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Cuidado hospitalar é constante reinvenção: vamos mesmo ficar presos ao passado?

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Podemos escolher entre transformar a Medicina Interna brasileira ou reverenciá-la em memórias apenas

Escutei, meses atrás, uma história que valorei mais agora, ao contarem uma muito parecida, de outra cidade brasileira: serviço tradicional de Medicina Interna (ou Clínica Médica como é chamada oficialmente no Brasil e praticamente só aqui), centro formador por treinamento em serviço reconhecidíssimo, não está conseguindo reter novos preceptores.

Antigos clínicos com uma vida de dedicação ao Departamento e à especialidade Medicina Interna estão se aposentando (num dos serviços, ídolos meus estão contemplados); os novos não têm permanecido mais do que alguns anos. Nesta casuística, a cada geração de novos contratados, menos tempo permanecem.

Em hospitais universitários, por sua vez, concursos para internistas hospitalares são ocupados por especialistas focais de olho em remanejo interno, ou enquanto aguardam outra prova em sua especialidade principal.

Nem de perto penso ter a solução completa para o fortalecimento da Medicina Interna e do generalismo no Brasil. O que posso dizer é que tentei plantar um arcabouço para chuva de ideias entre potenciais interessados através do movimento hospitalista brasileiro. Seja através de um primeiro grupamento organizado, em que meu protagonismo esconde-se hoje em registros de fundação, com a garagem de meus pais servindo de endereço do auspicioso projeto (lembrança de época em que eu próprio era um médico residente), seja através da Academia Brasileira de Medicina Hospitalista (ABMH), tentou-se sair do modelo onde o “associativismo” da  Medicina Interna corresponde a eventos científicos periódicos voltados a estudantes de Medicina, em direção à uma colaboração entre internistas de carreira - em nosso caso, com foco de atuação hospitalar -, visando conquistas relacionadas à representatividade e à defesa de interesses comuns, bem como vantagens econômicas.

Meu benchmarking sempre foi a Society of Hospital Medicine (SHM), cujos encontros anuais reúnem predominantemente profissionais maduros. A SHM executa ainda um excelente trabalho de Advocacy, com a finalidade de influenciar a formulação de políticas públicas e a alocação de recursos na saúde, buscando a valorização do trabalho generalista nos hospitais norte-americanos. Também a Medicina Interna portuguesa e o papel dos internistas português nos hospitais por lá são bastante pujantes e merecem destaque. Recente publicação da ABMH abordou isto.

Ainda há tempo para agir, mesmo que estejamos atrasados. Em 2012, neste mesmo espaço, já questionávamos sobre luz no fim do túnel para a Medicina Interna brasileira. Em 2017, compartilhei reflexões com portugueses, chamando atenção para a necessidade, no Brasil, de um sistema mais bem estruturado por trás do trabalho médico, com divisão inteligente do trabalho entre as especialidades, evitando redundâncias (Revista Live Medicina Interna, página 16).

Podemos escolher entre transformar a Medicina Interna brasileira ou reverenciá-la em memórias apenas: lembrando a trajetória de ícones que formaram a minha geração, notáveis internistas que se formaram para cuidar de gente e se aposentam agora, cuidando de gente. Tal como idealizamos quando ainda estudantes de Medicina, prestando prova para Medicina Interna e pensando nela como especialidade principal. Que fique claro: ninguém está proibido de mudar de ares profissionais ao longo da carreira. O que não faz sentido é acontecer como na Enfermagem, a meu ver uma das profissões mais nobres dos hospitais, onde, após poucos anos de prática, está todo mundo acotovelando-se para qualquer outra função distante da linha de frente e dos pacientes.

Reconhecimento e valorização, entretanto, não virão enquanto a Clínica Médica faz eventos para estudantes que lá estarão apenas porque é a especialidade mais abrangente na preparação para as provas, de olho em outras áreas, preferencialmente tecnológicas.

Reconhecimento e valorização não virão enquanto ignoramos a necessidade de demostrar utilidade a partir de qualidade própria peculiar, e valor. Mas os tais internistas dos hospitais universitários que querem mesmo é estar em especialidade focal, não tendo mentalidade de generalista, brigam com sub-especialistas pelos casos “bons”, enquanto não querem o idoso frágil com múltiplas comorbidades, especialmente se desenvolver escaras de decúbito. Já aqueles internistas contratados que não permanecem muito, quando sem outra especialidade, acabam em modalidades de plantonismo, sem vínculo horizontal com pacientes, para ganhar em qualidade de vida. Ou, quem sabe, tal como na Enfermagem, são contemplados com algum cargo de liderança, o mais distante de pacientes possível.

Dos pioneiros do movimento hospitalista brasileiro, um fez, tardiamente, anestesiologia, tendo sido protagonista do primeiro site a cravar a palavra hospitalista para buscas na Google Brasil. Dois voltaram-se à pneumologia. Eu tenho atuado predominantemente em UTI, com foco em plantões e qualidade de vida. Nossa rainha do movimento hospitalista brasileiro está hematologista. Há quem migrou de generalista para especialista focal em dor. Outros estão na gestão, exclusivamente. Tenho convicção de que muitos retomariam atuação generalista à beira leito se amparados por sistema mais bem organizado e minimamente saudável.

Projeções recentes do IBGE vêm reforçar a tendência de envelhecimento da população brasileira. Nesse cenário, a expectativa é de que o número de pessoas com 65 anos ou mais praticamente triplique, chegando a 58,2 milhões em 2060 – o equivalente a 25,5% da população. Quem vai no futuro cuidar deles nos hospitais? Ou da gente, se chegarmos lá? Insistiremos no modelo de sempre (ou na ausência de modelo)? À que custo para o sistema e seus pacientes e familiares?

A Medicina Hospitalista nos EUA, quando surgiu, obviamente quebrou paradigmas. Mas, no fundo, apenas representou uma evolução dos tradicionais departamentos de Medicina Interna. Naquela época, os internistas entendiam isso, e eram extremamente receptivos a estrangeiros para mostrar o “diferente”. Visitei inúmeros programas de MH. Hoje, atuam por lá muitos que ingressaram na atividade profissional em modelo hospitalista já. Sequer percebem o “diferente”. Recentemente, disse a um deles que queria visitá-los e respondeu:

- Mas vocês não têm Medicina Interna no Brasil? Quem coordena o complexo cuidado hospitalar???

Agora, entre a Medicina Interna e o generalismo nos hospitais, o segundo é mais abrangente e, como tal, traz mais alternativas aos pacientes. Outra possibilidade para solucionar a questão dos pacientes “não bons”, impregnada de etarismo na assistência médica hospitalar, seria geriatras entrarem com tudo na Medicina Hospitalista brasileira. Eu compreenderia e apoiaria.