Construir uma história de lucros crescentes, sem crises financeiras, riscos ou conflitos de sucessão graças a um conselho de administração que monitora continuamente seu limite de endividamento e longevidade. Em síntese, esse é o objetivo da Governança Corporativa nos hospitais, clínicas e serviços de saúde, um modelo de gestão que contempla uma estrutura baseada nos princípios de Transparência, Equidade, Prestação de Contas (accountability) e Responsabilidade Corporativa. A estrutura tem sido implementada nos hospitais Albert Einsten, São Luiz, Moinhos de Vendo, 9 de Julho, Rede D´Or, e nos Grupos Nossa Senhora de Lourdes e Dasa.
Na área da saúde, um dos maiores empregos da governança tem sido a profissionalização da gestão nas empresas familiares, marcando a transição do fundador para o conselho administrativo e a transferência de controle a um sucessor no negócio, que pode ser um descendente ou um profissional do mercado.
Afinal, melhorar a prática administrativa é fundamental para evitar a mortalidade da organização já que pesquisa do Núcleo de Estudos de Empresas Familiares e Governança Corporativa, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) revelou que, em 55% das organizações, não há planejamento da sucessão. No mundo, esse índice sobe para 65% de acordo com estudo da The Family Business Consulting Group International (FBCGi).
Para não incrementar as estatísticas, o Grupo Nossa Senhora de Lourdes deu início ao processo de governança há mais de duas décadas – com a separação do patrimônio em holdings familiares para os dois fundadores. Mais tarde, o controle acionário foi unificado com a aquisição pelos Sinisgalli. Atualmente, o GNSL está finalizando a fase de transição para a gestão profissional e a consolidação do conselho de administração, com membros inclusive de outras instituições de saúde do país. “Em qualquer financiamento de expansão ou desenvolvimento tecnológico, é uma exigência do mercado e das financeiras saber qual o nível de governança implementado na organização. Os investidores querem aplicar dinheiro em uma empresa organizada”, ressalta o presidente executivo, Fábio Sinisgalli.
Coordenadora do Centro de Conhecimento do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Adriane de Almeida comenta que milhares de hospitais brasileiros ainda não formaram seus conselhos, enquanto muitos já estão em diferentes etapas de implementação de suas estruturas. “Ainda não temos uma visão geral, porque não há estatísticas e pelo fato de as empresas de saúde não terem capital aberto o que facilitaria saber o status atual. Mas embora o conceito não esteja altamente disseminado, percebemos uma preocupação cada vez maior”.
Cenário
Enquanto o assunto ganha expressão no Brasil, até por pressão da Lei de Responsabilidade Fiscal, que induz até o gestor público à transparência nas demonstrações e balanços, uma pesquisa do ministério da saúde norte-americano, em parceria com a Associação dos Advogados de Saúde, revelou que 84% das instituições do país têm um conselho de administração e em 77% dos casos emprega ao menos um indivíduo como responsável pela conformidade corporativa da organização, sendo a função ocupada pelo Chief Executive Officer (CEO) na maioria das vezes (56%). Porém, em 73% das situações, não é comum ao conselho buscar por profissionais externos de auditoria em matéria de Compliance, ou seja, para identificar e diminuir riscos operacionais por meio da conformidade com as exigências da legislação e das normalizações de cada setor.
Mas, por aqui, o caminho é outro. Com consultoria da Fundação Dom Cabral e da auditoria Deloitte, a Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) implantou sua estrutura de Governança em 2008, com modelo de gestão baseado nas expectativas dos associados. A entidade conta com um diretor executivo e um conselho deliberativo formado por nove membros que representam as regiões do país, sendo que o peso de cada uma depende da quantidade de associados. E, apesar de não participar dos projetos de cada hospital associado, por meio de um projeto que aborda modelos de governança, a ANAHP os apoia a implementar seus próprios programas. “Não atuamos diretamente e internamente em um hospital, porque não é o escopo da associação. Mas em nosso seminário, nos dias 15 e 16 de outubro, em São Paulo, estimularemos os associados a evoluírem em seus modelos de governança”, comenta o presidente Henrique Salvador.
Ele conta que os resultados compensam. “Em um ano e meio entregamos dois relatórios de gestão. A produção de inteligência da associação está sendo disponibilizada para o mercado com lançamentos de livros criados pelos 13 projetos – espécie de comitês de governança -, como o Gestão de Pessoas com Cases de Hospitais, voltado para benchmarking nesse ambiente”.
Outro encaminhamento diz respeito à remuneração é está sendo discutido junto a Agência Nacional de Saúde (ANS), tendo como meta rever o modelo de contratação Software As A Service (SaaS), diários globais e elaboração de um documento a ser assinado pelas fontes pagadoras, prestadores de serviço e entidades como ANAHP, Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e Unimeds.
