“J’imaginai que cette propriété des corps pourrait être mise à profit dans le cas présent”, explicou o médico bretão RenéThéophileHyacinthe Laennec (1781-1826) em sua obra “De l’Auscultation Médiate” (1819). No livro, ele explica o que aconteceu em 1816 num corredor abafado do Hospital Necker em Paris, quando, hesitante e curioso, ele enrolou um papel como quem faz uma luneta… só que para ouvir. Encostou uma ponta no peito da paciente, a outra no próprio ouvido, descobrindo que o som do coração viajava melhor dentro daquele tubo improvisado. Nascia o estetoscópio.  Duzentos anos depois, o tubo utiliza silício, é digital e inteligente, podendo até mudar de mãos: o paciente segura o dispositivo; quem “ouve” é uma IA e o médico, a quilômetros de distância, decide o que fazer com os sinais auscultados.

Laennec mudou a medicina. Fez do som um dado, da escuta um método e do tubo um instrumento de acurácia clínica. Inaugurou uma nova epistemologia acústica do corpo, onde o audível acrescenta valor à decisão diagnóstica. Morreu de tuberculose, doença que suspeitou em si mesmo usando a própria invenção.

O “AIstethoscope está chegando (aqui denominado esteto-IA). Não é uma revolução para o médico experiente, que olha o paciente e percebe o “enredo patológico” antes mesmo da ausculta. Ainda assim, é uma evolução magistral: permite que as IAs apoiem o clínico em inúmeras frentes ainda frágeis para a tomada de decisão. Por outro lado, o esteto-IA é sim uma revolução para o atendimento remoto, síncrono e domiciliar. A telemedicina ambulatorial se arrasta pela falta de uma interação médico‑perscrutativa, limitando-se à conversação, sem auscultação, e aqui mora a revolução telemédica, como veremos a seguir.

O esteto‑IA é um similar ao estetoscópio tradicional, se propondo a coletar os mesmos sinais, porém dotado de uma camada algorítmica que digitaliza e depura o som, identifica padrões acústicos anômalos, estima probabilidades diagnósticas, ranqueia prioridades clínicas e teletransmite o exame ao médico em metadados, aprendendo a cada uso. Trata-se de um dispositivo menor que uma bola de tênis (ou que um iPod), que atua nas mãos do médico, mas também pode atuar nas mãos do paciente. Nesse sentido, o paciente (ou seu cuidador) torna-se “operador da ausculta médica” nas sessões remotas, reduzindo a incapacidade de incluir alguns dos sinais vitais mais importantes na teleconsulta.

Como estimar, com alguma confiança, a acurácia dos estetos‑IA? Podemos usar um parâmetro‑guia: o AUROC (Area Under the ROC Curve), que expressa a capacidade global de separar “doente” de “são” (0,5 é puro acaso, ou 50% de chances; e 1,0 seria a perfeição). Em geral, valores superiores a 0,8 já são considerados ótimos. Os níveis de sensibilidade (quando o teste acerta a presença da doença) e especificidade (proporção de saudáveis reconhecidos como saudáveis) também são importantes, mas não substituem o AUROC. Alguns provedores de estetoscópios digitais fazem questão de disponibilizar seu AUROC, outros não, ou pelo menos não os apresentam em seus sites.

Entre as várias opções de estetosIA no mercado mundial, vale citar o Eko Health, cuja IA recebeu ‘clearance’ da FDA para detectar fração de ejeção baixa (marcador de insuficiência cardíaca); e o faz em cerca de 15 segundos durante o exame físico (AUROC divulgado de 0,91); outro é TytoCare, com sólida experiência em diagnósticos domiciliares, que em abril de 2025 apresentou a sua AI Lung Sound Suite, obtendo liberação da FDA para detecção automática de rhonchi (ruídos contínuos e graves, típicos do ar lutando contra secreções nas vias aéreas), tornando‑se uma das primeiras companhias a ter esteto-IA aprovado para os três principais ruídos pulmonares anormais (AUROC não divulgado).

