O sistema de saúde brasileiro vive um ponto de inflexão. Diante de desafios como o subfinanciamento do SUS, o aumento dos custos assistenciais e a rápida incorporação de tecnologias, cresce o consenso de que o país precisa redesenhar sua lógica de funcionamento — com novas pontes entre o público e o privado, modelos de cuidado mais integrados e preventivos e uma regulação ágil, transparente e centrada nas pessoas.

Essa visão guiou as discussões entre representantes do Ministério da Saúde, Anvisa e ANS — que acabam de ter novos dirigentes empossados — e gestores hospitalares sobre a necessidade de alinhar políticas públicas, inovação e regulação eficiente.

SUS como eixo central e o desafio da atenção especializada

Adriano Massuda, secretário-executivo do Ministério da Saúde, defendeu que fortalecer o Sistema Único de Saúde é condição indispensável para qualquer avanço estrutural. “A primeira prioridade na transição foi fortalecer o SUS. Recuperar o SUS”, afirmou no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp).

Segundo Massuda, o governo federal trabalha em três frentes principais: ampliação do acesso à atenção especializada, formação de profissionais e preparação para emergências sanitárias e climáticas.

O programa Agora Tem Especialistas é o eixo mais visível dessa estratégia, e busca utilizar a capacidade ociosa de hospitais públicos, filantrópicos e privados para reduzir filas e desigualdades regionais.

“O setor privado pode ajudar compreendendo as novas lógicas que estão colocadas. A inovação não é só para medicamento e vacina. É inovação no jeito de desenhar o cuidado, no jeito de organizar o sistema e no jeito de financiar”, explicou.

A proposta também prevê financiamento baseado em pacotes de cuidado, em vez de pagamento por procedimentos isolados, e a criação de estruturas móveis de atendimento. “O SUS não é uma usina de produção de procedimentos, é uma usina de produção de cuidado”, reforçou.

Massuda anunciou ainda o projeto de um hospital inteligente, desenvolvido em parceria com a USP e o governo paulista, que contará com 800 leitos e integração digital completa. A iniciativa, segundo ele, simboliza a aposta em tecnologia e sustentabilidade na saúde pública.

ANS aposta em escuta e prevenção

Recém-empossado na presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o ex-deputado e advogado Wadih Damous destacou que a nova gestão pretende fortalecer o diálogo com o setor e com os beneficiários. “A vida toda eu fui treinado para ouvir. E agora, na ANS, nada mais necessário é do que ouvir — ouvir muito”, disse.

Assumindo o comando da agência em meio a desafios urgentes, como interrupções de atendimentos oncológicos por impasses contratuais no Rio de Janeiro, Damous enfatizou que a prioridade é garantir a continuidade do cuidado e a proteção do paciente. “Ver pessoas tendo seu tratamento interrompido é algo que não pode nos deixar alheios. A ANS não pode ficar indiferente”, ressaltou.

Damous também apontou as linhas de cuidado e a saúde preventiva como eixos estruturantes da agenda regulatória. “Acho que isso racionaliza o sistema e espero que se reflita nos custos dos planos de saúde”, afirmou.

O novo presidente reforçou ainda a necessidade de reduzir a distância entre o sistema público e o suplementar, que, segundo ele, devem atuar de forma complementar. “Eu não vim para acirrar conflitos. Vim para ajudar a construir pontes — pontes com todos os setores que participam do sistema de saúde brasileiro.”

Damous afirmou que sua gestão buscará reposicionar a ANS como uma agência reguladora de caráter cidadão, atenta aos direitos dos beneficiários e aberta à escuta de prestadores e operadoras. “Nós exercemos a regulação para seres humanos, com carências e vulnerabilidades. É para eles que nós existimos.”

Anvisa mira eficiência e inovação

Leandro Safatle, diretor-presidente da Anvisa, se concentrou em dois desafios centrais: destravar as filas de análise e preparar a agência para uma nova era de inovação tecnológica em saúde.

