A fronteira entre tecnologia e cuidado nunca esteve tão próxima. Sensores cada vez menores, algoritmos mais inteligentes e plataformas interoperáveis estão preparando o terreno para uma nova lógica na saúde: o cuidado contínuo, alimentado por dados que fluem em tempo real entre paciente, equipe médica e sistemas de informação.
No Brasil, esse movimento ainda é incipiente, mas avança rápido em universidades, start-ups deeptech e centros de pesquisa que desenvolvem biowearables de alta precisão, bioreceptores capazes de detectar alterações metabólicas em segundos e soluções de monitoramento remoto voltadas ao acompanhamento de doenças crônicas. Iniciativas de parceria universidade-indústria, laboratórios de wearables e programas de aceleração têm produzido protótipos que, em poucos anos, podem redefinir a lógica do cuidado.
“A transição do cuidado reativo para o cuidado proativo representa uma mudança estrutural na medicina — e os dados contínuos são o coração dessa transformação”, diz Willyan Hasenkamp, Co-Founder & CEO da Biosens, uma deeptech brasileira dedicada ao desenvolvimento de diagnósticos point-of-care (POC).
Para o executivo, enquanto a medicina tradicional depende de pontos isolados de informação, dispositivos point-of-care (POC) descentralizados permitem coletar dados no instante e no local em que o cuidado acontece. “Esses fluxos alimentam algoritmos de inteligência artificial que precisam de volume, variedade e atualização constante para refletir a complexidade da vida real.”
Hasenkamp continua, explicando que, com acesso a dados frequentes, altera-se a forma de atuação do profissional de saúde. “Em uma emergência, o resultado de um exame pode ser analisado em minutos, acelerando decisões. No entanto, a base dessa mudança é clara: sem dados confiáveis capturados por biossensores não há inteligência artificial verdadeiramente preditiva.”

A Biosens estruturou sua plataforma segundo padrões globais como HL7 e FHIR — os mesmos utilizados pela Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Isso permite que resultados de testes POC sejam enviados diretamente ao prontuário eletrônico e à infraestrutura nacional de saúde digital.
Ainda assim, Hasenkamp ressalta que a interoperabilidade é apenas o “último quilômetro” da jornada. “Sem dados capturados com precisão na ponta do cuidado, nenhuma integração gera valor.”
No dia a dia, os desafios ainda são muito para que os biossensores saiam do laboratório e possam se tornar de uso massivo. Dentre eles, o executivo cita aspectos regulatórios, validação científica, custo e produção em escala. A interoperabilidade, embora relevante, na opinião de Hasenkamp, é considerada um obstáculo menor quando comparada aos gargalos produtivos e de hardware.
Interoperabilidade ainda é um desafio
De acordo com Grace Teresinha Marcon Dal Sasso, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS), o Brasil atravessa um momento crucial de maturação na interoperabilidade em saúde.
“Após décadas de iniciativas fragmentadas, a adoção do HL7 FHIR como padrão estruturante da RNDS inaugurou uma nova fase: mais moderna, mais conectada e alinhada às melhores práticas internacionais. Essa mudança foi um ‘divisor de águas’ que reposicionou o país no debate global sobre arquitetura digital em saúde.”
Grace destaca que a expansão da RNDS — hoje já integrando dados de vacinação, exames laboratoriais, atendimentos clínicos e novas camadas conectadas à saúde suplementar — é um dos maiores avanços do período recente.
“O Brasil também tem investido em guias públicos de implementação, participação em laboratórios colaborativos FHIR e consolidação institucional via SUS Digital e Estratégia de Saúde Digital 2028, documentos que definem prioridades estratégicas para os próximos anos.”
Ainda assim, os gargalos continuam expressivos. A heterogeneidade entre municípios, hospitais e prestadores privados segue sendo um dos principais entraves para a adoção uniforme dos padrões.
“Muitas unidades ainda produzem dados não estruturados, incompatíveis com terminologias clínicas ou sem aderência aos perfis FHIR. A governança da informação é frágil em muitos locais, e a formação técnica — tanto de profissionais de TI quanto das equipes assistenciais — ainda é insuficiente para garantir a aplicação correta de modelos, terminologias e boas práticas de interoperabilidade”, avalia Grace.
Na opinião da especialista, qualidade e integridade dos dados não são apenas requisitos técnicos — são o alicerce de todo o ecossistema digital. Ela defende uma abordagem baseada em: modelagem robusta da informação pautada em FHIR; terminologias clínicas padronizadas (SNOMED CT, LOINC, CID-10, CID-11); governança formal de dados, com dicionário único, validação automática, monitoramento, rastreabilidade e trilhas de auditoria; boas práticas de captura e registro no ponto do cuidado; e gestão completa do ciclo de vida dos algoritmos de IA, com mitigação de vieses, auditoria e avaliação contínua de desempenho.