Também no campo “home‑first”, destaca-se o StethoMe, capaz de guiar o usuário leigo, analisando instantaneamente sons respiratórios e enviando o resultado ao médico (AUROC divulgado entre 0,90 e 0,99, dependendo do fenômeno auscultado). Já o Stethee Pro (M3DICINE) opera sem cabos, utiliza machine learning para eventos cardíacos e respiratórios e se apresenta como AIenabled, aprovado em múltiplas regulações (AUROC não divulgado). Outro em expansão é o eMurmur Auscultation AI Suite, uma plataforma“agnóstica” de hardware (compatível com múltiplos estetoscópios digitais), validada (FDA/CE) para converter a ‘ausculta subjetiva’ em laudos objetivos e quantitativos (AUROC não divulgado).

Em outras palavras, os algoritmos de IA já podem duplicar a chance de capturar um coração falhando antes que ele vire internação, algo que nenhum estetoscópio de cobre, sozinho, consegue prometer (a acurácia do estetoscópio tradicional, na melhor das hipóteses, acerta uma metade e deixa escapar a outra, isso antes mesmo de considerar barulho de consultório, cansaço do profissional e outras distrações). Em estudo multicêntrico com 3.456 pacientes, o Eko Duo/Core (aliado ao algoritmo LowEF) cravou AUROC0,85, mostrando sensibilidadede 74,7% e especificidadede 77,5%. Ou seja, 8 em cada 10 corações doentes “sobem” para o topo da lista do algoritmo, e só 2 em cada 10 saudáveis recebem alarme falso. Quando o mesmo modelo foi colocado à prova em 1.050 pacientes do ImperialCollege London, entregou AUROC 0,85 (sensibilidade84,8% e especificidade69,5%), deixando escapar 15% dos casos reais e acertando quase 7 de cada 10 “corações normais”. 

As IAs (LLMs cada vez mais sofisticados) estão entrando de mão cheia nos devices diagnósticos. Os eletrocardiogramas (ECGs) são rápidos, baratos e de rotina; porém, até ontem, serviam basicamente para flagrar anomalias elétricas, não defeitos estruturais. Um exemplo emblemático da virada do hardware para o “cognware” é o EchoNext. Desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Columbia e do NewYork-Presbyterian, ele não é um ECG: é a IA que lê o traçado elétrico tradicional do ECG e estima a probabilidade de alterações estruturais (hipertrofia, válvulas disfuncionais, etc.). Como foi treinado com 1.245 milhão de pares ECG-ecocardiograma, alcança 77,3% de acurácia, contra 64% da mediana dos cardiologistas. Publicado pela Nature em julho de 2025, o estudo “Detecting structural heart disease from electrocardiograms using AI” expõe essa transição do hardware tradicional para as plataformas de cognware. Assim, os ECGs de bolso entram como captadores elétricos de baixo custo; o EchoNext é o cognware que lê os traçados e estima o risco estrutural; e o estetoIA confere voz ao coração. Eles não competem, se empilham. Na “teleconsulta”, em conjunto, os três formam um funil de prioridades clínicas de grande impacto na efetividade ambulatorial remota.

Várias plataformas de estetoIA já dão suporte efetivo à teleconsulta, como o SKEEPERSM300, embora ele apenas amplifique e transmita o som (no máximo, calcula frequência cardíaca). Não há algoritmo, só microfone Bluetooth potencializado para uso remoto. O site do produto fala em “redução de ruído em85% e amplificação de 24X; oque, do ponto de vista clínico, garante sinal limpo para o médico ouvir durante a videoconsulta, sem prometer descobrir sozinho qualquer sopro ou insuficiência cardíaca. Em resumo: o SKEEPER resolve a logística da teleausculta, enquanto o Eko (citado acima) resolve a matemática do diagnóstico

