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Alemanha acorda, desbloqueia regras e acelera em Digital Health

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30 anos em 3. País se apressa em Connected Health

"Até três anos atrás, digital health na Alemanha não desempenhava um grande papel. Havia uns poucos aplicativos de fitness e bem-estar, mas quase nenhuma solução real em digital health, que passou a ter um impacto global relevante no diagnóstico e no tratamento das doenças”, explicou a Dra. Susanne Ozegowski, Head de Desenvolvimento Corporativo e Digital da Techniker Krankenkasse (TK), eleita em 2021 como a melhor seguradora de saúde da Alemanha pela 15ª. vez consecutiva. Uma guinada revolucionária em 2019 tirou o país do recôncavo digital em saúde e o levou à vanguarda em connected health durante a pandemia. É rico entender como um dos países mais desenvolvidos do planeta demorou tanto tempo para acordar, e como em menos de três anos vem recuperando rapidamente o atraso em saúde-digital.

Em 7 de novembro de 2019, poucas semanas antes da deflagração pandêmica, o parlamento alemão (Bundestag) votou a Lei de Saúde Digital (Digitale-Versorgung-Gesetz) ou DVG, que foi aprovada pelo Conselho Federal (Bundesrat) e sancionada pelo presidente alemão. Foi o marco que transformou a saúde no país e lhe deu instrumentação regulatória para chegar mais protegido a Covid-19. Cerca de 75 milhões de alemães são usuários de 105 companhias de seguros públicos de saúde (90% da população), sendo o restante usuários de 40 seguradoras privadas. A Alemanha gasta cerca de 12% do seu PIB em despesas de saúde, atingindo 410,8 bilhões de Euros em 2019 (5.000 Euros por habitante). Como todos os residentes devem ter cobertura de um serviço público ou privado de saúde, menos de 15% das despesas sanitárias totais vêm do próprio bolso da população. Além disso, a Alemanha conta com 800 hospitais e mais de 50 mil médicos. Até 2019, o país tinha um ‘serpentário de regras restritivas e regulações protecionistas’ que desestimulavam a inovação na saúde, pondo a pique uma frota de players nacionais e internacionais que entravam e saíam do mercado alemão inibidos pelo insano regramento sanitário. A DVG emergiu e a Covid-19 propeliu o avanço tecnológico, fazendo com que as autoridades mais do que depressa abrissem o país para digital health.

Além de promover o uso de telehealth e garantir uma melhor usabilidade dos ‘dados de saúde’, a nova lei deu direito a todos os indivíduos cobertos por um seguro saúde a se beneficiarem das aplicações em “saúde-conectada”. Com a maior economia da Europa e ostentando um amplo Sistema de Saúde, a Alemanha vinha se exibindo como uma possível força mundial para startups em saúde, mas até a DGV não passava de uma ilusão: o país era sufocado pelo conservadorismo da comunidade médica e por aspectos geopolíticos com a União Europeia. A lei destravou o sistema e permitiu que os insumos digitais (aplicativos, devices, equipamentos, etc.) fossem aprovados e certificados pelo BfArM - Escritório Federal de Medicamentos e Dispositivos Médicos (a Anvisa alemã), dentro de um procedimento regulatório de aprovação conhecido pela sigla "DiGA" (Digitale Gesundheitsanwendungen). Em 2020, no escopo da pandemia, o BfArM criou rapidamente um procedimento mais ágil e fácil, conhecido como DiGA Fast Track”, que processa o requerimento do novo produto (app, device, etc.) e o aprova em menos de 3 meses. Com a tecnologia sendo certificada, a DVG passou a regular o reembolso dos serviços digitais prestados pelos Seguros de Saúde, significando uma evidente evolução disruptiva para os padrões sanitários germânicos.

O novo enquadramento do BfArM e os novos procedimentos de certificação do DiGA Fast Track criaram um arcabouço facilitador nunca ocorrido na história da cadeia de serviços de saúde do país. Um resumo dos desdobramentos: (1) desde 2020, aplicativos médicos que passam pela certificação do BfArM são considerados HCPs (Certified Healthcare Providers), podendo realizar serviços de videoconsulta, por exemplo, sempre que o médico e a seguradora escolham entre as 20 plataformas digitais certificadas pela Federal Association of Statutory Health Insurance Physicians (KBV); (2) as instituições públicas de pesquisa e as universidades passam a ter ‘acesso aos dados anonimizados dos pacientes’ para estudo, ensaios clínicos longitudinais e pesquisas para tratamentos terapêuticos; (3) o receituário eletrônico de medicamentos e prescrições médicas passaram a ser permitidos, sendo que as plataformas digitais de comunicação foram priorizadas como meio de conexão (acredite, até 2020 o meio oficial de comunicação dentro da cadeia alemã de saúde era o tradicional “fax”); (4) os beneficiários (pacientes) passaram a ter acesso aos seus Registros Eletrônicos de Saúde (EHRs), sendo que as Seguradoras devem prover ferramentas educativas aos usuários (health literacy); (5) as Seguradoras agora permitem a inscrição digital do beneficiário, sem depender dos anacrônicos registros em papel; (6) o governo alemão se obrigou a colocar 200 milhões de Euros em 4 anos para financiar projetos de inovação em saúde; (7) a partir de janeiro de 2021, todas as farmácias e hospitais devem estar conectados a um ‘sistema nacional de redes seguras de comunicações’, com alta penalidade em caso de descumprimento; etc.

