos tratamentos, impulsionada pela comunicação mais próxima entre equipes assistenciais e beneficiários, além da otimização do uso da rede por meio de encaminhamentos mais assertivos e ordenados.”
Apesar dos avanços, a operadora identifica desafios para escalar o modelo em âmbito nacional. Entre eles estão a resistência cultural de parte dos beneficiários — ainda habituados ao uso direto da rede especializada — e questões de interoperabilidade entre sistemas, que podem comprometer a fluidez das informações clínicas.
Braga diz que, para consolidar a APS como eixo contínuo do cuidado, a Postal Saúde tem priorizado programas de educação em saúde, comunicação recorrente e estratégias de engajamento, além do fortalecimento contínuo da estrutura das Clínicas de APS e da integração com a rede referenciada.
Modelos avançados de APS são um caminho inevitável para o setor
“A estruturação de modelos avançados de cuidados é um caminho inevitável para garantir sustentabilidade e melhores desfechos no Brasil”, analisa Cassio Ide Alves, diretor técnico-médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).
Segundo o executivo, essa transformação reflete uma mudança estrutural na forma como pacientes, operadoras e empresas compreendem a jornada de saúde: mais integrada, preventiva e sustentada por dados clínicos que permitem acompanhamento contínuo e gestão do risco.
“Estudos nacionais e internacionais reforçam essa tendência ao demonstrar que a atenção primária e secundária é capaz de resolver entre 80% e 90% das necessidades de saúde ao longo da vida — um indicador consistente do potencial de resolutividade e eficiência da APS.”
Para que a APS digital e contínua se consolide, Alves destaca a necessidade de mudanças estruturais em três pilares. O primeiro diz respeito ao financiamento, com incentivos alinhados à prevenção e a modelos baseados em resultados, e não em volume de atendimentos. O segundo envolve a regulação, com políticas que garantam interoperabilidade, segurança da informação e integração entre prestadores. “O terceiro — e talvez o mais desafiador — é cultural: estimular o engajamento do beneficiário e reforçar a importância do acompanhamento regular, mesmo na ausência de sintomas.”
Alves comenta que, apesar dos avanços, desafios persistem. “A baixa adesão da população a programas de prevenção, a alta rotatividade dos contratos corporativos — com trocas de operadora a cada dois anos, em média — e a necessidade de fortalecer uma cultura de acompanhamento contínuo dificultam a escala do cuidado coordenado no país.”
Ainda assim, o executivo considera que os ganhos assistenciais e econômicos já observados indicam que essa evolução é não apenas necessária, mas irreversível para o futuro da saúde suplementar.
Para Vitor Ferreira, presidente da Associação Brasileira CIO Saúde (ABCIS) e CIO do Hospital Sabará, o maior obstáculo para a incorporação de uma APS sólida ainda está na base. “O primeiro obstáculo é a infraestrutura. Há unidades sem o básico, com sistemas frágeis, sem prontuário eletrônico padronizado, com interações pontuais e divergentes. Sem interoperabilidade, não existe APS digital de verdade.”

Ferreira reforça que a saúde só será eficiente quando operar de forma proativa, e não reativa. “A integração dos dados populacionais é premissa básica. Só com informações consolidadas é possível chegar ao paciente no melhor momento, antes que uma condição se agrave”, explica.
Para consolidar a APS como eixo estrutural do sistema, ele defende mudanças amplas: modelos de pagamento alinhados à prevenção, incentivos regulatórios claros, redefinição de políticas públicas e adoção de estruturas que realmente reconheçam a APS como gestora da jornada do paciente. “É a única unidade capaz de enxergar o indivíduo transversalmente ao longo da vida e conectar esse paciente a protocolos adequados por meio de contato contínuo.”
Apesar de receios recorrentes, Ferreira avalia que a evolução digital pode reforçar o vínculo e o papel da APS na gestão do paciente. “Com ferramentas digitais conseguimos oferecer coisas simples que antes não eram possíveis: acesso rápido a orientações, monitoramento de crônicos, apoio em momentos críticos. A APS permanece próxima, mas com instrumentos mais poderosos para acompanhar o paciente.”
Empresas e instituições de saúde no caminho da união para construir um novo modelo de cuidado
Outro movimento crescente é a integração entre instituições de saúde e empresas, que começam a levar o cuidado coordenado para dentro dos ambientes corporativos. Esse modelo reduz deslocamentos, diminui o absenteísmo e eleva a satisfação dos colaboradores, ao mesmo tempo em que facilita o acompanhamento regular.
O modelo Einstein On-Site Clinic é um dos exemplos mais robustos desse movimento. Ao levar o cuidado para dentro das organizações, o Einstein On-Site Clinic reposiciona o papel da empresa: ela deixa de ser apenas um local que oferece pronto-atendimento e passa a ser um agente ativo de promoção da saúde.
O modelo é baseado em equipes multiprofissionais – médicos de família e enfermeiros – que atuam com vínculo longitudinal, conhecendo o histórico, hábitos e riscos de cada colaborador. A condução segue protocolos e diretrizes clínicas, sempre orientada pela medicina baseada em evidências.
