Metade da humanidade mal tem tempo de sentar antes que a consulta ambulatorial acabe. O maior levantamento comparativo publicado até hoje – uma revisão do BMJ Open que somou 28,6 milhões de encontros em 67 países – descobriu que a mediana global de contato direto entre médico e paciente é inferior a 5 minutos. Em Bangladesh, por exemplo, a média despenca para 48 segundos; no extremo oposto, Suécia e Noruega rondam os 22 minutos; o Brasil estaciona há anos entre 7 e 8 minutos. A metade desse tempo é consumida impiedosamente por ‘burocracia clínico-elementar’, ou seja, confirmar alergias, medir pressão, digitar o número do cartão, localizar exames antigos, etc. Nesses minutos primários da consulta médica, o ambulatório sangra produtividade.
Não existe milagre capaz de transformar um profissional intencionado em um ‘hipermédico qualificado’ numa consulta de poucos minutos. À medida que a sala de espera se avoluma e o médico se sabe responsável por cada desfecho, a prescrição de exames acaba tornando-se o antídoto legítimo contra o erro clínico. O desenlace imediato pode ser o professor Drauzio Varella reclamar da quantidade extrema de exames prescritos, que, segundo ele, podem ocorrer por incompetência clínica, baixa formação das novas academias médicas (ou pela quantidade delas), etc. Certamente que ele tem um alto coeficiente de razão, mas a conclusão é simplista em demasia. O alcance é muito mais profundo do que a baixa qualificação do profissional de saúde.
No primary care, se cada visita gasta de 3 a 4 minutos colhendo dados que o paciente poderia ter entregue antes, precisamos encaixar o “dobro de profissionais só para alcançar a mesma cobertura clínica”, o que muitos países já aprenderam e hoje utilizam com sucesso os “procedimentos de pré-consulta”. O médico, por melhor ou pior que seja, é um coletor de dados que, em geral, o paciente já dispõe antes de colocar o pé no ambulatório. As guias de trabalho do BMA (Associação Médica Britânica), publicadas entre 2023-2024, incentivam que a consulta médica tenha no mínimo 15 minutos, mas sugerem sempre que os requisitos de pré-consulta sejam acionados.
A “pré-consulta digital” nasce como resposta organizacional a esse desperdício. Seu conceito é de uma banalidade medieval: “tudo o que não requer estetoscópio – queixas, evolução dos sintomas, lista de medicamentos, fotografia da carteirinha, sinais vitais automatizados quando disponíveis – é capturado em casa ou na sala de espera por um roteiro guiado”. Se adicionarmos as possibilidades das NLPs (Processamento de Linguagem Natural), uma área da IA que permite as máquinas compreenderem, gerarem e conversarem em linguagem humana, nenhum paciente precisará escrever nada na pré-consulta, sendo tudo baseado em linguagem oral, falada, em português, ou qualquer outra língua de escolha.
É claro que isso não elimina que uma parte considerável da comunidade médica esteja despreparada para clinicar e, menos ainda, para prescrever. A solicitação de exames em excesso é uma imprudência em que “médico+paciente+sistema” se abraçam em comunhão de interesses, mas a maioria das solicitações não é espúria. Se o médico, no primeiro atendimento, manda o paciente de volta para casa com uma análise diagnóstica baseada tão somente em sua habilidade de touching, ausculta e feeling cognitivo, voltamos ao século XIX. O “fluxo de pré-consulta” é uma colossal ferramenta de produtividade clínico-ambulatorial. Testado recentemente numa das maiores redes dos EUA de atenção primária, a ‘pré-documentação’ economizou 34 minutos de digitação por dia, abrindo espaço para 5 consultas extras e, ao contrário do temor disseminado, reduziu a prescrição defensiva de exames: com mais tempo para conversa, o clínico solicitou menos hemogramas de rotina e seguiu melhor as diretrizes de rastreamento.
No Reino Unido, onde o NHS adotou a “triagem conversacional para conter agendas superlotadas”, a espera pelo primeiro atendimento caiu de 15 para 4 dias; na mesma experiência, o número de faltosos despencou. “O chatbot, que fala e envia áudios de lembrete, confirma presença de modo quase tão persuasivo quanto um telefonema humano”, explica o NHS. Em pilotos brasileiros conduzidos pela Fiocruz (Unidades Básicas de Saúde tipo II), a combinação de WhatsApp Business com triagem por voz liberou cerca de 6 horas-médico por semana e não registrou, em seis meses, qualquer caso grave sub-triado (fonte: “Saúde é Desenvolvimento”). São ações que dobram a entrega de cuidado usando o mesmo corpo clínico.