“Além disso, marcos regulatórios como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), as diretrizes da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e políticas do Ministério da Saúde precisam convergir para garantir uso ético, seguro e centrado no paciente.”
A adoção de tecnologias tem recebido apoio estruturado do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Um dos principais mecanismos dessa estratégia é o Programa e Projeto Prioritário de Interesse Nacional (PPI Saúde Digital), coordenado pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Por meio dele, empresas podem direcionar parte do imposto devido para financiar projetos de P&D voltados a IA, interoperabilidade, dispositivos vestíveis e outras tecnologias emergentes, acelerando o caminho entre descoberta científica e aplicação prática.
“Esse movimento se fortalece à medida que universidades, start-ups deeptech e hospitais começam a atuar de forma integrada no desenvolvimento de biowearables, biossensores e plataformas inteligentes”, explica Henrique Miguel, secretário de Ciência e Tecnologia para Transformação Digital.
Para estimular essa colaboração, o MCTI realizou recentemente uma chamada pública dentro do PPI-Saúde Digital, selecionando redes de pesquisa que formam um ecossistema robusto e descentralizado de inovação.
Entre elas estão a CareNet.AI, focada em cuidado inteligente; a REDI-SUS, dedicada a diagnóstico e acompanhamento remoto; a ReNTAI, voltada à telessaúde avançada; a plataforma mareIA, para telemonitoramento preditivo; a INTEROPCHAIN, que explora blockchain para consentimento e interoperabilidade; e a Rede SOFIA, concentrada em soluções para saúde materno-infantil.
“Outro pilar dessa estratégia é a Rede Universitária de Telemedicina (RUTE), que há 20 anos estimula a integração entre profissionais da saúde para conduzir projetos colaborativos em pesquisa, inovação, gestão, educação e assistência em saúde digital”, destaca Cristina Akemi Shimoda, coordenadora-geral de Transformação Digital.
Cuidado conectado: a estratégia das instituições de saúde
Com a aposta no cuidado contínuo se consolidando como uma das principais estratégias da inovação em saúde no Brasil, o InovaHC tem buscado transformar esse conceito em prática. No hub de inovação do Hospital das Clínicas, diversas start-ups já desenvolvem wearables, sensores e tecnologias de monitoramento remoto voltadas ao acompanhamento de pacientes crônicos.
“Essas soluções estão sendo incorporadas ao projeto de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação conduzido em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, que prioriza a adoção de modelos de telemonitoramento e dispositivos aplicados à saúde digital”, detalha Giovanni Cerri, presidente dos Conselhos dos Institutos de Radiologia (InRad) e de Inovação (InovaHC) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Um dos pilares dessa transformação é a interoperabilidade. O InovaHC conduz um projeto prioritário baseado na adoção dos padrões HL7 e FHIR, estruturado para viabilizar fluxos de dados em tempo real entre instituições públicas e privadas.
O piloto — apoiado por entidades como Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) e Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), hospitais e laboratórios privados, além de seguradoras — vem sendo acompanhado de perto pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

“A estimativa de que a interoperabilidade possa gerar até 15% de economia para o setor reforça seu papel na sustentabilidade do sistema e na construção de um ecossistema digital integrado.”
O avanço de sensores inteligentes e dados contínuos promete alterar a maneira como a assistência em saúde é oferecida hoje. Em vez de interações pontuais, o paciente passa a permanecer conectado ao sistema de saúde, permitindo monitoramento em tempo real, intervenções precoces e melhor controle de doenças crônicas.
“Esse modelo favorece predição de risco, redução de reinternações e expansão do hospital em casa, no qual casos de menor complexidade podem ser tratados remotamente, liberando a capacidade hospitalar para situações mais críticas”, reforça Cerri.
Para os próximos dois anos, o InovaHC projeta uma integração tecnológica ainda mais robusta, combinando teleatendimento, inteligência artificial, interoperabilidade, conectividade avançada e monitoramento remoto.
“O grande desafio — e também a grande oportunidade — está em acelerar essa transformação e consolidar um novo modelo de cuidado capaz de reposicionar o Brasil na fronteira global da inovação em saúde.”
Outro exemplo de avanço rumo à transformação do modelo de cuidado vem das Santas Casas e de hospitais filantrópicos de Sergipe. A Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Sergipe (Federase) acompanha esse processo e tem atuado para incentivar a adoção de prontuário eletrônico, a integração com a RNDS e o uso inteligente de dados assistenciais.
