A economia global cambaleia como um corpo febril (ou ébrio?) sem diagnóstico definitivo. Tarifas em cascata afundam a estabilidade em pântanos cada vez mais viscosos, que nem um século de geoeconomia consolidada é capaz de evitar. Em chamas, duas frentes de guerra ameaçam engolir a Europa e o Oriente Médio, enquanto milhares de refugiados boiam às margens do Mediterrâneo. Mesmo a América, sempre calorosa com o além-mar, policia suas fronteiras com altiva impassividade. A crise climática, por sua vez, revela que, por mais titânico que seja o esforço humano para contê-la, sempre nos parece insuficiente para repeli-la. Em meio a essa desarrumação político-econômica, quase passou despercebido o anúncio do crossNN, uma rede neural “explicável” que lê a impressão digital epigenética de um tumor, já atingindo 97,8% de acurácia para mais de 170 tipos de câncer (99,1% para tumores cerebrais).
Sobre o que estamos falando? Por que não instituímos um “feriado mundial” para demarcar esse fato histórico? Como os temas plurinacionais (questiúnculas tarifárias absolutamente temporais) podem mitigar a importância desse anúncio? Por que seguimos absorvidos por querelas torpes quando feitos biomédicos estariam à altura de uma comoção universal?
O anúncio, feito em junho de 2025 pelo Charité Universitätsmedizin Berlin em colaboração com parceiros internacionais, quase passou em branco, ganhando destaque somente em agosto último, quando ensaios clínicos multicêntricos do crossNN já começaram a ser oferecidos como “testes de rotina” (limitados). No fundo, os pesquisadores revelaram um modelo de inteligência artificial (IA) capaz de classificar e diagnosticar com precisão tumores, especialmente aqueles localizados em regiões anatomicamente sensíveis e de difícil biópsia, como o cérebro. Trata-se, portanto, de um cisne negro: uma IA de grande impacto no diagnóstico oncológico, eclipsado por notícias movediças.
Se uma imagem de ressonância magnética mostra um tumor cerebral em posição desfavorável, e uma biópsia representa alto risco para um paciente com um quadro, por exemplo, de diplopia, o que fazer? Os pesquisadores da Charité, por óbvio, festejaram. Afinal, seu modelo de IA, que explora características específicas no material genético tumoral, é capaz de classificar cânceres de forma rápida e extremamente confiável, como explicou a revista Nature Cancer. O que diferencia o modelo “crossNN” é sua arquitetura relativamente simples, altamente explicável e rastreável (um colossal avanço em relação aos sistemas de IA “caixa-preta”). Isso significa que “médicos e pesquisadores podem entender exatamente como a máquina chega às conclusões, fomentando a confiança e facilitando aprovações regulatórias para uso clínico”.
O Charité Universitätsmedizin Berlin é um dos maiores hospitais universitários da Europa. Mais da metade dos vencedores alemães do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, como Emil von Behring, Robert Koch e Paul Ehrlich, passou por lá.O Centro Alemão de Pesquisa do Câncer (DKTK), correalizador do crossNN, já iniciou ensaios clínicos em seus oito centros e já testa o uso intraoperatório do modelo.
O método de coleta do líquor também é invasivo, mas menos do que a biópsia tradicional de tecido. Mas o que é uma “biópsia-líquida epigenética”? Trata-se de um exame feito a partir de líquidos corporais (geralmente sangue, mas também líquor, urina ou saliva) para detectar informações moleculares do tumor. No caso epigenético, o exame não procura mutações genéticas, mas sim padrões de metilação do DNA tumoral que circulam nesses líquidos. Esses padrões fornecem um “rastro” do câncer sem necessidade de acesso direto ao tumor. Assim, a biópsia-líquida epigenética requer uma punção venosa (sangue) ou lombar (líquor), procedimentos muito menos arriscados que uma biópsia cirúrgica, que exige anestesia, internação e apresenta riscos adicionais.
O treinamento da IA crossNN envolveu um extenso conjunto de perfis epigenéticos, com dados superiores a 8.000 tumores de referência, cada um representado por centenas de milhares de data-points derivados de diversos métodos de sequenciamento. O modelo foi rigorosamente testado em mais de 5.000 amostras tumorais, demonstrando desempenho robusto mesmo ao analisar perfis epigenéticos incompletos ou dados gerados por técnicas variadas e de qualidade heterogênea.
