“Um dado é o mapa, não o território. O território existe em si mesmo, o mapa é um modelo lógico de representação. Mas, sem o mapa, não conseguimos identificar, encontrar, valorar, explicar, ou mesmo entender o território. Sem o dado, nada existe dentro das percepções ontológicas do ser humano”, explica Markus Gabriel, professor de epistemologia da Universidade de Bonn, sendo aos 42 anos o mais consagrado filósofo da nova geração de pensadores. Autor de obras envolventes, como “Eu não sou meu cérebro”, ou “Por que o mundo não existe”, ou ainda “O sentido da existência: por um novo realismo ontológico”, Gabriel é um profundo conhecedor do impacto das tecnologias digitais no contexto humano.
Nesse sentido, a ciência e as práticas clínicas nunca foram tão dependentes de mapas como agora. O dado médico sequestrou a relevância da ciência econômica no bioma saúde, colocando no lugar a Ciência de Dados. Nada na Economia da Saúde pode resgatar as insuficiências do setor sem a participação direta e explicita da “biosfera de dados digitais”. Quando a demanda de bilhões de indivíduos, portadores de alguma patogenicidade, grita por seus direitos sanitários e o setor não possui condições de ofertar os serviços na integralidade e temporalidade necessários, cria-se um contencioso global de “todos contra todos”. Perde-se o senso de cooperativismo e colaboração. Nessa direção, vamos testemunhar grandes transformações na cadeia de saúde, sendo uma delas a transição do modelo de Plano de Saúde para o modelo de “Plano de Benefícios Baseados em Dados”. Embora a diferença de nomenclatura seja sutil, a modelagem conceitual é bem diferente. “Se no século XXI toda organização é uma organização de dados, toda apólice de seguro será um instrumento ordenado por dados factuais”. Em grande parte, já é assim, mas não na indústria de serviços de saúde: hoje, a quantificação e metrificação da “jornada do paciente” não existe, e se existe é um mero exercício de avaliação e controle de sinistro.
Se o sustentáculo de uma companhia de seguro-saúde é o cliente (e não o lucro), e a sua instância mais garantidora é o dado clínico do paciente, ela precisa destravar o compartilhamento das informações com o paciente. Quando o varejo farmacêutico, por exemplo, solicita o CPF do cliente para fornece-lhe um eventual desconto (em contrapartida ao seu dado), ele está “educando” o indivíduo a perceber que seus dados têm algum valor e geram algum benefício ao varejista e a toda a cadeia farmacêutica. Engajamento do paciente é cool, mas o empoderamento dele é a única direção a seguir para redução dos problemas sistêmicos na saúde. A transição do modelo atual de Plano de Saúde para o modelo “Data-Based Benefit Plan” (ou Data Health Plan, como alguns denominam) deriva de vários fatores, mas três deles emergem com clareza: (1) os beneficiários estão mudando seu comportamento a uma velocidade sem precedentes na história dos serviços médicos. Não estão só mais bem informados, mas cada vez mais digitalizados, o que os leva a reciclar seus interesses e sua maturidade em saudabilidade; (2) as tecnologias em digital health avançaram de forma exponencial nos últimos anos, principalmente com a Covid-19; e (3) data analytics deixou de ser ocupação de pesquisadores para ser “apropriada por todos os entes-decisores dos sistemas de saúde”, mais ainda na tomada de decisão diagnóstica. O médico foi dormir analógico, acordou digital e passará o resto da vida plugado a máquinas de health-deep-learning.
Estamos mudando a definição de sociedade, de social e de “acordo socioeconômico”. O financiamento do setor de saúde (público e privado) provou neste século estar aquém dos desafios. Com já dito várias vezes, todos os modelos sociais e econômicos aplicados ao setor para garantir o equilíbrio de contas mostraram-se insuficientes. O “dragão da inflação médica” virou pet, está em todos os cômodos, no colo do stakeholder e na mente dos usuários. Convivemos com ele dentro de uma naturalidade espantosa. Para analisar as motivações do ‘dragão’ não precisamos de qualquer IA, basta lembrar (mais uma vez) de Adam Smith (1723-1790): “O preço de uma mercadoria é regulado pela proporção entre a quantidade que é efetivamente colocada no mercado [oferta] e a demanda daqueles que pagam o seu preço”. Nos últimos cem anos, os arquétipos para financiar a saúde se esgotaram por uma simples razão: a oferta de serviços de saúde sobe pela escada e a demanda pelo elevador. Smith, pedagogicamente, parece até descrever a inflação nos serviços de saúde: “Quando a demanda é maior do que a oferta os preços sobem, já que os consumidores precisam pagar mais para obter um determinado item. O desequilíbrio leva a uma incomplacente inflação de preços”. Ponto final, o resto são franjas.
