“Em Deus nós acreditamos.

Todos os outros precisam

exibir os dados.”

(W. E. Deming)

Há mais de 10 anos, um artigo interessante foi publicado na revista Harvard Business Review (maio 2015) por Emre Soyer e Robin Hogarth. “Enganado pela Experiência” fala sobre o excesso de confiança no processo de tomada de decisões por conta de nossa vivência.

E como não considerar a opinião de uma pessoa experiente, um grande especialista em condições nas quais não somos capazes de emitir uma opinião consistente? E onde há uma grande assimetria de informações entre os agentes do contexto?

Só que essa é a condição habitual na medicina. Muitos especialistas tomam decisões sobre problemas que afetam diretamente a vida dos pacientes. E esses não possuem condições de avaliar tecnicamente o que está sendo proposto. Há um abismo entre o conhecimento do especialista e o do paciente.

Quando ganhamos mais experiência enquanto profissionais, corremos o risco de interpretar o passado como uma realidade que pode ser extrapolada como sendo o processo ou procedimento ideal em condições futuras. Como se a nossa experiência passada fosse o suficiente para nos credenciar a tomar decisões similares no futuro. Soyer e Hogarth afirmam que essa experiência é um filtro distorcido, fundamentado em três contextos básicos, mas enviesados:

  • buscamos sempre opiniões que endossam nossa visão e perspectiva, fugindo de conflitos ou visões contraditórias, reverberando nossa visão parcial, como em uma bolha;
  • e usamos de vieses cognitivos que corroboram nossas crenças, superestimando o valor da nossa experiência pessoal, baseada em uma amostra muito limitada, completamente irreal e baseada em uma visão, em geral, muito restrita do problema.
  • há uma tendência em focar nos resultados positivos ou negativos que nos impressionaram, ignorando os processos ligados a esses resultados e as evidências existentes sobre essas condições;

Diversos exemplos estão disponíveis no dia a dia da prática clínica. O medo associado a experiências ruins no passado ou a opinião de colegas que nos são caros valida decisões inconsistentes. O uso excessivo de ocitocina para não prolongar partos normais baseados em experiências ruins do passado introduz novos riscos, talvez piores. Sofrimento fetal e cesariana de urgência são apenas dois deles, mas muitos não levam esses riscos em conta.

Outro exemplo extraordinariamente frequente é o uso de antibióticos para infecções respiratórias virais, como gripes ou resfriados. Baseados em um caso prévio de infecção viral que complicou com uma pneumonia, muitos prescrevem antibióticos, apenas para não correr o risco, sem qualquer evidência ou análise estatística. A experiência prévia, de novo, engana o profissional. O custo direto associado ao uso dos antibióticos é de cerca de US$ 500 milhões por ano. O dano colateral são as infecções multirresistentes, que são responsáveis diretamente, segundo estudo na Lancet de 2019, por cerca de 1,2 milhão de mortes anuais, e mais de 4 milhões de mortes por condições associadas.

Há um trocadilho entre oncologistas que é habitual tratar pacientes com câncer de próstata que não precisam de tratamento e negar tratamento para os que realmente se beneficiariam dele. Se o sistema de saúde dos EUA fosse capaz de evitar o tratamento de pacientes com doença de baixo risco e que nunca morrerão de câncer de próstata, essa política geraria uma economia de mais de um bilhão de dólares por ano, somando a isso os riscos, toxicidade e complicações associados ao tratamento.

Hoje, nos EUA, já há diversos centros especializados em fornecer uma “segunda opinião” sobre certas decisões clínicas, tanto para eliminar esse viés do interesse econômico, quanto para reduzir a assimetria da informação. Em um estudo da Cleveland Clinic, a segunda opinião mudou o diagnóstico ou estadiamento de casos de câncer na ordem de 12%, e a recomendação de tratamento mudou em 43% dos casos.

O Programa de Segunda Opinião em Cirurgia de Coluna do Hospital Israelita Albert Einstein iniciado em 2011, reduziu drasticamente o uso de órteses, próteses e matérias especiais com uma alta taxa de divergência entre as indicações originais e as da segunda opinião. Cerca de 60% das indicações de cirurgia não foram corroboradas pelas equipes do Einstein. De todos os casos, 79% tinham indicação de procedimentos de alta complexidade (mais caros), na segunda opinião apenas 35% delas foram recomendadas. Nos primeiros anos do programa, a economia para as operadoras parceiras foi superior a R$ 100 milhões de reais. Sem considerar os benefícios clínicos e a redução das potencias complicações.

As contramedidas recomendadas para a cilada do especialista envolvem [1] não subestimar os “quase erros”, [2] falar abertamente sobre opiniões divergentes, [3] buscar experiências com evidências contraditórias e [4] ampliar o foco de visão.

Entender melhor os processos relacionados aos resultados passados nos ensinam muito. Por exemplo, compreender que o início retardado de um antibiótico para um paciente com suspeita de sepse pode ter sido o fator determinante para o fracasso do tratamento. E buscar métodos para que esse tipo de problema não se repita é a melhor decisão. Dar antibióticos para todos os pacientes com quadros respiratórios não é uma boa resposta.

Melhorar a segurança psicológica do ambiente pode ajudar a identificar problemas graves e sistêmicos que são frequentemente ignorados. Por exemplo, poder falar abertamente sobre condições de risco em passagens de plantão, horários críticos e capacidade técnica ou funcional para executar determinadas tarefas.

Muitas falhas no sistema ocorrem por conta de “erros latentes”: má qualidade do material ou equipamento, baixa iluminação, alertas que não foram dados, sobrecarga de tarefas, fontes ou prescrições ilegíveis, erros de cálculo de doses ou horários por falta de clareza nos protocolos de cuidado, etc.

E tão importante quanto tudo o que já foi escrito aqui: antes de tomar uma decisão, reflita se ela está baseada em uma evidência clínica consistente ou apenas em instintos ou crenças pessoais. Na dúvida, busque uma segunda opinião. Amplie seu foco. Veja a questão sob outros pontos de vista. Amplie o escopo do seu desafio e enxergue o problema como um todo. Esse é um hábito que faz parte das rotinas de uma organização lean.

Todas as discussões e processos precisam ser tratados como experimentos, buscando entender como diversos fatores podem impactar um determinado processo. Mapear um fluxo de valor é ampliar nosso campo de visão sobre os problemas e trazer à tona riscos ocultos ou variáveis relevantes, mas difíceis de enxergar à primeira vista.

Para um pensador lean, tudo é visto como um processo de aprendizagem, sempre envolvendo duas ou mais pessoas. Falar abertamente sobre problemas, dúvidas ou conflitos aumenta a nossa capacidade de tratá-los de forma consistente. Submeter nosso julgamento ao escrutínio de colegas aumenta nossa confiabilidade. Compartilhar as ideias amplia nosso campo de visão e capacidade de dar resposta aos desafios do cotidiano. O todo é sempre maior do que a soma das partes, diria Aristóteles.