Outro projeto discute o modelo de gestão do corpo clínico para que o médico esteja alinhado aos valores da instituição, como o hospital deve se relacionar com profissionais que usam suas instalações esporadicamente para cirurgias, e melhores práticas em termos de assistência e custo com foco em recursos a movimentar para atender bem a clientela.
Cases
Para o presidente da ANAHP, mesmo as instituições filantrópicas evoluíram em GC e estão buscando profissionais de outras áreas, como marketing e finanças, para oxigenar e atualizar seus quadros.
A tendência levou o IBGC a promover recentemente o primeiro curso para empresários do setor de saúde, tendo como estímulo o fato de que algumas instituições como a da família Sinisgalli colocaram-se na vanguarda nesse sentido. A Odontoprev, por exemplo, foi a primeira empresa do ramo de saúde a ganhar o prêmio do IBGC na categoria Evolução em Governança, em 2009.
Já o Grupo Nossa Senhora de Lourdes foi o pioneiro, há dez anos, a atrair investidores através de fundos imobiliários de seus hospitais, uma ação que faz parte do processo de governança. Pela transparência e solidez que vem demonstrando, continua mantendo-os como parceiros da organização. Tanto que, no último fundo, aberto ao final do ano passado, um de seus quatro transfers foi adquirido ainda no período de direito de preferência. “Nem chegou a ser vendido no mercado, pois eles compraram todas as cotas demonstrando a credibilidade e atratividade do grupo”, afirma o herdeiro Fábio.
Sócio dos quatro irmãos, membro do conselho e presidente executivo, sua tarefa é justamente liderar o processo de transição cuja meta é, em 90 dias, ter a gestão totalmente profissionalizada, para que sua função seja apenas controlar a holding na esfera do conselho. Para chegar à etapa atual, ele sucedeu o fundador do hospital, Cícero Sinisgalli, hoje presidente do conselho, num processo acompanhado de perto pelo consultor Renato Bernhoeft, um dos maiores especialistas no país em sucessão familiar.
Também de origem parental, o Hospital 9 de Julho tem evoluído na incorporação da estrutura de governança, desde 2004 e já formou seu conselho de administração, definiu uma interface entre os interesses dos acionistas e a posição do CEO, para resultados de gestão e econômico-financeiros. Diretor geral do hospital e coordenador da comissão de saúde do IBGC, Luiz De Luca foi chamado pelo conselho, na época com três membros da família, para a transição na gestão profissional. “A intenção era tirar as discussões de aspectos operacionais da organização do interesse familiar. O conselho aceita os objetivos estratégicos, o posicionamento que se espera da estrutura em relação ao mercado, crescimento, investimentos, aportes de capitais, ações e junções em joint venture”.
Portanto, os escopos do conselho e da diretoria estão separados. Há uma estrutura de conselheiros externos com quatro membros de outros hospitais e uma diretoria estatutária com De Luca e mais dois executivos que abrangem as superintendências médicas. Como diretor-presidente, De Luca é convidado a participar do conselho para prestar contas em relação à organização.
O mesmo ocorre na rede de Hospitais e Maternidades São Luiz. Diretora de Recursos Humanos, Maria Alice Rocha aponta a relevância da governança numa instituição de 72 anos, cuja gestão ficou a cargo dos acionistas até 2007. O conselho administrativo reúne-se mensalmente e tem cinco membros de outros setores como o bancário e de comunicação e mais três que são representantes de dois acionistas majoritários e de um minoritário. Há também comitês que assessoram o conselho e são divididos por áreas: finanças, risco jurídico, operações, estratégia e RH. “São comitês típicos das boas práticas de governança, com caráter consultivo e temos um programa de gestão de riscos que mapeia as vulnerabilidades dando consistência aos processos para que o faturamento continue a crescer dois dígitos ao ano, de forma sustentável com gestão aprimorada dos custos”, comenta.
A direção executiva também chefia as diretorias de três unidades hospitalares e das partes comercial e de marketing, de operação e médica corporativa, responsável pela qualidade e acreditação. A de comercial e marketing cuida do relacionamento com médicos, operadores e administradoras de saúde. “A governança eleva a alto nível o debate e facilita a tomada de decisões ao aumentar a compreensão sobre o modelo de gestão praticado, com mais transparência na relação com os stakeholders”.
