Se você esteve envolvido no setor de saúde ou arquitetura nas últimas décadas, provavelmente já ouviu o termo healing architecture (arquitetura de cura). Como o nome sugere, a arquitetura de cura vai além da funcionalidade e estética dos edifícios. É uma ferramenta que pode promover a saúde e o bem-estar entre os usuários desses espaços.
Em instituições de saúde, o projeto arquitetônico pode ser pensado não apenas para o tratamento de doenças, mas para preveni-las, com espaços acolhedores, fluxos eficientes e ambientes que promovem a recuperação e o bem-estar. Hospitais e clínicas que adotam conceitos de arquitetura biofílica, por exemplo, oferecem ambientes mais humanos e curativos.
O sucesso do futuro projeto hospitalar requer a priorização da saúde física e mental de pacientes e profissionais de saúde, levando em consideração os fatores sociais e a integração da tecnologia. O foco principal é melhorar os resultados de saúde, baseando as decisões de design em dados suportados em evidências, o que ajuda a criar uma infraestrutura adaptável e interativa com natureza e tecnologia integradas.
“A arquitetura hospitalar, quando pensada com rigor técnico e sensibilidade ao cuidado, torna-se uma aliada da saúde, e não apenas um suporte neutro. No Brasil, já na década de 1980, surgiram exemplos que continuam sendo referência. Os hospitais projetados por João Filgueiras Lima anteciparam soluções que hoje consideramos essenciais: ventilação natural, controle passivo de temperatura, escolha criteriosa de materiais e integração com o entorno”, explica Enzo Tessitore, diretor de Marketing e Operações do Green Building Council Brasil.
Mais do que estética, essas decisões promoveram ambientes que acolhem, regeneram e reduzem o risco de complicações. Hoje, a ciência comprova o impacto direto de fatores como ruído, iluminação artificial em excesso, mobiliário inadequado e baixa qualidade do ar sobre o tempo de recuperação, o estresse e a segurança clínica. Ambientes mal planejados podem levar à chamada Síndrome do Edifício Doente, com sintomas que afetam tanto pacientes quanto equipes de saúde.
Certificação LEED
O LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) é um sistema de certificação ambiental para edificações que visa promover a construção de edifícios verdes, eficientes e saudáveis. Ele oferece ao setor hospitalar um roteiro técnico e estruturado para incorporar sustentabilidade de forma mensurável, o que significa repensar desde os sistemas de climatização até a escolha de materiais, do layout funcional à qualidade da luz, da origem da energia à destinação de resíduos. Tudo é interdependente. E tudo impacta a saúde.
“A certificação LEED for Healthcare, por exemplo, leva em conta as particularidades desse tipo de edificação: operação contínua, alta demanda energética, protocolos rigorosos de segurança e o desafio de equilibrar complexidade clínica com conforto ambiental. Não se trata de aplicar um modelo genérico, mas de reconhecer a singularidade do hospital como tipologia, e tratá-lo com a precisão que isso exige”, explica Tessitore.
A certificação orienta o projeto para reduzir a exposição a compostos tóxicos, controlar níveis de ventilação e qualidade do ar, mitigar ruídos, garantir conforto térmico e ampliar o acesso à luz natural e às vistas externas. São decisões que, isoladamente, podem parecer operacionais, mas juntas moldam o ambiente de cura.
Arquitetura como estratégia
Mas mais do que ambientes estética e tecnologicamente pensados, a arquitetura hospitalar, hoje, faz parte da estratégia das instituições de saúde. “Controlar ruídos que comprometem diagnósticos, garantir luz natural que regula o ciclo circadiano, oferecer vistas externas que aliviam a tensão e integrar elementos naturais que estimulam a recuperação são escolhas que têm impacto mensurável. É nessas decisões que a promoção da saúde começa, antes mesmo da admissão do paciente”, destaca Tessitore.
A forma como um hospital é projetado, construído e operado afeta diretamente o conforto, a segurança e a recuperação dos pacientes, além do desempenho das equipes de saúde. Um sistema de ventilação ineficiente pode disseminar patógenos; materiais com altas emissões de compostos orgânicos voláteis comprometem a qualidade do ar e agravam doenças respiratórias. Níveis elevados de ruído impactam tanto a concentração dos profissionais quanto a estabilidade emocional dos internados.
“Por outro lado, ambientes que controlam com precisão temperatura, umidade, ventilação e acústica ajudam a reduzir infecções hospitalares, promovem a recuperação e aliviam a pressão sobre os sistemas de saúde. A infraestrutura física, que está longe de ser neutra, pode ampliar ou atenuar desigualdades no acesso à saúde de qualidade”, avalia Tessitore.
Walmor Brambilla, gerente executivo de Engenharia do Hcor, acredita ser fundamental nesta temática discutir a questão de quanto os hospitais terão que se adaptar e se tornar mais resilientes em relação às mudanças que virão, principalmente em relação às tecnologias emergentes, com ambientes que requerem estrutura robusta para suportar a operação.