Grande parte dos sistemas globais de saúde está centrada em resolver a questão de acesso à cadeia de saúde. Em outras palavras, a medicina desta primeira metade do século deve ser “desacumulativa”, aliviante e extremamente pragmática. Os problemas devem ser bem encaminhados já no primeiro atendimento, seja por triagem inteligente ou por práticas preditivas. A detecção precoce de doenças cardiovasculares na atenção primária, por exemplo, é uma prioridade mundial em saúde pública. Como existe uma profunda carência de médicos nessa ponta, é preciso “tecnizar” e remotelizar o primeiro cuidado. Assim, um estetoscópio habilitado por IA, que detecta, por exemplo, disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, fibrilação atrial e sopros cardíacos, é potencialmente transformador desse cenário.

Em maio de 2025, o BMJ publicou o estudo “Triple cardiovascular disease detection with an artificial intelligence-enabled stethoscope (TRICORDER)”, a primeira pesquisa de implementação randomizada para avaliar um diagnóstico de IA na atenção primária. O estudo foi projetado para abordar uma realidade inaceitável: a doença cardiovascular, particularmente a insuficiência cardíaca, é mais frequentemente detectada em um estágio tardio, quando sua progressão já incide em internação hospitalar. Isso não ocorre só no Reino Unido (NHS), mas na maioria dos países com cobertura universal. O mais interessante do estudo é o seu liberalismo tecnológico: “os médicos de cuidados primários usarão os estetoscópios habilitados por inteligência artificial a seu próprio critério, sem fatores de inclusão ou exclusão no nível do paciente”, diz o documento. No projeto, até 200 consultórios de cuidados primários de Londres e do País de Gales investigarão o impacto de um esteto-IA para registro de ECG digital e PCG (fonocardiogramas).

Mas onde está o “pulo do gato” desse projeto? Simples: habilitar o paciente a usar o esteto-IA nas práticas de monitoramento à distância (virtual consultation, telemonitoramento, home care, etc.). Isso garante que uma ausculta de qualidade seja possível mesmo quando pacientes e profissionais de saúde não estejam no mesmo local. “Os dados de som cardíaco e pulmonar de alta fidelidade desbloqueiam novos recursos de exames remotos e permitem que centenas de hospitais e médicos ofereçam um calibre maior no atendimento virtual em várias especialidades e casos de uso”, explicou Jason Bellet, cofundador e diretor da Eko Health, que participa do projeto Tricorder e possui a experiência de ter fornecido mais de 650 mil estetoscópios digitais em todo o mundo (nos EUA, 800 hospitais já os utilizam). Ou seja, em vez da IA substituir a intervenção médica, ela complementa o seu trabalho remoto com auxílio dos pacientes, permitindo exames estetoscópicos remotos de alta fidelidade.

Nos EUA, perto de 3 mil adultos submetidos a ecocardiografia de 4 redes de saúde foram incluídos no estudo observacional multicêntrico “Automated Detection of Reduced Ejection Fraction Using an ECG-Enabled Digital Stethoscope: A Large Cohort Validation”, publicado em 2025 no PubMed. Os dados dos pacientes foram capturados por esteto-IA, sendo os ecocardiogramas realizados uma semana após a coleta de dados. Resultado: O modelo CNN (convolutional neural network) demonstrou AUROC 0,85; com sensibilidade de 77,5% e especificidade de 78,3% (valor preditivo positivo de 20,3% e valor preditivo negativo de 98,0%). Ou seja, o modelo CNN (IA) utilizado em um esteto-IA oferece um método não invasivo e escalável para diagnóstico precoce no tratamento de insuficiência cardíaca. Por que um país que já gasta US$ 5 trilhões em saúde (quase duas vezes o PIB total do Brasil), admite que só 1 em cada 10 pacientes utilize consultas virtuais síncronas? Sem chance: ou os EUA remotelizam o cuidado, empoderando o telecuidado com IA, ou viram a primeira metade do século gastando 1/3 de PIB em saúde (já gastam quase 18%).

