A Indústria 5.0 é conhecida como uma quinta revolução industrial, onde os requisitos personalizados dos clientes podem ser atendidos. Anteriormente, a Indústria 4.0 permitia a personalização em massa. Agora, o cliente quer personalização em massa com um toque humano, que é o que a geração 5.0 permite, fornecendo um produto que esteja de acordo com as necessidades específicas dos clientes. Essa revolução industrial refere-se à interação entre pessoas e máquinas e chegou à saúde com a engenharia clínica.

A engenharia clínica 5.0 é a aplicação avançada da engenharia, inteligência artificial, Internet das Coisas Médicas (IoMT), big data e outras tecnologias emergentes na gestão e operação de equipamentos médicos, com foco no paciente, na eficiência hospitalar e na personalização do cuidado. Essa abordagem vai além da simples manutenção de equipamentos, incorporando estratégias proativas, análise preditiva e sustentabilidade. 

“A engenharia clínica é um segmento da engenharia biomédica que atua em estabelecimentos de saúde, na gestão do parque tecnológico de dispositivos médicos (ventiladores mecânicos, cardioversores, bombas de infusão etc.), abrangendo desde o planejamento até a aquisição, implantação, manutenção e desmobilização de tecnologias em saúde. Seu objetivo é garantir que os equipamentos médicos estejam disponíveis, seguros e em plena conformidade com as normas regulatórias”, explica Fábio Martins Corrêa, diretor corporativo de Engenharia Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). 

Segundo Rodrigo Oliveira, professor e coordenador do Curso de Pós-graduação em Engenharia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, a atuação do engenheiro clínico teve início há pouco tempo no Brasil. “Na Europa e nos Estados Unidos, essa atividade surgiu pela necessidade de segurança no uso das tecnologias, em especial a segurança elétrica, com a finalidade de prevenir acidentes fatais com os pacientes e equipe médica.” O período crítico da pandemia, em que foi necessário o uso da capacidade máxima do parque tecnológico dos hospitais, evidenciou a necessidade de uma atuação mais estratégica pela engenharia clínica. Esta atuação compreende a redução das falhas técnicas que possam comprometer os diagnósticos ou tratamentos, a otimização de investimentos, redução de custos com falhas ou obsolescência e uma atuação proativa para garantir o cumprimento de normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e padrões internacionais. 

Ao longo dos anos, a área evoluiu de um papel predominantemente operacional (focado na manutenção corretiva). “Atualmente, a engenharia clínica é reconhecida como uma área estratégica dentro das instituições de saúde, participando ativamente dos processos de acreditação hospitalar, da transformação digital e das tomadas de decisão em nível executivo”, destaca Corrêa. 

Nessa nova fase, a área se baseia em pilares como personalização de produtos e serviços com foco no paciente; automação inteligente para tomada de decisões clínicas e na gestão de ativos; dispositivos integrados e com comunicação em tempo real; cibersegurança, visando a proteção de dados sensíveis dos pacientes e dispositivos; e uma rede colaborativa entre profissionais da engenharia, profissionais da saúde, gestores e fornecedores. 

Dentre as tecnologias emergentes que estão sendo mais aplicadas pela engenharia clínica, destacam-se, segundo o professor Sergio Bittencourt, da Faculdade de Ciências Médicas da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, a inteligência artificial, que vem contribuindo para os diagnósticos de falhas, análise de desempenho e apoio nas decisões clínicas; as ferramentas digitais como IoMT, big data, realidade aumentada e virtual, blockchain e digital twins, que promoveram a conexão de dispositivos em tempo real, analisando e simulando dados com foco na prevenção de falhas e  na otimização de processos e treinamento.  

O papel da engenharia clínica no ciclo de vida de tecnologias médicas 

A engenharia clínica é responsável por acompanhar todas as fases do ciclo de vida dos equipamentos de saúde, pensando na definição, compra e instalação, do uso seguro à descontinuação e descarte. É uma atuação estratégica e multidisciplinar, onde todos os profissionais da saúde são envolvidos.  