Implantação
Para Adriane, do IBGC, não há impactos negativos na implementação de uma estrutura de governança corporativa numa empresa da área de saúde se a ideia vier do proprietário ou dos sócios. “Não adianta as boas práticas partirem do gestor se o sócio não entender o valor disso, pois a principal mudança será no funcionamento da empresa. Nas de saúde, há uma confusão entre o papel do dono, do conselheiro e do gestor, uma vez que, normalmente a mesma pessoa exerce as funções”.
A separação de funções e a criação do conselho de administração são os primeiros passos da GC. “Começa a existir várias estruturas de gestão, o sócio que sai da linha de frente e vira conselheiro. Com a profissionalização, a empresa passa por um período de adaptação ao novo cenário e cultura, com duas instâncias de decisão, um sócio que cobra resultados e o conselho que monitora a gestão”.
Ela explica que a empresa torna-se mais estruturada, sem a centralização tradicional do dono. Porém, na troca de bastões, sempre é preciso administrar o clima organizacional, para prevalecer os mesmos códigos de conduta e valores da instituição, na opinião de Fábio Sinisgalli, do Grupo Nossa Senhora de Lourdes. “Por outro lado, os ganhos com todas as fases da GC são muito importantes porque o mercado começa a analisar a organização de forma diferenciada, como uma instituição com um projeto sólido de governança, transparente, séria e competente”.
O modelo de conselho de administração, diz Adriane, não muda em função do core business da empresa, mas em relação à sua etapa de maturação em gestão. Como é comum nas empresas familiares que os herdeiros até mesmo da segunda geração não tenham interesse ou aptidão para trabalhar no negócio, a estrutura de governança corporativa é importante para garantir que eles continuarão a receber os dividendos, mesmo não atuando. “Nas organizações de saúde de controle familiar, o modelo ideal é que haja transição. Primeiro o fundador sai da gestão e vai para o conselho. Depois, ele chama conselheiros independentes para ajudá-lo e, à medida que a empresa vai evoluindo e os familiares saem da gestão, o conselho torna-se profissional, sendo o presidente da empresa um profissional de mercado”.
No entanto, o processo não tem tempo certo para ocorrer, pode levar anos, e no setor de saúde, cuja tradição familiar é forte, pode ser difícil separar a gestão do sócio enquanto a fase mais rápida é o de trazer a auditoria externa e a criar um conselho consultivo, como afirma Adriene. “Em uma empresa você consegue implantar o conselho de administração em um ano e em outra pode demorar cinco anos”.
A importância de um acompanhamento de consultorias e auditorias independentes na transição é tamanha que ganhou até um capítulo no Manual de Melhores Práticas, produzido pelo IBGC.
Variáveis
A estrutura de GC é viável para empresas de qualquer porte, já que o conceito visa preservá-la, com lucratividade ao longo dos anos. “Mesmo sem conseguir dizer o custo de implementação, por ser diferente de um programa de gestão de riscos, consigo pensar em modelos para uma clinica médica pequena, fruto da sociedade de quatro médicos, por exemplo. A governança definirá acordos sobre remuneração, papel de cada um, gestão do negócio, regras para a saída de um deles como a venda da participação interna ou externamente, evitando desestabilizar as atividades da empresa. Outros itens como realização de orçamentos, plano de investimentos, previsão de futuro e sucessão fazem parte do pacote”.
Adriane diz que, num hospital a implantação de GC também depende da estrutura de propriedade, sendo mais complexa uma vez que a instituição capta dinheiro e está sujeita às regras da Agência Nacional de Saúde (ANS) e, se atender no Sistema Único de Saúde (SUS), terá mais obrigatoriedades a cumprir. “E num grande hospital se vê a importância de uma auditoria externa, uma projeção de orçamentos, plano de investimentos e resultados, uma gestão racionalizada e um departamento financeiro avançado para a prestação de contas ao dono ou conselho administrativo”.
Já quando o dono é o próprio gestor, a gestão sem GC pode falhar, lembra Adriene, pois não há como ele pensar em todos os riscos e hipóteses sozinho. “Assim, uma estrutura inicial de governança em um hospital terá um conselho funcionando como um save bording. O gestor chamará pessoas com perfis diversificados para auxiliá-lo em vários assuntos, como um profissional da indústria de equipamentos médicos que possa aconselhá-lo para decisões sobre investimentos. Alguém da área financeira o orientará em como negociar empréstimos em bancos. Uma pessoa de RH mostrará como tratar as relações com os médicos e lidar com conflitos entre as partes”.
Por fim, com o passar dos anos e envelhecimento deste gestor, o conselho pode escolher um sucessor, que deve seguir o critério de competência e formação profissional.
