Guerra no travesseiro

“Visitación reconheceu naqueles olhos o sintoma da doença cuja ameaça a havia obrigado, com o irmão, a desterrar-se para sempre de um reino milenar onde eram príncipes. Era a peste da insônia.” A moléstia se espalharia então por todo o povoado de Macondo em um dos mais conhecidos romances do colombiano Gabriel García Márquez, “Cem Anos de Solidão”. A literatura é farta em referências ao mal que, fora dos livros ou das telas do cinema, atinge um terço da humanidade, mina a saúde, traz prejuízos à economia e é responsável por milhares de acidentes todos os anos.

Dorme-se mal desde sempre, mas a medicina só começou a desvendar o corpo em repouso no fim da década de 1960, e os novos dados só foram incorporados ao conhecimento mais amplo da população no início de 2000. Com as descobertas desses desbravadores do sono, foi possível saber que dormimos cada vez menos e cada vez pior. A imagem de gênios como Marcel Proust ou William Shakespeare imersos em longas jornadas noite adentro já não parece tão romântica quando ficam patentes os efeitos de um sono ineficaz sobre a saúde e, em consequência, sobre a economia.

Ampla pesquisa realizada pela Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, publicada no fim de setembro, revelou uma assombrosa realidade: os custos da insônia chegam a US$ 63,2 bilhões no país, uma perda média de US$ 2.280 e 11,3 dias no ano por trabalhador. Não há levantamentos dessa ordem no Brasil, mas Dalva Poyares, professora da Universidade Federal de São Paulo e médica do Instituto do Sono, entidade credenciada internacionalmente, estabelece uma equivalência dos números com as perdas de dias com o Brasil. “A insônia tende a ser similar nos indivíduos”, diz. “Assim, guardada a devida proporção em níveis socioeconômicos, o prejuízo tende a ser o mesmo.” Segundo ela, o insone tende a ir ao médico até dez vezes mais do que quem está sempre em paz com o travesseiro.

Não conseguir engatar o sono, despertar de madrugada ou acordar muito antes da hora são as queixas dos insones. As causas mais comuns vão de doenças como depressão e ansiedade até o mal de Alzheimer. Mas nem sempre é preciso uma doença de base. Há o distúrbio de insônia (antes chamado de insônia primária), que se instala sem nenhuma dessas causas em quem apresenta uma resposta anormal ao estresse. São os hiperalertas, pessoas que não desligam mesmo que o corpo esteja exausto.

Estudo inédito do Instituto do Sono obtido pelo Valor aponta que o nível de pessoas com insônia na cidade de São Paulo é de 13,4% da população. As mulheres respondem com 17,8% ante 8,7% de homens, observa Walter Moraes, pesquisador do instituto. No levantamento feito pela Faculdade de Medicina de Harvard, a população feminina também predomina: compõe 27,1% do contingente de insones. Coube aos homens a parcela de 19,7%.

A pesquisa brasileira fez a medição também por faixa etária. A porcentagem de 13,4% refere-se a pessoas entre 20 e 40 anos. Dos 40 aos 60 anos, esse índice sobe para 15%. A partir daí, até os 80 anos, cai para 8,7%. O estudo de Moraes, “Consequências Metabólicas do Sono”, feito com os médicos Dalva Poyares, Marco Túlio de Mello e Sergio Tufik, também do Instituto do Sono, pesquisou a chamada insônia síndrome. Ou seja, a que realmente compromete o dia a dia do paciente com irritação, alterações cognitivas (a troca de palavras é comum), perda de concentração, lapsos de memória e, a longo prazo, o seu

Pode parecer pouco um índice de 15%. Mas ele não se estende às pessoas que não têm o diagnóstico de insônia, apenas dormem mal. Aí os números sobem para níveis bem mais elevados. Pessoas que se queixam de um sono ruim representam uma fatia de 45% da população de São Paulo – “um aumento significativo na última década”, analisa Dalva. São pessoas com a quantidade ou qualidade de sono comprometida, mas não de forma crônica. É preciso dormir mal durante, no mínimo, três dias na semana, ao longo de três meses, para ser considerado um insone. Ao menos pelos novos critérios. Até recentemente, bastavam três semanas para que o paciente recebesse esse diagnóstico. “A pessoa com insônia tende a achar que dorme menos, e a sensação prevalece sobre a realidade”, diz Moraes.