Mas o telecuidado domiciliar propelido pelo esteto-IA também floresce nas regiões mais pobres do mundo. O SPECAI Nigeria, por exemplo, avança em algumas das “maternidades mais desafiadoras do planeta”. Trata-se basicamente de um estetoscópio com neurônios artificiais utilizado em 6 hospitais nigerianos, atendendo 1.232 mulheres grávidas ou no pós-parto. O projeto foi randomizado para atingir: cuidado usual vs. triagem guiada por IA. Alvo: flagrar a disfunção sistólica (LVSD), aquela fraqueza que costuma “passar batida” porque os sintomas se confundem com a gravidez (na Nigéria, a cardiomiopatia periparto atinge o pior índice do mundo). O resultado, publicado em 2024 (“Artificial intelligence guided screening for cardiomyopathies in an obstetric population: a pragmatic randomized clinical trial”), mostrou que o “braço IA” na Nigéria pode dobrar o número de diagnósticos usando o estetoscópio digital, sem eventos adversos graves. O modelo da “IA no ECG” apontou mais casos (20 vs. 12), ainda que seja um resultado tímido comparado à significância do problema. Traduzindo: em vez de esperar o coração “gritar” no pósparto, a ausculta turbinada por IA sussurra antes. Vale salientar que o SPECAI Nigeria foi desenhado e liderado por pesquisadores da Mayo Clinic, que desenvolveram o algoritmo utilizado (AI‑ECG/estetoscópio digital).

A empolgação com as possibilidades de uma “teleconsulta expandida pela auscultação” deriva do seu baixo custo tecnológico. A startup VIAM, por exemplo, não vende estetoscópios digitais (ainda); vende a camada de integração/MLque permite montar um esteto‑IA com infraestrutura cognitiva plug‑and‑play. Em outras palavras, entrega um “cérebro vazio”, pronto para ser treinado. O hardware vira commodity de US$ 15 e some de cena; o que permanece é a camada que orquestra sensores, IA e teletransmissão (como no vídeo do projeto). Somando tudo: um Raspberry Pi (computador completo e minúsculo, valorado em cerca de US$ 15), um microfone de podcast e um dataset público bastaram, no experimento relatado, para atingir uma acurácia perto de 93% em sopros valvares. O que isso nos diz? Não falta tecnologia; faltam protocolo clínico, fluxo regulatório e desenho operacional. A teleausculta deixa de apenas “ouvir” para também classificar, priorizar e acionar condutas. A VIAM é o sinal cabal de que a teleconsulta vai sair da ‘garagem’ e se tornar a camada basal de atendimento dos sistemas de saúde.

O que veremos nos próximos anos é a amplificação da ‘telemedicina aplicada’ no primeiro atendimento. Quando cada médico puder obter sinais vitais por meio de estetoscópios inteligentes, manipulados por pacientes ou por seus cuidadores, as filas de espera para acesso à saúde tendem a ser aliviadas.

O futuro da consulta e do monitoramento virtual não está em retirar o médico do cenário, nem em empurrar o paciente para o ‘faça você mesmo’, mas em criar uma coreografia doméstica em que o paciente, sozinho ou acompanhado, colete seus dados orientado pelo médico. O meio será o estetoscópio embarcado em IA e outros devices. O cuidado virtual se agiganta quando o batimento pode ser colhido pelo paciente, ouvido e interpretado pela IA e transformado em valor clínico propositivo pelo médico. É possível que em breve até tenhamos devices de aferição clínica mais sofisticados e mais inteligentes. Mas, enquanto isso, caberá aos sistemas de saúde empoderar rapidamente a relação remota, aliviando a mais extensa e estarrecedora lista de espera médica deste século, em escala mundial. Precisamos parar de olhar o devir e nele só encontrar sistemas de saúde cada vez piores e insuficientes. Se só imaginarmos um futuro pior, o presente sempre nos parecerá admissível; e se assim for, perderemos a força para mudá-lo.

Guilherme S. Hummel

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

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