A “curva em U”, encontrada em estudos britânicos de atenção primária ambulatorial com uso da pré-consulta, mostra que os médicos que atendiam a um ritmo médio — cerca de 2,7-3,8 pacientes/hora (12 a 15 min por sessão) — pediam significativamente menos hemogramas do que colegas muito rápidos (< 10 min) ou muito lentos (> 20 min). O resultado sugere que, quando o tempo é “suficiente e focado”, o clínico confia mais na anamnese e no exame físico e evita solicitações de rotina ou defensivas. Ensaios simulados e séries temporais mostraram que, quando o médico é colocado sob pressão explícita de tempo, cai a adesão às diretrizes de solicitação de exames, aumentando a necessidade de consultas de retorno. Por outro lado, sobe a taxa de intervenções de baixo valor (incluindo exames pouco indicados).
Não devemos temer os números, e se não os temos, devemos buscá-los. Nos EUA, por exemplo, análises de 19 milhões de consultas em redes de EHRs revelaram outro ângulo: visitas agendadas para o fim do turno — quando a agenda já está atrasada e a duração real encurta — reduzem em até 10% a probabilidade de o clínico solicitar exames de rastreamento (mamografia, colonoscopia, etc.). Ou seja, a falta de tempo também pode levar à subsolicitação de exames recomendados (fonte: JAMA).
No Brasil, os procedimentos de pré-consulta ainda são raros, notadamente no SUS. Há muitas explicações e ilações, mas uma delas passa pelo letramento: o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional estima que 29% dos brasileiros entre 15 e 65 anos “não dominam operações básicas de leitura”. Pedir que escrevam os sintomas é condenar o projeto ao fracasso. Outra questão é a assimetria tecnológica: até 2024, boa parte das UBS não possuía prontuário eletrônico estável nem API do SUS-Digital para receber dados externos. Some-se a isso um modelo de pagamento que remunera o “ato-consulta”, mas ignora o tempo gasto antes dela. Há uma timidez (para não dizer ignorância) no descarte as questões que envolvem o atendimento ambulatorial de curta duração. Os planos de saúde e a tabela particular da CBHPM remuneram o “ato da consulta” (presencial ou virtual), mas não distinguem nem pagam o momento assíncrono de coleta de dados. A Resolução CFM 2.314/2022 legitima a telemedicina, porém não cria códigos específicos para atividades de pré-visita; na prática, o médico não recebe nada extra por essa etapa, deixando que o fluxo de pré-consulta seja um instrumento para aumento substancial da produtividade. Sem remuneração, o esforço extra vira “custo oculto” para o profissional e para o sistema.
Assim, nos encontramos com uma questão alucinante: “o dado existe, mas não tem onde pousar; a inovação existe, mas não gera caixa”. A fragmentação de sistemas, as exigências da LGPD e o receio cultural completam o circuito de freios para implementação dos procedimentos de pré-consulta. O Brasil tem 87,6% da população (10 anos+) com celular próprio e 92,5% dos domicílios com internet (embora essa cobertura caia para 81% nas zonas rurais). Não obstante, pouquíssimas instituições (públicas ou privadas) fazem uso da pré-consulta, muitas a caracterizando “como estímulo a perda de controle do profissional”. Mas o paciente não escapa dessa ciranda de equívocos: muitos relatam dúvida sobre a segurança dos dados ou simplesmente preferem “contar tudo pessoalmente”, sobretudo nas faixas etárias de menor letramento digital.
IA expande ainda mais os procedimentos de pré-consulta
O que torna essa etapa decisiva, porém, não é o “pré-formulário” em si, mas a convergência de três tecnologias maduras: (1) reconhecimento de fala capaz de compreender a linguagem coloquial; (2) visão computacional que transforma uma selfie do cartão do SUS em dados estruturados; e o (3) NLP clínico, um modelo linguístico treinado para destilar o relato espontâneo em sentenças SOAP (ou em códigos SNOMED-FHIR). O paciente fala, toca em ícones de intensidade de dor ou permite que o agente comunitário tenha uma transcrição online do encontro. A plataforma agêntica transcreve o áudio em texto, podendo identificar a expressão “parei de fumar há um ano”do paciente, classificando-o como ex-tabagista de alto risco. Da mesma forma, os sistemas de pré-consulta calculam pack-years, deixando no prontuário do paciente um resumo de cinco linhas antes que o médico diga “bom dia”.
