Grand Prix de Fórmula 1 em 2025, pit-stop da escuderia que está à frente da corrida: tudo acontece na fronteira entre a biomecânica e uma coreografia do Bolshoi. O piloto aciona o limitador de 80 km/h, finca o ponto-morto e estanca o carro no espaço de um cartão de crédito (se errar, coleciona memes e punições). O cronômetro ladra décimos. Em média, 20 a 22 mecânicos usando macacões antichama Nomex, capacete FIA 8860 e luvas que resistem a 800° C por 4 segundos, avançam em direção ao bólido. Dois “jack men” erguem o carro; quatro “gunners” empunham pistolas pneumáticas que giram até 10 mil rpm, alçam o carro, retiram porcas de titânio e quatro “carriers” manuseiam pneus de 13 kg como se fossem rolimãs. Dois ajustam a asa dianteira em 0,35 graus cravados; um “lollipop” de semáforo decide quem vive ou morre na saída do box e o “chief-mechanic” rege a coreografia, eliminando cerca de 300 g de suor por pit-stop. O maestro invisível é o estrategista no pit-wall, cronometrando 2,2 segundos de parada, com erro estatístico na casa dos nanosegundos.

Corta para a Emergência Hospitalar em 2030, com um acidentado grave do trânsito carioca: a maca é como um chassi de carbono de última geração; está cravejada de biossensores piezoelétricos que vasculham em milissegundos pressões arteriais micro-pulsáteis e saturação de oxigênio. Câmeras de visão IA multiespectrais no teto varrem um “scan da lataria” que descreve hematomas, cortes e microfissuras sanguíneas com sofisticação da pista de Suzuka. O paciente, convertido em ‘monoposto biológico’, tem sua biometria facial decodificada por IA, estimando dor, ansiedade e nível de consciência (algo entre o “delta do pneu” e o “mapa-emocional do motor”). Antes que a triagem humana consiga perguntar a temperatura do corpo, um Assistente Agêntico ajusta a dose de noradrenalina em 1,8 R-R (o algoritmo reavalia e titula o vasopressor a cada 1,8 ciclos cardíacos).

No pit-lane clínico, cada profissional tem seu Agente Cognitivo Artificial de alta performance: o anestesista “encaixa” um tubo orotraqueal como quem aperta a porca a 12 mil rpm; o cirurgião declama “box, box, box” para chamar a ‘tomografia total-body’ em 45 segundos, que na corrida contra a hipoperfusão pode significar óbito. Um humor involuntário é sentido quando a IA avisa que o lactato de 8 mmol/L não é “desgaste de pneu”, mas choque séptico (referência normal: ≤ 2 mmol/L). Nesse instante, o clínico com seu headset Multiverso entende que perder décimos de segundo não rende ‘grid penalty’, mas necrose, com o córtex humano falhando bem antes disso. Calibrar o fluxo da bomba de infusão exige a mesma diligência com que se regula a válvula de recirculação do turbo híbrido da F1.

IAs representam uma força transformadora na medicina emergencial. Vão acelerar e melhorar a precisão da triagem de pacientes, diagnósticos e gerenciamento de recursos, concebendo um sistema de atendimento emergencial mais eficiente e resiliente. Por outro lado, é tosca e frágil a ideia de que LLMs Multimodais podem substituir o aparato humano disponibilizado nos ambientes de urgência. Profissionais de saúde e LLMs precisarão trabalhar em conjunto antes que o ‘paddock-clínico’ pegue fogo. A versão com ‘IA do Médico’ vai superar a versão sem IA quase sempre.

O Great Ormond Street Hospital for Children (GOSH), em Londres, sabe disso e aprimorou seu processo de transferência de pacientes da cirurgia para a UTI observando como a equipe de Fórmula 1 da Ferrari lidava com os pit-stops nos boxes. Durante a visita, médicos do GOSH se concentraram na maneira como os mecânicos e engenheiros lidavam com possíveis falhas. “O que poderia dar errado?”, “O que faremos se algo falhar?” e ​​“Qual a importância dessa ação se der errado?”, indagavam à equipe da Ferrari, reunidos em uma mesa durante os treinos.