Segundo ele, o passivo acumulado durante a pandemia representa mais de R$ 20 bilhões em investimentos parados. “Resolver ou mitigar as filas é a prioridade absoluta da Anvisa”, afirmou.

Safatle destacou a carência histórica de pessoal e comemorou a chegada de 150 novos servidores, com expectativa de mais 250 nomeações. Ele comparou o quadro atual da Anvisa — com cerca de 1.400 servidores — ao de agências internacionais como a FDA, nos Estados Unidos, que tem 17 mil profissionais, e a EMA, na Europa, com pouco mais de 5 mil. “O que a Anvisa faz com esse quadro já é impressionante”, afirmou.

Entre as medidas de modernização, Safatle defendeu o uso de inteligência artificial na triagem de processos e a revisão de fluxos internos, sem abrir mão do rigor técnico. “A agência precisa estar pronta para a inovação — tanto a que vem de fora quanto a que está sendo feita no país.”

Ele também ressaltou a importância da coordenação institucional em crises sanitárias, relembrando a atuação durante o surto de contaminação por metanol. “Em menos de uma semana, autorizamos a produção de etanol farmacêutico e o produto estava disponível no país. É um exemplo de como o alinhamento entre setor público e privado pode salvar vidas.”

Safatle encerrou reafirmando os cinco princípios que devem nortear a nova fase da Anvisa: “Diálogo, transparência, ciência, inovação e eficiência.”

Gestores cobram sustentabilidade e integração

José Antônio Rodrigues, provedor da Santa Casa da Bahia, alertou para o subfinanciamento crônico do SUS e a falta de previsibilidade dos programas públicos. “Nós não podemos mais correr o risco de termos programas com começo, meio e fim. No final, o subfinanciamento nos fragiliza”, afirmou.

Rodrigues lembrou que boa parte dos serviços prestados pela rede filantrópica tem valores congelados há mais de uma década, o que compromete a sustentabilidade das instituições. “Os novos programas trazem desafios, e nós temos que adaptar nossa capacidade instalada, mas eles precisam vir com sustentabilidade. Não podemos dar três passos à frente e dois atrás.”

Para Antônio José Pereira, superintendente do Hospital das Clínicas da USP, é necessário romper as barreiras entre o público e o privado e criar um ambiente de aprendizado mútuo. “O público e o privado têm que caminhar juntos. Falta disseminar o qdue cada um faz de melhor”, observou. Ele citou avanços em telemedicina e gestão de leitos como exemplos de eficiência que poderiam ser replicados nacionalmente.

Prevenção, tecnologia e o protagonismo do paciente

O médico e executivo Paulo Chapchap, diretor de Estratégia Corporativa doGrupo Santa Joana, defendeu que o futuro da saúde passa pela prevenção e pelo engajamento do paciente.

“A prevenção primária é não ficar doente, e a secundária é não ter agravamento das doenças crônicas. Não há outra forma de fazer isso que não seja ativando e educando o paciente”, destacou.

Chapchap sugeriu que a regulação cobre programas de prevenção baseados em resultados, com métricas de impacto. Ele destacou o SUS como referência na mensuração de desempenho, citando as taxas de internações por condições sensíveis à atenção primária.

O executivo também apresentou um exemplo prático de inovação: o uso de inteligência artificial nas maternidades do Grupo Santa Joana, que permitiu detectar precocemente 79 casos de sepse e reduzir internações neonatais. “Quando se quer e há coordenação entre o público e o privado, é possível fazer muito mais com o mesmo valor”, concluiu.

Um futuro colaborativo

Os executivos convergiram em um ponto: a integração entre setores, a modernização regulatória e a sustentabilidade financeira são condições para um sistema de saúde mais eficiente.

Enquanto o Ministério da Saúde aposta em novos modelos de cuidado e financiamento, as agências reforçam a escuta ativa, a transparência e o uso de tecnologia para aproximar regulação e prática assistencial.

“Não é um aumento paliativo de financiamento — é uma transformação”, resumiu Massuda. E, nas palavras de Wadih Damous, “saúde, vida e morte dizem respeito a todos nós. A regulação deve ser instrumento de cidadania”, concluiu.