“Essa integração direta com o cotidiano dos colaboradores cria condições para um cuidado contínuo, preventivo e personalizado. E, ao mesmo tempo, aproxima empresas e operadoras, alinhando expectativas e garantindo que o cuidado corporativo contribua para a saúde da população beneficiária e para a sustentabilidade dos planos de saúde”, avalia Marina Hutter, diretora de Medicina Ambulatorial do Einstein.
O avanço do modelo também ocorre por meio de uma estrutura híbrida que combina atendimento presencial, telemedicina e monitoramento remoto. Os dados clínicos ficam consolidados em um prontuário eletrônico interoperável com os demais serviços do Einstein, possibilitando uso de análises preditivas para identificar riscos de saúde antes que se transformem em eventos agudos.
“Para hospitais, esse tipo de integração cria uma rede mais coordenada e menos fragmentada. Para operadoras, traz previsibilidade de custos e melhora dos indicadores assistenciais. Para as empresas, significa colaboradores mais saudáveis, produtivos e engajados no próprio cuidado”, diz Marina
A executiva conta que as empresas que já adotaram o modelo relatam ganhos consistentes, como maior vínculo, acolhimento e confiança; aumento de rastreamentos preventivos; e desaceleração dos sinistros.
Na opinião de Marina, o futuro da APS corporativa no Brasil depende menos de tecnologia e mais de cultura. “É preciso que empresas e colaboradores reconheçam a APS como investimento – não como custo. Da mesma forma, operadoras e hospitais precisam atuar como corresponsáveis por modelos que priorizem prevenção, cuidado longitudinal e gestão de risco.”
O que se projeta, segundo ela, é uma rede nacional de Atenção Primária corporativa, conectada por protocolos clínicos padronizados, telemedicina integrada, monitoramento remoto, interoperabilidade entre empresas, operadoras e hospitais e equipes qualificadas e alinhadas a uma visão de cuidado contínuo.
“Ao alinhar empresas, operadoras e hospitais em torno da Atenção Primária, o modelo contribui para um movimento maior: posicionar o cuidado preventivo, contínuo e personalizado como eixo estruturante da saúde no Brasil.
A expansão desse modelo representa não apenas ganhos individuais ou corporativos, mas um avanço sistêmico, capaz de fortalecer toda a cadeia assistencial.”
Sistema Único de Saúde: novos caminhos para fortalecer a APS
No Sistema Único de Saúde (SUS), a APS ocupa um papel estruturante. “No entanto, ampliar o acesso não basta. Cobertura numérica não significa, por si só, efetividade nem qualidade. E é justamente para esse ponto que o debate contemporâneo se desloca”, analisa Maria Letícia Machado, coordenadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Maria Letícia destaca que, no cenário internacional, modelos baseados em valor têm ganhado força para orientar decisões a partir do que importa para os usuários. “Porém, sua adoção exige enfrentar obstáculos como a fragmentação de informações, a falta de métricas clínico-relevantes e a ausência de mecanismos consolidados de monitoramento. Sem dados confiáveis não há valor; sem transparência, não há confiança para sustentar modelos de pagamento ou avaliação de desempenho.”
Algumas iniciativas no SUS têm se destacado por integrar qualidade, participação e tecnologia de forma estruturada. O Recife Monitora é um exemplo. A iniciativa, desenvolvida pela Prefeitura do Recife em parceria com o IEPS e apoio da Umane, criou um sistema de melhoria contínua na APS.
“O modelo articula indicadores estratégicos, pesquisa de satisfação dos usuários e instrumentos que capturam a percepção das equipes sobre rotinas e condições de trabalho. Ao incorporar de forma sistemática a voz de quem cuida e de quem é cuidado, o sistema fortalece vínculos, estimula melhorias contínuas e integra o debate sobre qualidade ao dia a dia das unidades de saúde.”
Essa experiência mostra, acredita Maria Letícia, que a tecnologia pode ser uma aliada poderosa na geração de valor para o usuário, desde que não desloque o que sustenta o cuidado: vínculo, confiança e escuta qualificada.
“Fortalecer a APS no SUS passa por combinar acesso, qualidade, participação social e tecnologia, sempre partindo do território e da experiência das pessoas. Sistemas universais só permanecem vivos quando conseguem ouvir, aprender e se adaptar continuamente. Nesse processo, a APS se reafirma como o coração do cuidado no Brasil — e como o ponto de partida para um sistema mais efetivo, equitativo e orientado a valor.”
O avanço da APS no Brasil revela um consenso: modelos baseados em prevenção e coordenação do cuidado são essenciais para a sustentabilidade do setor. Mas essa transição exige interoperabilidade, incentivos adequados, mudanças culturais e uma visão compartilhada entre operadoras, hospitais, empresas e gestores públicos. O país já demonstra capacidade de inovar — falta agora escalar, integrar e sustentar um movimento que redefinirá o cuidado nas próximas décadas.