Todas as ideias dos ‘médicos estagiários’ na Ferrari levaram o grupo a criar um método denominado “Análise de Modos de Falha e Efeitos (FMEA – Failure Modes and Effects Analysis)”. As lideranças médicas do GOSH perceberam que o planejamento antecipado deixa a equipe de apoio nos boxes muito mais preparada do que a equipe médica, cuja única estratégia tendia a ser “esperar que algo desse errado para então descobrir o que deveriam ter feito”. Observando a equipe nos boxes, os médicos notaram o valor do mapeamento e da descrição de processos, além da importância de definir as tarefas de cada pessoa. Embora as principais mudanças tenham sido nos procedimentos mais sofisticados, as informações da Fórmula 1 foram facilmente adaptadas ao ambiente hospitalar. As lições aprendidas pelo GOSH conseguiram reduzir o número de erros em 66% (erros por 100 transferências).

Os principais fundamentos apreendidos com os times de F1 foram:

  • Estrutura de liderança/comando clara. Ambientes de Pronto-atendimento no Brasil são geralmente confrontados com a tênue hierarquia de comando (“quem manda aqui?”).  Não existe esse tipo de dúvida na F1; o “operador do pirulito” (lollipop man) orienta tudo, principalmente quando o carro deve entrar e sair. Ninguém discute sua autoridade (a equipe do GOSH designou o anestesista como “líder do time”, sem mais confusão);
  • Funções e coreografias definidas. Assim como cada mecânico na equipe nos boxes tem uma tarefa fixa (operador da pistola, operador do macaco, carregador de pneus, etc.), a equipe do GOSH definiu funções específicas (enfermeiro para drenos/cateteres, respiracionista para monitoramento, assistente de sinais vitais, etc.), com posições fixas para que os funcionários não “atrapalhem uns aos outros”;
  • Comunicação estruturada e conversa simultânea limitada. Eis um dos pontos nevrálgicos no pronto-atendimento: fala-se e grita-se demais, como uma competição de quem recebe mais atenção. A conversação verbal mínima é pouco adotada e não se ensaia códigos não verbais (como alertas oferecidos por monitores multiparamétricos). A F1 está ensinando aos hospitais que no atendimento emergencial (principalmente nos casos críticos, onde o paciente corre risco de óbito) são necessárias sessões de treinamento (briefing/debriefing), para coordenar ações e vozes;
  • Monitoramento ativo do desempenho e da redução de erros. No estudo realizado no GOSH, a implementação do novo protocolo reduziu o número médio de erros técnicos de 5,42 para 3,15 e as omissões de informação de 2,09 para 1,07; sendo que o tempo de transferência caiu de uma média de 10,8 minutos para 9,4 minutos. “Não se pode controlar aquilo que não se pode aferir”, diz a velha máxima da engenharia de produção, muito válida dentro da cadeia hospitalar.

É fácil sonhar que equipes de Pronto-atendimento no Brasil, ou em boa parte do mundo, treinem falhas prováveis no atendimento de urgência, em longos ensaios a portas fechadas. À exceção das entidades com controle de Acreditação, isso dificilmente ocorre com a frequência adequada. Esses ensaios, também denominados ‘Urgências e Emergências com Simulação Realística’ e, no Brasil, regulados pelo COFEN (Conselho Federal de Enfermagem), têm sua periodicidade geralmente desestimulada por diversos fatores, como Custos e Recursos, Logística Complexa e o famigerado Foco na Produção.

O mundo é um grande pronto-socorro. Segundo o CDC (EUA), 17,8 milhões de atendimentos em Departamentos de Emergência resultaram em internações em 2023. Quando se compara esse número ao total de 34,4 milhões de admissões hospitalares, registradas pela American Hospital Association no mesmo ano, constata-se que cerca de 52% das internações norte-americanas começaram no Emergency Care. No Brasil, o Observatório Anahp 2025”revela que 42,6% das saídas hospitalares de 2024 (rede privada) tiveram o pronto-socorro (PS) como porta de entrada (44,1% em 2023). Em ambos os países, portanto, o PS continua sendo a principal via de acesso ao leito hospitalar. Nenhuma surpresa: sabemos disso desde bem antes da largada do primeiro Grand Prix de Fórmula 1.

Nos ambientes de pronto-atendimento crítico, onde a vida, o aumento morbidade, as sequelas e a finitude circulam sem cerimônia, frações de segundo podem determinar o sucesso ou o fracasso, como no pit-stop da F1. O uso prematuro de uma bandeira amarela de advertência, por exemplo, pode fazer um piloto (ou médico) reduzir a velocidade o suficiente para não perder uma vantagem adquirida. Mecânicos e assistentes da F1 são treinados exaustivamente para agir com extrema decisão, nem muito cedo, nem muito tarde. Treinam o ano todo para isso, quase sempre realizam centenas de vezes a mesma tarefa para evitar falhas no pit-stop.