“O progresso é visível, mas ainda desigual. A principal barreira para que essas tecnologias se tornem realidade em toda a rede é o custo: adquirir sistemas de gestão hospitalar mais robustos, modernizar a infraestrutura de TI e garantir conectividade estável demanda investimentos que muitas instituições, já pressionadas por orçamentos enxutos, não conseguem absorver sozinhas”, avalia Carolina Santos Teixeira de Menezes, presidente da entidade.
Segundo ela, a criação de fontes de financiamento específicas — seja via programas governamentais, seja por meio de emendas parlamentares — seria determinante para acelerar essa modernização, já que seus impactos recaem diretamente sobre a qualidade de atendimento à população.
“Além da escassez de recursos, duas outras dimensões desafiam a plena adoção do modelo digital: a mudança de cultura dentro das equipes assistenciais e a necessidade de capacitação contínua. Migrar do papel para o digital não é apenas implantar sistemas, mas redesenhar processos, revisar fluxos de trabalho e preparar profissionais para lidar com ferramentas em constante evolução. Sem formação permanente, o potencial da tecnologia não se traduz em valor assistencial.”
Nesse contexto, a Federase tem se posicionado como articuladora e defensora de políticas públicas voltadas à inovação. Entre as propostas em andamento, destaca-se o projeto de criação de um hub tecnológico de saúde para a rede filantrópica — uma estrutura centralizada capaz de padronizar soluções, reduzir custos, fortalecer a interoperabilidade e acelerar a transformação digital de forma coordenada. A Federação também atua para que indicadores de qualidade contratual incluam metas relacionadas à digitalização, alinhando remuneração e performance tecnológica.
Algumas instituições já começam a mostrar o impacto concreto dessa modernização. O Hospital de Cirurgia é um dos exemplos. Com iniciativas estruturadas de telemonitoramento, a instituição amplia o cuidado para além dos muros do hospital e acompanha pacientes crônicos de forma contínua.
“Os resultados incluem melhor uso de leitos, redução de reinternações e ganhos claros na qualidade de vida dos pacientes. O sucesso do programa já é validado por publicações científicas, reforçando o potencial transformador dessa estratégia”, destaca Carolina.
2026 e o desafio do cuidado contínuo
O ano de 2026 desponta como um marco para a consolidação do cuidado contínuo no Brasil. Segundo Grace, quatro frentes precisam avançar simultaneamente para que o país alcance essa nova lógica assistencial: infraestrutura, padronização, regulação e capacitação.
No campo da infraestrutura, enquanto parte do sistema opera com conectividade limitada, equipamentos defasados e prontuários sem interoperabilidade, outras instituições já testam modelos avançados de monitoramento remoto. “Sem bases tecnológicas mínimas, o fluxo contínuo de dados simplesmente não se sustenta.”
A padronização é outro ponto central. A adoção plena do FHIR — tanto no SUS quanto na saúde suplementar — ainda está em evolução. “Para que o cuidado contínuo seja realmente nacional, é preciso que esse padrão deixe de ser uma ilha de excelência e se torne regra, permitindo que dados circulem entre diferentes serviços, plataformas e regiões.”
A regulação também precisará avançar com rapidez. O uso de inteligência artificial, dispositivos conectados, modelos preditivos, monitoramento remoto e dados secundários exige diretrizes claras, harmonia entre Anvisa, ANPD, Ministério da Saúde e operadoras, e um alinhamento técnico que garanta segurança, qualidade e ética.
“Mas nada disso avança sem pessoas preparadas. Equipes de saúde precisam entender alertas, interpretar dados, responder a modelos preditivos e atuar com confiança em um ambiente orientado por indicadores e recomendações digitais.”
Nesse contexto, o crescimento dos biossensores e biowearables até 2026 terá papel decisivo. A Biosens, por exemplo, aposta nos nanobiossensores para criar dispositivos menores, multiparamétricos e potencialmente vestíveis, capazes de captar dados clínicos em qualquer ambiente — até mesmo em localidades remotas, com transmissão por satélite.
Para 2026, a Federase visualiza as Santas Casas como protagonistas da saúde digital brasileira, especialmente na consolidação de um modelo de cuidado contínuo e integrado.
“Mas esse avanço depende de um esforço conjunto. Financiamento sustentável, apoio técnico, políticas integradas e programas de qualificação são elementos indispensáveis para que a inovação deixe de ser exceção e se torne rotina”, aponta Carolina.
Diante de todo esse cenário, o próximo ano promete ser um ponto de virada. Um ano em que o cuidado contínuo deve começar a se materializar em escala, ainda que de forma desigual no território brasileiro. Uma transição em que biossensores avançados, interoperabilidade madura, regulação moderna e equipes capacitadas convergem para inaugurar uma nova etapa da saúde: mais preditiva, mais personalizada e, sobretudo, mais conectada aos pacientes.