Classificações à parte, raramente alguém passa pela vida sem a experiência de ao menos uma noite em claro. E, certamente, ninguém descreveu tão bem a sensação quanto o escritor alagoano Graciliano Ramos: “Era uma espécie de mão poderosa que me agarrava os cabelos e me levantava do colchão, brutalmente, me sentava na cama, arrepiado e aturdido”. O trecho faz parte de uma pérola da literatura brasileira: “Insônia”, publicada em 1947.

Uma mostra tão grande de maus dormidores esconde (ou revela) uma série de fatores, às vezes conjugados. O estilo de vida, que veio na esteira das novas tecnologias, o aumento das responsabilidades, uma maior expectativa por mais produtividade, velocidade e eficiência associados a um excesso de afazeres e de contas a pagar também entram no vasto rol das causas de um sono difícil. A mais óbvia: nossa época ampliou a vigília, restando ao sono, às vezes, uma mínima parcela de tempo. “Deveríamos passar um terço da nossa vida dormindo”, lembra Rosa Hasan, neurologista do Laboratório do Sono do Hospital das Clínicas de São Paulo.

García Márquez, à revelação da peste, o personagem José Arcádio Buendía responde que ela não seria ruim. E até se anima: “Desse jeito a vida renderá mais”. É nisso que muita gente acredita, esquecida de que, sem o sono, não existe boa vigília. Nem boa saúde. Para começar, quem, entre a população leiga, costuma relacionar quilos extras com noites maldormidas?

“As pessoas com menos tempo de sono de ondas lentas têm maior índice de massa corporal, são mais gordas”, observa Moraes, especialista em metabolismo do sono. Mesmo boa parte dos médicos não faz ainda essa equação. Se ansiedade, depressão e Alzheimer podem acabar negligenciados como causas da insônia, patologias sérias raramente são investigadas como consequência não só da insônia, mas de todo sono não reparador: além de obesidade, diabete, aumento da pressão arterial e problemas cardiovasculares. Mas não se trata de negligência. Está-se falando, afinal, de descobertas que ainda não entraram na agenda dos clínicos de forma cotidiana. Para se ter uma ideia de como o assunto ainda estala de novo, só neste ano a Associação Médica Brasileira reconheceu a medicina do sono como uma área da medicina e não como área de atuação de outras especialidades, como a neurologia.

Se encurtar o tempo de sono é um dos piores pecados, uma das mais graves consequências do sono não reparador é, acredite, o cochilo. Não a meia horinha que algumas empresas, mais conectadas com o mundo contemporâneo, já permitem ao funcionário em salas especiais, e sim aquela dormidinha de segundos, cujo resultado se traduz em acidentes de trânsito. Entre 27 e 32% deles têm como causa uma cochilada do condutor, resultante de noites maldormidas ou outros distúrbios associados ao sono. Os números podem ser lidos também em forma de tragédia: nesses acidentes, a incidência de mortes é de 17 a 19%.

Há empresas, em particular as multinacionais, que começam a abrir os olhos para o problema, que compõe um quadro maior: a qualidade de vida do funcionário. “Quem tem problemas relacionados ao sono não falta mais, mas produz menos”, garante Antonietta Medeiros, médica diretora de gestão de saúde da Aon Hewitt. Dentro de empresas com uma cultura já estabelecida de cuidados com o bem-estar do funcionário, foram adotados programas de assistência. Eles asseguram um quadro de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais prontos para atender os funcionários e auxiliá-los nos mais diversos entraves – de problemas financeiros a distúrbios relacionados ao sono. Nesse caso, ele é encaminhado a um especialista.