Quantos hospitais fazem uma análise metódica (periodicamente) dos erros em ambientes de pronto-socorro? A questão é: como os ambientes de cuidados emergenciais serão em 2030, considerando as transformações digitais e cognitivo-artificiais em curso?

“E se um cirurgião recebesse feedback em tempo real durante uma cirurgia robótica, assim como Max Verstappen e sua equipe fazem durante uma corrida? Pesquisadores do LUMC e NKI-AVL utilizam princípios de sucesso da Fórmula 1 para aprimorar procedimentos cirúrgicos tecnologicamente avançados. Não processando dados de pista, desempenho do carro ou paradas nos boxes, mas sim registrando e analisando meticulosamente cada movimento de um robô cirúrgico, por exemplo”, explica o paper “Proficiency in the operating room: how Formula 1 principles could help surgical teams implement advanced medical technology”, publicado em agosto de 2025 pela Leiden University Medical Center (LUMC), na Holanda. Numa Prostatectomia Laparoscópica Assistida por Robô, cada procedimento dura cerca de três horas, durante as quais foram medidos dados de 44 parâmetros diferentes. Foram analisados a velocidade e a suavidade dos “movimentos de instrumentos”, bem como a sua localização dentro do corpo e a relação de uns com outros, e, principalmente, quanto tempo cada etapa leva. Por meio de uma plataforma de IA, todas essas aferições foram processadas e interpretadas.

A equipe da LUMC estudou a movimentação e preparação dos pit-stops da F1 para ‘mapear curvas, retas e chicanes, e procedimentos cirúrgicos delicados’, que se desenrolam em fases distintas. Cada fase impõe diferentes exigências: às vezes a velocidade é fundamental, outras vezes a precisão é crucial. “Pense em Max Verstappen acelerando em uma reta ou freando antes de uma curva fechada para obter ‘tempos de volta’ mais rápidos e consistentes. Os cirurgiões também precisam ajustar sua abordagem dependendo da fase da cirurgia. Preservar as estruturas nervosas requer movimentos lentos e precisos, enquanto a sutura exige movimentos circulares”, explica o estudo.

Da mesma forma, a equipe Williams de Fórmula 1 fez parceria com o Hospital Universitário do País de Gales (Cardiff), para “aplicar técnicas de pit-stop aos protocolos de reanimação neonatal”. A equipe do hospital mapeou espaços padronizados nos centros obstétricos, “copiando os layouts personalizados” que a Williams utiliza nas pistas de corrida, onde 20 pessoas trocavam 4 pneus em 2 segundos com perfeita sincronia. As equipes médicas galesas adotaram as análises de vídeo e as reuniões de avaliação pós-corrida como prática padrão, como fazem as equipes de corrida após cada Grand Prix. Revisam cada parada nos boxes centenas de vezes em busca de melhorias. O foco do hospital era otimizar os fluxos de processo na saúde, eliminando movimentos desnecessários, esclarecendo funções e comunicando claramente ‘quando segundos podem determinar a sobrevivência do paciente’. Grande parte dessa engenharia ascendeu nos últimos anos graças aos LLMs, capazes de mapear, gravar, identificar, segmentar e avaliar todos os procedimentos dentro de um atendimento de urgência, com uma característica: realizam e registram tudo em segundos.

Em poucos anos, a sinfonia no corredor do pronto-socorro será orquestrada por médicos e máquinas de cognição artificial. Câmeras de Computer Vision (IA Multimodal) espalhadas pela emergência lerão a perfusão cutânea antes mesmo do enfermeiro perguntar “nome completo”, com microfones ultrassônicos detectando sibilos respiratórios ocultos. No ‘pit-stop emergencial’, o “jato de combustível” é uma infusão titulada por algoritmo e o “aperto final da porca” equivale ao ajuste dinâmico na ventilação mecânica, com base em loops de complacência que mudam a cada respiração. Felizmente, a mesma IA que avisa o superaquecimento do motor Honda é capaz de sugerir, em voz serena e neutra, que aquele lactato altíssimo não é “mero desgaste de pneus”, mas choque anafilático na curva hemodinâmica 1.