Para entender o alcance dessa descoberta e da importância da IA nesse contexto, é preciso perceber o conceito de “impressão digital epigenética” (genoma vs. epigenoma). O DNA é como o texto integral de um livro, onde a sequência de letras (A-T-C-G) quase não muda de uma célula para outra. Já o epigenoma é a “diagramação” (os sublinhados, os marcadores de página, post-its coloridos, etc.) que indica “quais capítulos devem ser lidos com ênfase e quais devem permanecer fechados”. Esses “marcadores” são modificações químicas que não alteram a letra do texto, mas controlam a forma como ele é lido. Os principais “marcadores” são: Metilação de DNA; Modificações de Histonas; e Organização Tridimensional da Cromatina. O conjunto dessas “marcas”, em centenas de milhares de posições, forma um padrão único para cada tipo de célula, tão característico quanto uma impressão digital. Assim, quando uma célula se torna cancerosa, seu epigenoma é reprogramado: genes de proliferação se destravam, freios de crescimento são “silenciados”, e o padrão resultante é consistentemente diferente do tecido de origem. Ao sequenciarmos (“lermos”) esses padrões e compararmos com um “banco de epigenomas tumorais conhecidos”, podemos identificar o tipo exato de tumor mesmo em amostras mínimas, ou originadas de plasma, ou líquor, ou que tenha sido gerada em diferentes laboratórios. O modelo crossNN faz justamente esse pareamento, tratando o perfil de metilação como um vetor de alta dimensionalidade e apreendendo qual “impressão digital” coincide com a amostra interrogada.
Essa é a ‘alquimia pós-moderna’ que empodera o crossNN: (1) é sensível e detecta alterações antes de mutações genéticas visíveis ao microscópio; (2) é universal, sendo aplicada a praticamente todos os tecidos e tumores, pois todos carregam marcas epigenéticas; e (3) é minimamente invasiva, bastando DNA “solto” no sangue (cfDNA) ou no líquor, evitando biópsias cirúrgicas quando o local é de difícil acesso. O anúncio é ainda mais notável porque a “impressão digital epigenética” funciona como um código químico acima do DNA, registrando quem é a célula e como ela se comporta. Aprender a lê-la, como faz o crossNN, permite diagnosticar cânceres com precisão inédita, quase como reconhecer alguém apenas pelas digitais, sem precisar vê-lo.
Entenda o contexto da descoberta e comemore no público e no privado: em poucos meses você poderá ser diagnosticado por essa prodigiosa IA. Pense que hoje conhecemos muito mais tipos tumorais do que os órgãos de origem. Cada neoplasia exibe traços histológicos, ritmos de crescimento e peculiaridades metabólicas próprias; ainda assim, tumores com perfis moleculares semelhantes podem ser agrupados. A escolha do tratamento depende decisivamente dessa tipificação. Terapias-alvo bloqueiam estruturas ou vias específicas, enquanto quimioterapias são ajustadas conforme o subtipo tumoral. “Num cenário de medicina oncológica cada vez mais personalizada, diagnósticos precisos de centros certificados são essenciais para o sucesso terapêutico. Entretanto, nem sempre é possível ou seguro extrair amostras de tecido, e mesmo a histologia tradicional não atinge a precisão do novo modelo de IA”, ressalta o Prof. Martin E. Kreis, diretor médico da Charité. Para certos tumores cerebrais, o Departamento de Neuropatologia do Charité já oferece diagnóstico não invasivo via líquor, usando sequenciamento Nanopore rápido (utiliza um único poro nanométrico para ler moléculas inteiras de DNA em tempo real). No caso do paciente com diplopia citado acima, o crossNN revelou um linfoma do sistema nervoso central, possibilitando o início imediato da quimioterapia apropriada.
Uma fotografia atual do mundo exibe uma balbúrdia. Podem-se distinguir pelo menos três protagonistas circunstanciais nessa algazarra: os apáticos (indiferentes), os desinformados e os abobalhados. Os piores estão na última categoria: os abobalhados são aqueles que leem um pouco de tudo, acompanham todos os noticiários, destilam análises críticas sobre a “situação atual” e, ao fim do dia, vomitam nas redes sociais sua impaciência com os líderes, contra as guerras, contra a economia, contra os vizinhos e assim sucessivamente até o limite de sua ignorância (que varia a cada momento). Não existem ‘indivíduos abobalhados’, mas circunstâncias que nos levam a esse estágio. Todos passamos por ele, com maior ou menor intensidade. Não nascemos abobalhados (pelo menos em regra), mas experimentamos periodicamente esse domínio. O mundo é cruel e o caos mais ainda, mas esse obscurantismo intermitente degrada nossos horizontes.
Há crises relevantes ou triviais em todas as regiões sociais. Sempre foi assim, mas nunca foram explicitadas com tamanha velocidade. Parece que a civilização equalizou sua ‘quilometragem horária’ à velocidade evolutiva das IAs. Nesse sentido, ser otimista passou a ser uma heteronomia, ou seja, antes de alcançarmos a autonomia estamos condenados a fatos cotidianos extraordinariamente desimportantes para a civilização. Embarcamos facilmente na desordenação global.