O ‘ponto de virada’, porém, é adotar uma postura “voice-first”: formular o intake para que o paciente interaja sem digitar – gravando áudio, tocando em pictogramas, fotografando documentos: (1) reconhecimento de fala em português já opera com erro inferior a 10%; (2) um vision-OCR lê números do cartão SUS com precisão de 90% sob iluminação razoável; e (3) os grandes modelos clínicos agora rodam em nuvem pública compatível com o DATASUS. Integrar tudo ao prontuário (via FHIR ou por qualquer outro protocolo) ‘elimina o salto mortal do PDF’ e transforma cada resposta em informação acionável. Se a UBS não tem 4G, o agente comunitário de saúde age como “proxy digital”: grava o áudio do morador com a mesma sequência de perguntas e sincroniza assim que voltar à área de cobertura. O custo marginal dessa infraestrutura é irrisório diante do custo de contratar novos médicos ou manter filas.
Não existe um “número mágico de minutos” capaz de domar simultaneamente o hiperuso de exames e o subuso dos rastreamentos. Sessões relâmpago (< 10 min) disparam pedidos defensivos — radiografia lombar, PCR “por via das dúvidas” — e deixam de acionar rastreamentos preventivos que exigem conversa. A faixa de 12 a 15 minutos aparece repetidamente como o ponto em que o fluxo de pré-consulta é determinante. Às vezes, inovação não é ser extra, mas é ser intra: se não conseguirmos alongar o tempo de consulta, podemos agilizar sua estrutura intraoperacional, fazendo com que os dados do paciente cheguem ao médico antes do próprio paciente.
Até a chegada das práticas digitais na prática médica, o paciente entrava num consultório como quem atravessasse o palco de um teatro elisabetano, com o médico ocupando o centro da cena. Era meio sacerdote, meio cartógrafo da dor, enquanto o paciente se aproximava suplicante em busca de aconselhamento. Isso mudou, nas últimas duas décadas de forma vertiginosa. A consulta passou a vender alívio em pacotes de quinze minutos, empilhando protocolos como se fossem produtos de prateleira, trocando a “escuta pela escala”.
As boas novas são que “máquinas socráticas de silício”, também denominadas Inteligência Artificial, já são capazes de vigiar sinais vitais enquanto dormimos, vasculhar prontuários como quem lê Borges, entregar ao clínico um dossiê sintético pré-consulta antes mesmo de ele cumprimentar o paciente. A partir de agora, a pré-consulta será um vestibular algorítmico em que um Agente IA escuta tosses, mede hesitações na voz, cruza dados populacionais em tempo real e oferece hipóteses. De repente, a consulta deixa de ser um cipoal de sintomas e pode se tornar um “estúdio artístico”: liberto da contabilidade cognitiva, o médico pode ter mais tempo para compor um quadro clínico específico e criterioso para cada corpo.
Quanto aos exames desnecessários devido à baixa proficiência médica, relaxe: um Agente IA de suporte à decisão clínica ajudará qualquer médico a decidir como um grande especialista. Em abril de 2025, o estudo “Comparison of Initial Artificial Intelligence (AI) and Final Physician Recommendations in AI-Assisted Virtual Urgent Care Visits”, apresentado na reunião anual do ‘American College of Physicians Internal Medicine’ e liderado pelo Cedars-Sinai, mostrou como visitas virtuais habilitadas por IA obtiveram classificação mais alta do que as decisões dos médicos. “Descobrimos que as recomendações iniciais de IA para queixas comuns em um ambiente de atendimento de urgência foram classificadas como mais altas do que as recomendações médicas finais. A inteligência artificial, por exemplo, foi especialmente bem-sucedida em sinalizar infecções do trato urinário potencialmente causadas por bactérias resistentes a antibióticos e sugerir que uma cultura fosse solicitada antes de prescrever medicamentos”, explicou Joshua Pevnick, diretor do Cedars-Sinai, professor de medicina e coautor do estudo. Médicos que aderirem ao apoio agêntico, seguramente serão menos erráticos na prescrição de testes diagnósticos.
Mesmo que não inclua IA, qualquer consultório, médico, clínica, hospital ou sistema de saúde já deveria estar usando os questionários de pré-consulta há pelo menos uma década. O notável pensador francês Jacques Derrida (1930-2004)lembrava que todo diálogo carrega em si algo chamado “différance” (com a letra “a” no lugar do “e” que aparece em différence). Para ele, esse é o hiato entre o que dizemos e o que somos. A pré-consulta não vai eliminar o hiato; mas amplia-o com dados, imagens, gráficos e estudo, oferecendo ao médico (e ao Sistema) “sons” antes inaudíveis. Num tempo em que a informação se commoditiza mais rápido do que placebo, “a verdadeira escassez já não é o Dado, mas o discernimento”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)
Curador FDHIC