“A área também contribui ativamente para a sustentabilidade das instituições, por meio de análises de custo-benefício, de custos, extensão da vida útil e tomadas de decisão baseada em dados para melhor gestão financeira. No quesito regulatório, a engenharia clínica é fundamental para assegurar conformidade com as Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) da Anvisa; com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e com requisitos internacionais. Nossa atuação é o elo entre a inovação e a responsabilidade frente aos estabelecimentos de saúde”, explica Ricardo Maranhão, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Clínica (Abeclin). 

Capacitação profissional: um desafio a ser vencido 

Apesar dos avanços, a implementação da engenharia clínica 5.0 enfrenta desafios como a qualificação de profissionais. Segundo Maranhão, a formação de antes, apesar de essencial, não é mais suficiente para quem atua na área. “É necessário desenvolver competências digitais para que esses profissionais possam trabalhar com as tecnologias emergentes. Vejo também a necessidade da capacitação para desenvolver visão sistêmica, habilidades de liderança e comunicação. Precisamos formar profissionais que sejam capazes de dialogar com todos os envolvidos no processo, e não apenas reparar equipamentos.” 

Para Oliveira, são relevantes também as soft skills, ou seja, os profissionais devem possuir um espírito de colaboração multidisciplinar, com fácil comunicação com as equipes clínicas e técnicas, respeitar as normas e o compliance, além da capacidade de atuar de forma estratégica nas tomadas de decisões das instituições, visando a inovação, a educação e a melhoria contínua. 

“As instituições de ensino, assim como os programas de capacitação corporativa, precisam acompanhar essa evolução, preparando profissionais para atuar de forma mais analítica, estratégica e orientada a dados”, avalia Corrêa. 

Engenharia clínica 5.0 na rotina hospitalar 

No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, os profissionais da área de engenharia clínica atuam de forma estratégica para garantir segurança, sustentabilidade e conformidade regulatória. Ao monitorar dados como a dose de radiação recebida por paciente e o desempenho técnico dos equipamentos, contribuem para práticas assistenciais mais seguras.  

“A análise operacional permite identificar ociosidade, otimizar agendas e aumentar a produtividade dos recursos, o que colabora para a sustentabilidade financeira. Além disso, assegura que todos os dispositivos estejam em conformidade com normativas nacionais e internacionais, como as exigidas pela Joint Commission International (JCI)”, conta Joyce Rebouças, diretora executiva de Operações. 

Lá, a área está envolvida em todas as etapas do ciclo de vida dos equipamentos médicos, desde a especificação técnica na fase de aquisição até a desativação responsável do ativo. Essa atuação garante que os recursos tecnológicos estejam sempre atualizados, calibrados e operando em níveis ideais de desempenho.  

“É um trabalho contínuo, que visa não apenas a manutenção, mas também a renovação estratégica de tecnologias alinhadas ao modelo assistencial centrado no paciente. Isso envolve treinamentos, manutenções preventivas, calibrações e manutenções corretivas no menor tempo possível, garantindo a maior disponibilidade dos equipamentos”, explica Joyce.  

A comunicação com os demais setores é feita de forma integrada e colaborativa, conectando a engenharia clínica às áreas assistenciais, de inovação, tecnologia da informação, suprimentos e qualidade.  

“Esse diálogo constante é essencial para que a gestão das tecnologias esteja alinhada às necessidades clínicas e operacionais da instituição, promovendo sinergia entre o cuidado e a eficiência. Temos em nossas plataformas de gestão a divulgação periódica de indicadores que permitem que cada gestor possa acompanhar o status de suas tecnologias médicas. Os dados são divulgados pela engenharia clínica, trazendo transparência e colaboração no cuidado do ativo.” 

Joyce destaca ainda o papel da engenharia clínica na avaliação e na implementação de tecnologias que trazem benefícios concretos à experiência e à segurança do paciente. Um exemplo disso é o uso de sistemas com inteligência artificial integrados a equipamentos de imagem.  

Esses sistemas organizam automaticamente dados sobre o funcionamento das máquinas, como os horários de exames, o tempo médio de uso e a quantidade de exames realizados. Com base nessas informações, a equipe consegue otimizar a agenda dos equipamentos, reduzindo o tempo de espera para os pacientes e melhorando o aproveitamento das máquinas. 