E numa empresa de diagnóstico, o modelo de governança é semelhante, mas como sua busca geralmente é por consolidação, é importante uma gestão financeira avançada que contemple o plano de investimentos, para analisar fusões e aquisições. Isso é comum em empresas com participação em fundos de investimento Private Equity – de ações ou debêntures -, como o caso do Grupo Dasa que reúne as marcas Lavoisier, Bronstein, Delboni Auriemo, Med Imagem, Unimagem, Med Labor, entre outras. “Normalmente, é exigido um grau maior de governança, com um conselho formalizado, não sendo apenas consultivo, e que os números sejam exatos, com acompanhamento de auditorias”.
Diagnósticos
Um conflito constante no setor de saúde e que afeta as instituições com estruturas de governança corporativa é o das partes relacionadas. A situação é vista, por exemplo, quando uma empresa de diagnóstico presta serviços para um hospital do qual ele também é sócio. “Embora seja a maneira como o setor de saúde se estruturou ao longo dos anos, já que não era comum os hospitais privados terem capital aberto, hoje isso gera um conflito potencial. Então, o hospital precisa explicar isso em seu balanço, seguindo uma política de transparência. Mesmo assim, os investidores sempre podem ter dúvidas”, salienta Adriene.
A falta de transparência da organização pode até mesmo prejudicar os outros acionistas levando-os a pagar menos pelos investimentos futuros. “A incerteza na relação pode fazer até com que, num fundo Private Equity de participação do hospital, eles exijam desconto na compra das cotas”.
Prevenir e eliminar o risco de erros estratégicos também faz parte do escopo da GC. “Quando o gestor traz a estratégia, o conselho o questiona e dá novos inputs para aprimoramento. Então, antes do fechamento do plano, ele é revisto, e durante a implantação, o gestor dá feedbacks periódicos que possibilitam realinharas ações”, detalha Adriene.
E claro que isso afeta o público de um hospital sob o ponto de vista de relacionamento. “Porque outra preocupação do conselho é avaliar se o gestor está monitorando corretamente stakeholders como o cliente, fornecedores e funcionários”.
Métricas
Adriane diz que o IBGC não recomenda um método específico para avaliar desempenho das estruturas de GC nas empresas, porque é praticamente impossível identificar resultados objetivamente. “Se a empresa dá certo, pode ser porque a governança fortificou suas bases para lucros crescentes ou porque simplesmente o mercado era bom”.
Entretanto, a ferramenta do Balanced ScoreCard (BSC) ajuda a monitorar como a estratégia está evoluindo e é usada no Grupo Nossa Senhora de Lourdes, cujo sistema de gestão conta com planejamento estratégico feito a cada cinco anos, com revisões periódicas essenciais num negócio que alcançou faturamento de R$ 240 milhões em 2009 – um aumento de 22% em relação a 2008 – e pretende fechar 2010 com a receita de R$ 275 milhões. “O BSC mede a gestão de desempenho financeiro, operacional, dos serviços e da infraestrutura, mostrando que nosso nível de qualidade está cada vez mais elevado já que no ano passado atingimos nível de excelência para os dois hospitais”, comemora Sinisgalli.
No 9 de Julho, a projeção de investimentos de cinco ano em ativo, leitos, UTI e nova unidade ambulatorial externa, para os próximos três anos, chegam a R$ 180 milhões, parte proveniente de capital dos acionistas, e de terceiros, como BNDES e empresas financiadoras de equipamentos. “Apresentamos resultados mensais, fazemos avaliações de performance e consolidações trimestrais e revisões semestrais”, esclarece o executivo De Luca.
Na rede de Hospitais e Maternidades São Luiz, a executiva Maria Alice explica que utiliza os indicadores do BSC e os demonstrativos financeiros seguem inclusive o padrão IFRS (International Financial Reporting Standard). Os documentos são analisados constantemente pelo conselho fiscal e audiados pela gigante PricewaterhouseCoopers. O planejamento estratégico da rede também varia de três a cinco anos e o plano de ações anual é atrelado ao orçamento.
Implicações
Sob o âmbito fiscal e legal, os hospitais e instituições de saúde não estão submetidos às leis como a Sarbaney Oxler, como as empresas de outros setores, já que as brasileiras não estão listadas no mercado de ações de Nova York. Porém, as companhias abertas seguem a lei das Sociedades Anônimas e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com instruções como a 480, que entrou em vigor este ano e exige a publicação de Formulário de Referência. “O que requer um nível muito grande de governança nas empresas. Além disso, a legislação da Superintendência de Seguros Privados [Susep] abrange as instituições de saúde na prestação de contas e as regras da Agência Nacional de Saúde também trazem implicações de controle das operações e finanças”, afirma Adriane, do IBGC.
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