Matrizes probabilísticas sobre o futuro das IAs, por exemplo, reveladas em estudos, pesquisas e documentos (alguns sérios, outros vagos e boa parte ideologizada) prescrevem um crítico e sombrio cenário de empregabilidade na próxima década. O caos é assim mesmo: chega como vendaval e varre primeiro as cabanas de quem já vivia à margem. Massacra ribeirinhos, fecha fábricas, abarrota enfermarias e, por um instante, só acrescenta ruína ao que já era precário. Entretanto, como os incêndios que periodicamente castigam a Espanha, devoram seus campos hoje para adubar suas oliveiras amanhã. O caos pode ser brutal, mas, nos canais de notícias, sempre parece mais do que é e menos do que pretendia ser.
Para muitos,a profusão das IAs se assemelha ao caos (Chaos, ou Kaos, que na “Teogonia” de Hesíodo era o ‘abismo sem limites, antecedendo Eros e sua força coesiva). Assim, o “caos” chega desarticulando e, paradoxalmente, guarda a potência de reorganizar o real (o fogo que queima e aduba). Os abobalhados de ocasião, imersos nas tranqueiras de um mundo modernoso, ignoram que desde a cosmogonia grega o ‘Chaos’ não é só destruição: é o interstício fértil entre uma ordem falida e uma nova forma. Ou seja, é o terreno para que descobertas como o crossNN possam germinar.
Foi assim na Peste Negra, quando metade das aldeias europeias perdeu gente demais para continuar colhendo o trigo. Os senhores feudais descobriram que seus brasões não eram capazes de ceifar os campos. Pressionados, trocaram a servidão por contratos assalariados, baixaram rendas e, sem altruísmo algum, viram despencar a desigualdade sustentada desde Carlos Magno. Foi preciso o hálito pestilento de um bacilo para que o lavrador medieval, antes irrelevante como a própria terra, pudesse enfim negociar seu dia de trabalho por moeda fresca.
Mesmo um vírus microscópico e caótico pode derrubar muros aparentemente intransponíveis. A gripe de 1918 (‘espanhola’) matou milhões, mas obrigou prefeitos, médicos e professores a ensinar ‘tosse coberta’, quarentena e vigilância epidemiológica. Departamentos de saúde públicos ganharam orçamento permanente, pois seria suicídio coletivo permitir nova catástrofe sem trincheiras sanitárias. A pedagogia do “lenço e do sabão”, entediante na calmaria, tornou-se urgente diante dos necrológios diários. O caos tem esse trajeto: abobalha o homem e depois, generosamente, ergue sua condição de sobrevivência.
Séculos depois, surgiu a Grande Depressão, e os abobalhados da época prognosticaram o ‘fim dos tempos’. Bancos faliram, filas de sopa se estendiam por quarteirões e o desemprego transformava avenidas em procissões de zumbis. O laissez-faire, erguido como dogma quase natural, quebrou-se como cristal. Franklin Roosevelt, mais pragmático que altruísta, percebeu que sem reordenar a economia não haveria mercado algum para salvar. Nasceram o salário-mínimo, a semana de quarenta horas, a previdência social, etc. Que venha o caos, diriam os estoicos.
O caos da Segunda Guerra Mundial não foi menor: empilhou ruínas sobre cidades inteiras. Mas também calcinou antigas certezas sobre quem realmente merecia cuidado e amparo. Enquanto as bombas incendiavam Londres, William Beveridge redigiu um relatório prometendo “segurança do berço ao túmulo” para cada cidadão britânico. Quando cessou o fogo nazista, o governo bretão, temeroso de perder o povo que pagara o preço da vitória, instituiu o National Health Service (NHS), ampliando o seguro social. Foi a carnificina global que tornou politicamente inadiável a ideia de que a saúde não podia depender da loteria do nascedouro.
Hoje, o padrão repete-se: o caos esmaga, mas o “caos pressagiado”, aquele que nos obriga a projetar, planejar e antecipar os acontecimentos, converte-se num poderoso instrumento de ressignificação. Primeiro destrói, depois reconfigura. O crossNN é um exemplo dessa epifania. Seu benefício para os mais vulneráveis chegará antes que as guerras atuais desapareçam dos noticiários. Abobalhados, enfim, são como galinhas atiradas ao céu por um canhão; resta-lhes destilar o noticiário caótico e bater as asas o mais rápido possível; afinal, novas galinhas são disparadas todos os dias. Se alguma continuar batendo asas mais veloz que as demais, talvez consiga sobreviver ao caos, mesmo sabendo que galinhas não voam…
Guilherme S. Hummel
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)