Se na Fórmula 1 a meta é trocar quatro pneus e reabastecer antes que o cronômetro pisque, em 2030 o desafio na saúde será transfundir quatro unidades de sangue antes que o córtex pisque, ambos dependendo de algoritmos que não podem vacilar. Respeitando as ‘salvaguardas ontológicas’ da coreografia esportiva da F1, cujos tempos e velocidade de ação não podem ser comparados ao que acontece num ambiente hospitalar emergencial, o que deve ocorrer cada vez mais nos pronto-atendimentos é uma “ação coreográfica orquestrada por telemetria”, e não a confusão improvisada de hoje.

Na década de 1950, os pit-stops da F1 tinham uma média de 67 segundos. Quinze anos depois, a mediana de uma parada nos boxes era de 45 segundos. No início dos anos 70, esse tempo caiu para quase 27 segundos e, na década seguinte, o tempo médio de parada foi de 11 segundos. No início dos anos 1990, o tempo médio já era de 6 segundos. Atualmente, o tempo médio está entre 2 e 2,5 segundos. Em 2030, é muito provável que o pit-stop na F1 dure menos de 1,5 segundo (o quick-lock hub, que trava/destrava as quatro porcas, poderá operar em cerca de 0,15 s, valor que coincide com o intervalo mínimo de reação humana definido no Manual Técnico da FIA).

Em novembro de 2025, o Ministério da Saúde anunciou que vai viabilizar a construção do Instituto Tecnológico de Emergência do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), o primeiro hospital inteligente do Brasil. Com o uso de inteligência artificial e big data, a unidade objetiva ser um marco na modernização do SUS e “poderá reduzir em 25% o tempo de espera na emergência, significando que o atendimento no pronto-socorro pode passar de uma média de 120 minutos para 90 minutos”, segundo o MS. “Com o hospital inteligente, estamos trazendo para o Brasil aquilo que tem de mais inovador no uso da inteligência artificial, tecnologia de dispositivos médicos e da gestão integrada de dados para cuidar das pessoas e salvar vidas”, explicou o ministro na divulgação. Não há dúvida de que é uma boa notícia. Resta saber o que o governo entende por “Hospital Inteligente”, ou a que distância esse entendimento está daquilo que será efetivamente implantado (o ciclo de modelos de IAs muda a cada 3 semanas).

Cada vez mais as inovações tecnológicas reais (que se pagam) migram para Saúde, como a fibra de carbono, sensores, computer-vision, etc. Porém, os atendimentos de Pronto-Socorro no Brasil, Índia ou mesmo nos EUA ainda são colossais centros de improvisação e altruísmo. São corredores transformados em enfermarias, equipes sobrecarregadas e uma “caoticidade” aferida principalmente pelas horas de espera.

As Inteligências Artificiais notáveis chegaram há três anos. Ninguém pediu ou rezou por elas. Ninguém esperou que elas chegassem. Não nos preparamos antecipadamente para seu impacto. A maioria das pessoas ainda está atônita, sem saber o que fazer, como fazer ou qual a melhor maneira de aproveitar essa dádiva tecnológica. As resistências ao seu uso na Saúde foram ferozes, na Academia Médica, mais ainda. O poder público tropeça nas pernas artificiais “sem saber com que pernas deve seguir”. O tempo passa, os modelos de LLM avançam vertiginosamente e sua consolidação no setor produtivo é cada vez mais real. Na Saúde, sempre lenta em escolher pernas, já cresce a usabilidade das IAs, emergindo um novo frescor e ímpeto em reduzir problemas por meio delas. O que fazer, pergunta a Cadeia de Saúde? Como tratar o extraordinário avanço das IAs nas unidades emergenciais?

Isso lembra a velha piada da celebridade que recebeu um Prêmio de Honorabilidade, com direito a troféu e uma pequena quantia em dinheiro. Atrapalhado, ele subiu ao palco pensativo, confuso, ovacionado pela plateia. Com honesta abnegação, declarou: “Senhoras e Senhores, eu acredito sinceramente que não mereço esse prêmio…” Silêncio e surpresa no auditório. O agraciado pensou por 30 segundos, trêmulo. Depois agarrou firme o troféu e continuou: “…bem, sabe, eu tenho artrite, …e também acho que não mereço por ela… Portanto, aceito a homenagem, obrigado e boa noite!”. O setor nacional de saúde sofre de artrite; não convém rejeitar a ocasião oferecida pelas IAs.

Guilherme S. Hummel
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)