Tratar a insônia dentro de uma vasta e diversificada relação de questões pode significar o primeiro passo. Os outros talvez venham com as novas descobertas que procuram entender o repouso em toda a sua complexidade. O leitor já está um tanto familiarizado com algumas facetas desse novo ramo da medicina. Não soam estranhos exames como a polissonografia, que esquadrinha a estrutura do sono, e aparelhos como o actígrafo, que calcula a sua quantidade – ainda os equipamentos-chave para os especialistas. Também já não são estranhas as quatro fases do sono – mas não se conhecia a extensão de suas funções. Depois das fases 1 e 2 vem o sono mais profundo: a fase 3, ou sono de ondas lentas, e a mais conhecida, a fase 4, a famosa REM (Rapid Eye Movement), na qual se sonha. O sono de ondas lentas, por exemplo, é fundamental para quem quer manter o peso.

A relação entre obesidade e privação do sono é alta, como avisa o pesquisador Moraes, porque as alterações metabólicas que causam esses distúrbios acontecem nas fases mais profundas do sono. Se as quatro fases se alternam de quatro a cinco vezes durante a noite, as profundas se tornam mais longas na segunda parte do sono. “Ao retardar a hora de ir para a cama, você retarda também o sono mais profundo”, afirma o psiquiatra e terapeuta Marco Antonio Spinelli, que traz à tona um dado fundamental: normalmente o sono REM é mais rico a partir das 5 horas. Muitas vezes as pessoas acordam no meio desse ciclo ou nem sequer entram nele.

Com 20 anos dedicados especialmente a casos de ansiedade e depressão, Spinelli acredita que as pessoas estão sendo induzidas a dormir mais tarde e acordar mais cedo. Ele aponta um dado cotidiano para o qual não se costuma dar importância, mas acaba sendo um bom indicador: a novela das oito, que deu um salto de uma hora e é transmitida às nove, quando não às dez.

“Perdemos muitos dos fatores que nos ajudam a ter um sono mais fisiológico.” Há duas sinalizações fundamentais para dormir e para acordar: sol e melatonina (o chamado hormônio do sono, que tem seus níveis aumentados em ambientes escuros). Outra são o ciclos circadianos: o ritmo dos hormônios no sono e na vigília, sendo o cortisol o principal deles, com o pico mais alto pela manhã. Privado do cortisol, você já se senta à mesa com uma taxa metabólica mais baixa e, consequentemente, com mais fome. “Se o cérebro não se refaz de forma adequada durante a noite, o organismo perde a cronobiologia, desprende-se de suas características rítmicas”, alerta Spinelli. A retenção de líquido é um desses efeitos.

Estilo de vida, excesso de responsabilidades e a displicência com o sono fisiológico, no fim das contas, compõem o pacote completo que conduz a noites claras como as que o personagem interpretado por Al Pacino enfrenta no verão do Alasca, em estado de total estupor, no filme “Insônia”, de Christopher Nolan. “Não dormir é tão solitário”, diz o assassino que Will Dormer/Al Pacino persegue. “Parece que o planeta está deserto.”

Para evitar esse tormento e não se tornar um zumbi, muita gente passou a tomar benzodiazepínicos (a família do Rivotril e do Lexotan) e antidepressivos como se fossem balinha, até que um controle mais rigoroso impedisse a sua disseminação.

Mas abusos ainda acontecem. E os benzodiazepínicos, que incluem os já conhecidos Diazepan, Clonazepan, Bromazepan, “todos os ‘pans'”, como diz o neurologista do sono Luciano Ribeiro, correm na frente dos não diazepínicos, como Stilnox e Zolpidem, no quesito preço, o que, obviamente, está longe de ser a melhor maneira de medicar o paciente. “A médio e longo prazos, os benzodiazepínicos podem causar dependência e alterar a estrutura fisiológica do sono”, diz Ribeiro, que lamenta que não haja, no Brasil, receptores de melatonina, vendidos nos Estados Unidos como suplemento alimentar. Claro, o essencial é diagnosticar corretamente, e aí uma gama maior de medicamentos vem ajudar o médico a equilibrar o sono de quem precisa de auxílio químico. Nisso, o mercado externo já avançou e colocou novas e mais seguras drogas no mercado, ampliando as possibilidades de acerto na hora de fazer a prescrição.

