Com o envelhecimento da população e o aumento da pressão sobre os sistemas de saúde, a atenção domiciliar e os hospitais de transição surgem como alternativas para desafogar leitos, melhorar a eficiência do cuidado e otimizar recursos. Apesar do avanço, esses modelos ainda enfrentam entraves significativos no Brasil — da ausência de regulamentação específica à insegurança jurídica, passando por questões tributárias e o impacto crescente da judicialização e das fraudes. 

Esses desafios foram tema central do painel “Regulamentação e Desafios Jurídicos na Saúde”, realizado durante o Congresso de Atenção Domiciliar na Hospitalar 2025. Moderado por Mario Jorge da Cruz Vital, VP da UNIDAS Autogestões em Saúde, o debate reuniu nomes de peso do setor, como Breno Monteiro, presidente da CNSaúde; Carlos Costa, CEO da Suntor Clínica e cofundador da BRAT; e Teresa Gutierrez, VP da Milmedic Soluções. 

A discussão trouxe pontos críticos, como a reforma tributária, a urgência da regulamentação para home care e hospitais de transição, e o crescimento preocupante da judicialização e das fraudes na saúde suplementar. 

Os impactos da reforma tributária no setor de saúde 

Um dos pontos centrais do debate foi a Reforma Tributária e suas implicações para a cadeia da saúde. Após décadas de discussão, o Brasil caminha para um sistema tributário mais simples, unificando cinco impostos em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para o governo federal e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) para estados e municípios, em um modelo que busca simplificar as mais de 363.000 normas existentes.  

Um avanço significativo para o setor de saúde foi a conquista de um redutor de 60% sobre a alíquota máxima do CBS e IBS para toda a cadeia. Isso inclui desde a compra de dispositivos médicos e medicamentos até os serviços profissionais de saúde, como médicos e fisioterapeutas. As operadoras de saúde, por sua vez, terão um regime específico, pagando o mesmo redutor de 60%, mas apenas sobre a diferença entre a mensalidade e a receita. 

Apesar da conquista do redutor, ainda há incertezas sobre a alíquota final, que será definida pelo Senado.  

Estimativas iniciais apontavam para uma carga tributária total, incluindo o resíduo tributário, em torno de 10.4%. Com a não cumulatividade, espera-se que o valor efetivamente pago seja reduzido, pois os impostos pagos anteriormente na cadeia serão compensados. No entanto, pairam dúvidas sobre o crédito em insumos, que representam cerca de 20-27% dos custos no home care, e sobre a tributação da mão de obra, que muitas vezes é via cooperativas ou notas fiscais de profissionais. 

Em um momento em que o mercado de saúde opera com margens apertadas e desafios de caixa, qualquer aumento de imposto é extremamente sensível. 

A luta pela inclusão explícita do serviço de home care no projeto de lei complementar e no anexo de serviços de saúde sujeitos à redução de alíquota foi destacada como crucial para evitar insegurança jurídica e litígios futuros. 

Regulamentação para home care e hospitais de transição 

A falta de regulamentação clara e específica é um dos maiores desafios enfrentados pelos setores de atenção domiciliar e hospitais de transição. 

Para o Home Care, embora a RDC 917 de 2024 atualize normas, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) entende que a atenção domiciliar não é um serviço obrigatório, mas pode ser oferecido como substituição à internação hospitalar conforme regra contratual. Essa posição deixa o setor à deriva das decisões das operadoras, gerando contradições, pois, em alguns momentos, a ANS afirma não poder atuar no setor por não ser citada na Lei 9656. A inclusão do home care na Lei 9656 é vista como uma potencial solução, mas requer muito debate para não piorar a situação atual. 

É fundamental distinguir entre “Rol” e “Normatização”. Incluir o home care no rol obrigaria a cobertura, garantindo acesso e melhoria da qualidade de vida do paciente. Já a normatização visa padronizar o setor, garantir qualidade, segurança e conformidade legal, assegurando que as empresas tenham custos operacionais e níveis de segurança semelhantes. A falta de normatização leva à concorrência desleal com empresas menos regularizadas, prejudicando a qualidade e a segurança do atendimento. O ideal seria avançar nos dois aspectos simultaneamente. 