No Hospital Sírio-Libanês, a área de engenharia clínica está atenta para buscar alternativas viáveis e apresentar comparativos considerando os impactos econômicos que cada tecnologia pode gerar ao longo do tempo, normalmente numa projeção de dez anos.  

“Avaliamos o montante investido e os custos necessários para manter sua operação. Ter essas informações registradas em um sistema de gerenciamento de manutenção auxilia na organização dos dados e na apresentação dos resultados. Os estudos contam com um time multidisciplinar de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), com foco em dispositivos médicos. Além dos estudos demandados, abrimos também um canal com o mercado, por meio de workshops quinzenais, nos quais as empresas interessadas podem apresentar seus portfólios, abrindo novas frentes de estudo”, conta Marcello Bonfim, gerente de Engenharia Clínica. 

Ele fala ainda sobre a gestão de “pacotes”, que envolve diversas contas contábeis de despesas referentes a serviços, materiais e locação de equipamentos médicos. “Esses dados, somados às despesas da nossa própria área, compõem a peça orçamentária, e, como ‘pacoteiros’, acompanhamos de perto os resultados e comparativos mensais entre valores orçados e realizados, com o principal objetivo de manter o plano orçamentário estabelecido para o exercício.” 

Bonfim conta que a área é bem atuante junto aos demais setores do hospital, participando de todos os fóruns e grupos de estudo da instituição — da Comissão de Radioproteção à Comissão de Padronização de Materiais —, passando pelos fóruns de Qualidade e Segurança, além dos grupos de discussão financeira. “Estar aberto e buscar sinergias com os grupos de trabalho nos insere cada vez mais no entendimento de que a engenharia clínica tem papel relevante na condução dos serviços e projetos do hospital.” 

Em relação à capacitação, para superar os desafios ainda enfrentados neste tema foi criada uma Comissão de Treinamento em Engenharia Clínica e Hospitalar (COMTECH), que promove treinamentos que podem ser ministrados por um membro da área ou por fornecedores.  

“Desenvolvemos também conteúdos digitais, para acesso a qualquer momento e local, oferecendo flexibilidade a quem deseja aprender ou revisar determinado conteúdo. Além do treinamento interno, organizamos agendas de capacitação para as equipes assistenciais, seja durante a implantação de novos equipamentos ou em conjunto com o time de Educação Continuada do hospital”, ressalta Bonfim.  

O executivo comenta ainda sobre o programa de estágio supervisionado para técnicos em eletrônica e engenharia biomédica que permite desenvolver talentos e manter um banco de profissionais qualificados. “Também incentivamos estudantes de engenharia biomédica a conhecerem a engenharia clínica por meio do programa ‘Pílula de Engenharia Clínica’, que oferece às universidades interessadas a possibilidade de enviarem seus alunos para uma breve imersão em nossa área, com uma experiência prática do ambiente hospitalar.” 

Engenharia clínica do futuro: principais tendências 

Nos próximos anos, a engenharia clínica tende a ser ainda mais protagonista dentro das organizações de saúde. Entre as principais tendências, Corrêa enumera: 

• Integração total dos sistemas hospitalares (interoperabilidade); 

• Expansão da manutenção preditiva e prescritiva baseada em IA e IoTM; 

• Gestão ESG aplicada ao parque tecnológico, com foco em sustentabilidade; 

• Adoção ampla de normas internacionais, como a ISO 7101, na governança em saúde; 

• Maior atuação na governança clínica e na segurança do paciente, alinhando tecnologia à qualidade assistencial. 

Maranhão acrescenta a essa lista o aprimoramento da atuação para cuidados domiciliar e remoto, com a engenharia clínica atuando em favor da segurança do paciente e permitindo o suporte técnico a distância. 

A engenharia clínica 5.0 não é apenas uma atualização tecnológica, mas uma mudança de paradigma que coloca o ser humano no centro da inovação. Engenheiros clínicos deixam de ser apenas gestores de equipamentos para se tornarem agentes estratégicos da transformação digital na saúde, atuando em conjunto com profissionais da área médica e de TI para oferecer cuidados mais eficientes, seguros e personalizados.