Entre os pacientes de Spinelli, 35% apresentam um quadro que demanda medicamentos para regular o sono. Segundo o psiquiatra, os antidepressivos significam até 60% do orçamento de alguns laboratórios e são cercados de preconceitos, mesmo entre uma parcela da classe médica. É evidente que cabe também ao paciente não cometer abusos. Ele conta o caso de um executivo que, sob tratamento, passou horas excessivas sem dormir e, em vez de ir para casa, resolveu sair para jantar e beber com amigos. Somados todos os fatores, o resultado foi uma queda repentina no meio da rua, como um “apagão”. Em poucos segundos ele voltou a abrir os olhos, sem nenhuma lembrança do que acabara de acontecer. “Foi como se ele tivesse sido alvejado”, conta Spinelli, num episódio que interpretou como uma intromissão do sono REM na vigília, o que pode acontecer mesmo que a pessoa não faça uso de medicamentos – basta estar exausta.

Há mais componentes do estilo de vida, como o do “alvejado”, do que de insônia, em sua acepção correta, tornando mais longos os dias e mais curtas as noites. Mais curtas e mais difíceis de atravessar. Foi o novo estilo de vida que introduziu na bolsa das mulheres e no bolso dos homens, executivos em especial, o BlackBerry e o iPhone, que mantêm os usuários em estado de vigilância. “Você dorme um sono de mãe, que não aprofunda”, diz Spinelli.

Mas há adaptação. Aliás, ela é tudo o que as pessoas têm procurado, conscientes disso ou não. Tentando acertar o ritmo perdido, erra-se sempre mais. Acende-se o cigarro para relaxar, sem saber que a nicotina é relaxante periférico, mas estimulante do sistema nervoso central. Há quem recorra – homens na maioria – a um ou mais drinques para invocar o sono. Outra ideia nada recomendável, como explica Rosa Hasan: “O álcool pode relaxar no início, mas depois o sono é fragmentado, até porque a pessoa entra em abstinência, se desidrata, ronca, tem um sono de péssima qualidade”.

Outro hábito comum é manter os olhos fixos na tela do computador ou do iPad, estimulando a retina com a mesma frequência de onda da luz do dia. Adeus, melatonina. A atividade envolvida também é um fator estimulante, seja trabalho, troca de e-mails ou uma olhadela no Facebook.

Aos poucos, os alertas sobre os efeitos do sono não reparador começam a ser mais disseminados, especialmente as recomendações sobre a higiene do sono – os hábitos que devem ser adquiridos e mantidos para uma regulagem eficaz dos ritmos circadianos. Spinelli resume, ironizando: “Higiene do sono é tudo aquilo que ninguém faz”. Mas relaciona, retirando os excessos, as medidas para um sono reparador: dispensar café e bebidas alcoólicas perto da hora de ir para a cama (não acredite em número de horas preestabelecido, cada pessoa responde à sua maneira aos diversos estímulos) e desligar o computador. Ir baixando o ritmo e conceder ao corpo o relaxamento necessário para prepará-lo para o sono, o que pode incluir música e luzes baixas e – fundamental – um ambiente fresco (“o frio é melhor para o sono, ele ativa os mecanismos de hibernação”). Até o leitinho quente, que parecia uma simpatia de avó, tem a sua função, já que contém triptofano, substância que aumenta os níveis de serotonina, assim como a risada e o sexo – guardadas as devidas proporções.

Em uma cidade como São Paulo, ligada 24 horas, há quem não consiga chegar sequer perto de uma boa higiene do sono. “Cerca de 20% da população trabalha em turnos”, alega Rosa Hasan. E a troca entre a luz do dia e a escuridão da noite faz grandes estragos. Essas pessoas compõem boa parcela dos que acorrem ao seu consultório, além dos que trabalham em horários irregulares.

Alguns fabricantes de gadgets já atentaram para a necessidade do ciclo claro/escuro e criaram aparelhos que imitam a natureza. Um deles, não disponível ainda no Brasil, funciona como uma espécie de despertador de luz. Perto da hora programada, começa a simular a alvorada. “Recuando na cadeia de causas, desde que surgiu a luz artificial o homem passou a dormir pior”, avalia Spinelli. Já existe aí um culpado: Thomas Edison, o gênio que inventou a lâmpada. Ele mesmo um notório insone.

Fonte: Cristina Dantas, Valor Econômico, 02/12/11