Nos últimos quatro anos, o HCor investiu mais de R$ 130 milhões para restabelecer os sistemas elétricos para suportar a incorporação de novas tecnologias e gerar segurança na instituição. “Investimos em datacenters e na estrutura de rede para operar todos os sistemas e incorporar as tecnologias de forma mais saudável e estruturada”, conta Brambilla.
O executivo explica que, a cada dois anos, é feita uma revisão da estrutura física com base no planejamento estratégico estabelecido. “Nosso planejamento foi revisitado porque o mercado de saúde tem mudado. Grande parte dos fluxos de pacientes, por exemplo, foi corrigida, o que otimizou recurso físico e possibilitou a incorporação de tecnologias.”
Estruturas modernas suportam tecnologias que aprimoram o cuidado
Como a maneira de oferecer saúde vem mudando, e os pacientes estão cada vez mais buscando experiências que lhes sejam minimamente agradáveis, outro caminho que tem sido observado é a criação de clínicas menores e centros ambulatoriais que oferecem atendimento rápido e acessível, o que demanda soluções arquitetônicas que priorizem eficiência e humanização.
“Essas soluções são bastante viáveis por ofertarem atendimento de qualidade sem ter que se apropriar dos custos fixos hospitalares que as instituições de saúde carregam”, diz Marcelo Boeger, consultor na Hospitallidade Consultoria, coordenador e professor do curso de especialização em Gestão da Infraestrutura e Facilities no Hospital Israelita Albert Einstein.
Mas, diz ele, o foco desses projetos deve ser a eficiência. “São estruturas que devem atender aos padrões regulatórios, mas de forma inteligente. Projetos que seguem as normas cegamente, sem perceber o fluxo proposto, sem focar no design de serviços e na importância do encaixe estratégico entre seus processos (onde a maior parte são invisíveis aos olhos dos clientes, mas determinam a forma como a assistência irá fluir), podem estar engessando processos de trabalho com um ambiente que não abarca e acomoda a sua operação”, observa ele.
Para Tessitore, o edifício hospitalar moderno precisa acompanhar a evolução da medicina, e isso exige uma mudança de lógica. “Ainda vemos prédios concebidos para resistir, mas não para se adaptar. A saúde do futuro é preditiva, personalizada e integrada. E a arquitetura precisa responder a esse novo paradigma.”
Hoje, já existem hospitais no Brasil operando com sistemas avançados de automação, digital twins e sensores que monitoram, em tempo real, variáveis como qualidade do ar, fluxo de pessoas, consumo energético e condições térmicas. São estruturas inteligentes que ajustam o ambiente conforme o uso, antecipam falhas e garantem mais segurança. Mas esses casos ainda são exceção.
“A maioria dos hospitais ainda carece de soluções simples, porém estratégicas: medição individualizada de consumo, ventilação natural bem dimensionada, acesso à luz do dia, materiais com baixo impacto químico, integração com áreas verdes. A infraestrutura precisa deixar de ser apenas suporte físico para tornar-se uma plataforma ativa de cuidado. Um espaço que coleta dados, responde a mudanças, promove bem-estar e reduz riscos”, comenta Tessitore.
Medicina preditiva dita ambientes
Atualmente, o ambiente pode estar conectado com uma inteligência que “blinda” alguns processos contra potenciais erros e pode inclusive antecipar necessidades, enviando alertas personalizados para as equipes diante de riscos ou não-conformidades.
“Já estamos vendo a aplicação de soluções deste tipo na medicina preventiva e também na jornada de internação eletiva. Estamos falando de um ambiente parametrizado, integrado aos recursos tecnológicos em que, por conhecermos as métricas, podemos controlar de forma preditiva, otimizando equipes e aumentando a assertividade”, comenta Boeger.
Hoje, diz o especialista, as instituições de saúde têm sido pensadas para ter mais flexibilidade nos espaços e maior capacidade de transformação para adaptação a cenários voláteis.
Pensando na medicina moderna, cada vez mais preditiva, a infraestrutura do ambiente físico deve estar conectada para que as informações possam trafegar nesse ambiente. “Temos nos deparado com salas de comando que congregam informações da estrutura (com dados oriundos de IoT e plataformas conectadas com interoperabilidade) potencializadas com dados da assistência”, destaca Boeger.
Nesse cenário, pode ser necessário que alguns espaços precisem ser repensados, especialmente as unidades de internação, Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), Recuperação Pós-Anestésica (RPA) e leitos de observação.
“Os espaços precisam ter seu propósito e flexibilidade. Precisam considerar a desospitalização e receber o paciente ‘certo’. Quando falamos de paciente certo, estamos incluindo a esta premissa o custo certo com uma permanência gerenciada e aplicada. Ao prever fluxos e movimentos, podemos moldar a operação conforme horário, sazonalidade, tempo e trajeto”, avalia Boeger.
A arquitetura hospitalar contemporânea está em constante evolução para integrar ambientes saudáveis com as inovações tecnológicas, buscando não apenas tratar doenças, mas promover o bem-estar integral de pacientes, profissionais da saúde e visitantes. Essa união acontece por meio de uma abordagem interdisciplinar que alia design centrado no ser humano com inovação tecnológica, resultando em espaços mais eficientes, seguros, acolhedores e inteligentes.