Para os Hospitais de Transição (UTCs), o cenário é igualmente complexo. Apesar de sua crescente importância diante do envelhecimento populacional e do aumento de doenças crônicas, as UTCs carecem de uma RDC específica na Anvisa e são frequentemente classificadas de forma inadequada no Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES).  

A Portaria 2809 de 2012, a principal referência legal, é considerada limitada e insuficiente, focada mais na rotatividade de leitos hospitalares do que em uma política pública clara com critérios de elegibilidade e linhas de cuidado definidas. 

Essa falta de diretrizes técnicas gera o uso indiscriminado do termo “transição de cuidado” por instituições sem critérios, compromete a reabilitação e a confiança das contas pagadoras, além de gerar insegurança jurídica e riscos sanitários e fiscais. 

Em resposta a esse vácuo, a Associação Brasileira de Hospitais e Clínicas de Transição (BRAT) elaborou uma proposta de minuta de regulamentação nacional, detalhando tipologias de UTCs, requisitos estruturais e assistenciais, e indicadores de qualidade. 

Este material, fruto de um trabalho colaborativo com mais de 22 especialistas, está sendo submetido aos órgãos competentes, como o Ministério da Saúde e a Anvisa.  

A revisão da Portaria 2809, esperada para este ano, representa uma oportunidade urgente para incorporar essas propostas. A regulamentação é vista como estratégica para garantir a qualidade, a sustentabilidade e a expansão do setor no país, que hoje tem 87% das UTCs concentradas no Sudeste. 

Judicialização, fraudes e a sustentabilidade em risco 

A explosão da judicialização na saúde e a persistência de fraudes são ameaças significativas à sustentabilidade do sistema. As despesas judiciais atingiram a marca de quase R$ 9 bilhões em 2024, com grande parte na saúde suplementar. O judiciário, que por muito tempo afirmou não lidar com o “cofre” e que a saúde não era questão financeira, agora começa a considerar a alocação de recursos, pressionado pela própria realidade econômica. 

Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Rol de Procedimentos da ANS (taxativo ou exemplificativo) e a cobertura de medicamentos pelo SUS sinalizam uma mudança. Embora a Lei 14.454 de 2022 determine que procedimentos não previstos no rol também devem ser pagos em certas condições, o STF tem buscado estabelecer critérios técnicos e de evidência científica para as coberturas, o que antes não era o foco principal das decisões.  

A discussão sobre a ADI 7265 no STF é esperada para definir o futuro da cobertura na saúde suplementar e pode forçar a sociedade a fazer escolhas sobre que tipo de saúde deseja e como os recursos serão utilizados. A judicialização, especialmente quando desnecessária, atrapalha a organização do sistema e consome orçamentos que poderiam ser destinados a políticas públicas. 

Além da judicialização, o setor de home care e atenção domiciliar convive com diferentes tipos de fraudes. Elas podem ocorrer na assistência (profissionais que não realizam sessões, mas enviam relatórios), na concessão de liminares (documentos médicos direcionados para gerar ações judiciais contra operadoras), e em licitações públicas (empresas que manipulam orçamentos para ganhar contratos, mesmo que o paciente não precise do serviço).  

A dificuldade em monitorar prestadores e comprovar essas fraudes é grande. A tecnologia é vista como uma ferramenta essencial para mitigar fraudes na assistência, através de check-in/check-out e relatórios eletrônicos. 

Outros desafios regulatórios e legais, como o impacto financeiro do Piso da Enfermagem e a discussão sobre a jornada de trabalho, somam-se ao cenário de complexidade. 

A perspectiva internacional mostra modelos, como no Reino Unido e Portugal, que integram cuidados continuados e baseiam o pagamento em valor e desfechos, não apenas em volume.  

Trazer boas práticas exige adaptação à realidade brasileira e, fundamentalmente, a construção de confiança e o compartilhamento de riscos entre todos os atores da cadeia.