Não deixa de ser surpreendente como a nação mais rica da União Europeia tenha levado anos para se adaptar a saúde-conectada, precisando do viés pandêmico para acelerar o provimento digital das demandas. O BfArM buscou inspiração na praticidade das agencias anglo-saxônicas, como a FDA, que são rápidas na aprovação, mas duras nas sanções por descumprimento. Caso o provedor da solução que recebeu o registro seja desleal, ardiloso ou não respeite os compromissos com a agência, pode sofrer sanções que chegam aos tribunais como crime inafiançável. O estudo “Germany’s digital health reforms in the COVID-19 era: lessons and opportunities for other countries”, publicado em junho de 2020 no Nature Digital Medicine, mostra a importância da Digital Healthcare Act (DVG) no contexto legal da transformação digital alemã. Em 5 de outubro, onze meses após a sua aprovação, os dois primeiros aplicativos de saúde tornaram-se oficialmente disponíveis para prescrição (Kalmeda e Velibra). Antes da DVG, apenas 6% dos pacientes faziam uso de aplicativos médicos (pagos), embora uma pesquisa tenha revelado que quase 60% já estavam prontos e interessados em utilizá-los. Foi o que aconteceu.

As plataformas de telemedicina, por exemplo, explodiram em oferta, passando a ser um componente fundamental nas estratégias alemãs para serviços digitais em saúde. Em abril de 2021, os provedores de telemedicina haviam crescido perto de 1.000% em relação a 2020, com mais de 20 mil médicos e psicoterapeutas consultando virtualmente. A oferta de plataformas digitais para telehealth cresceu exponencialmente nos últimos meses, gerando uma sólida carteira de investimentos em ‘soluções integradas para saúde conectada’. O German CompuGroup Medical (CGM), por exemplo, criou sua própria solução de vídeoconsulta, denominada Clickdoc”, e a disponibilizou gratuitamente a todos os médicos, sendo que desde seu lançamento cerca de 5 mil deles já estão inscritos e utilizando regularmente a plataforma. Já estava ficando claro: o país avançava em 3 anos aquilo que em 30 não havia conseguido se mover. 

Também é verdade que não faltam problemas e obstáculos a serem superados. Entre eles as questões que envolvem o compartilhamento de dados entre blocos comerciais, como os EUA e a União Europeia. O EU-US Privacy Shield, por exemplo, um acordo que permitia a transferência de dados pessoais da União Europeia para os EUA, foi invalidado em julho de 2020 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (ECJ). Considerado como um “escudo de privacidade”, o acordo foi derrubado pela corte europeia por interpretar que os EUA têm diretrizes menos rigorosas sobre privacidade. Isso significa que as empresas europeias não podem mais transferir dados pessoais para nuvens com ‘sede’ nos EUA, como Microsoft Azure, Amazon Web Services (AWS) ou Google Cloud Platform. Uma encrenca que privilegia os cloud-providers locais, mas que intimida as healthtechs alemãs, ou as subsidiárias norte-americanas no país, que só poderão enviar dados confidenciais (bancários e de saúde) quando um novo acordo nos moldes do EU-US Privacy Shield for implementadoIntensas negociações se desenrolam entre os dois blocos tentando acomodar interesses para gerar um novo ‘privacy shield’.

De qualquer modo, a saúde-conectada alemã avança rapidamente, principalmente no eixo direct-to-consumer channel. Aproximadamente 52 milhões de alemães já utilizam um medical device, com cerca de 8% da população usando regularmente um aplicativo médico (alguns líderes desse mercado já alcançam 10 mil novos clientes por mês). Es ist fünf vor zwölf" é uma expressão alemã que significa “faltam cinco minutos para o meio-dia". Ela faz parte da cultura germânica e sinaliza que “é hora de se apressar”sendo cunhada a séculos atrás quando os artesãos que trabalhavam no beiral de uma torre de relógio eram chamados para descer rapidamente para escapar das vibrações ensurdecedoras dos sinos que badalavam precisamente ao meio-dia. Na simbologia alemã, “são cinco para as doze” expressa que se não respondermos velozmente aos indícios e as ameaças, será tarde demais. A rápida evolução alemã em Connected Health é a reação de uma nação que adquiriu consciência de que não pode perder mais tempo, que precisa se apressar e que não pode mais esperar os ponteiros do relógio alcançarem as doze horas.

 

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar

Head Mentor - eHealth Mentor Institute (EMI)

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