Por outro lado, a digitalização das seguradoras de saúde está promovendo ações crescentes para mudar a relação com seus beneficiários. De acordo com a McKinsey, a “transformação digital na indústria de seguros” parece ser um divisor de águas. Existem águas em que navegam players que percebem o que é Data Health Plan, e oceanos, onde singram a maioria das financiadoras, que não sabem o que isso significa. As diferenças entre os “dois mares” são abissais. No primeiro caso, o dado do paciente não é só mais um elemento para “cavoucar informações” médicas, ou estratificar sinistros, ou mesmo identificar hábitos buscando “emparedar” o beneficiário em autorizações ou renovações de contrato. O norte das companhias de Data-Based Benefit Plan é empoderar o paciente para, juntos, reduzir o custeio, melhorar a qualidade assistencial e exponenciar o autocuidado.
Uma perceptível visão de futuro mostra que os “dados clínicos do paciente” serão o único ativo capaz de reter e fidelizar beneficiários, bem como sustentar a existência de uma seguradora. A transformação digital de algumas operadoras no Brasil (poucas) está privilegiando uma nova relação com o beneficiário. Nem sempre declarado, mas o objetivo é transformá-lo no principal gestor de sua apólice. Como? Um mix de self-care + prevent-care + manage-care, cujo imperativo categórico (como diria Kant) é o “compartilhamento do dado clínico-assistencial”. Em pouco tempo esse dado estará na máquina do usuário. Um Data Health Plan ajuda na coleta dos registros médicos e os “oferece” aos clientes como proposta de valor contextual. Em um contrato de “Benefícios Baseados em Dados” o beneficiário não é mais cliente, mas “sócio” da operadora.
A monetização do Data Health Plan será implacável com os incumbentes retardatários e extremamente atrativa para os usuários. Se houver dúvidas da capacidade das healthtechs em tornar efetivo o giro “dadocêntrico”, pergunte as máquinas de IA generativas (ChatGPT, Bard, Jasper, etc.) como elas produzirão essa transformação (coletar dados, analisá-los e gerar ‘cost-per-event’). Dúzias já testam seus mecanismos operacionais para prover custo por evento, ou por desfecho, ou por passagem, ou mesmo por saudabilidade.
O mapa, citado por Markus Gabriel, é o motor do “mapeamento da jornada do paciente”. É verdade que essa opção era um sonho romântico há meses. Não é mais. Nos próximos dois ou três anos chegarão ao mercado dezenas de ferramentas em IA capazes de acompanhar, coletar dados, analisar, qualificar, separar inconsistências e expor guidelines diagnósticos e terapêuticos baseados em dados reais, com “acompanhamento e consentimento do próprio paciente”. O estudo “Artificial intelligence assisted acute Patient Journey”, publicado em outubro de 2022 (portanto, antes da chegada ao mercado do generativo ChatGPT), mostra como estamos muito mais perto de acompanhar o paciente em sua ‘jornada de experiências’. Já existem várias plataformas que operam o conceito de “patient-journey-data”, diretamente com o usuário final, como o DomoCare, que ‘recolhe’ dados consentidos do paciente durante sua jornada (coletados de sensores, IoMT, wearables, dispositivos médicos e registros pessoais inseridos pelo paciente). Profissionais de Saúde apoiam e acompanham o app, gerando triagem clínica, feedback de sinais vitais e evolução de parâmetros clínicos, automatizando, assim, a coleta de dados no mundo real. Algumas dessas ferramentas alocam informações logísticas, como geolocalização, ou informações cadastrais, direcionando automaticamente alertas à médicos, familiares e cuidadores. O mais importante de tudo é que os ‘dados coletados são estruturados’ e armazenados, por exemplo, em um Personal Health Records, podendo ser “adjetivados” por Data Health Analytics e discutidos com os profissionais que interagem com o paciente.
Da mesma forma, algoritmos (geração V2) já são capazes de quantificar o “custo de cada passagem”, de cada encontro com a cadeia assistencial, de cada desencaixe realizado pelo paciente (uma corrida de taxi, por exemplo), de todas as intersecções negociadas (descontos em medicamentos, por exemplo), etc. Ou seja, com a introdução dos novos modelos de IA, Value Based Cost cresce em possibilidades de se tornar um norte seguro, com baixo custo de implementação. Aliás, quantificar e qualificar a “jornada do paciente” será o único mecanismo capaz mensurar os custos diretos envolvidos em cada passagem (a posteriori), desde o momento em que o paciente procura atendimento até a sua recuperação (cuidados episódicos). Avaliando cada jornada (incluindo o seu desfecho) é possível “precificar a ocorrência”. O aplicativo Patient Journey, por exemplo, permite que os médicos compartilhem informações com seus pacientes e suas famílias em ‘todas as etapas do tratamento’. Uma linha do tempo interativa envolve os usuários em seus cuidados de saúde, enviando-lhes as informações certas no momento certo. O projeto é apoiado pela HealthTech Nordic, uma comunidade mundial de empresas de tecnologia em saúde. O App permite que centrais de atendimento telemonitorem os pacientes e coletem os famosos PROMs (resultado de medidas relatadas pelo paciente), ajudando, com isso, mais de 100 hospitais e clínicas e perto de 600 mil usuários em 18 países.
O desafio será escolher (e acordar entre as partes – provedor, operador, paciente, varejo) o protocolo de custeio a ser outorgado (na área oncológica, por exemplo, já existem várias matrizes capazes de aferir e quantificar ($) as “portas de entrada” na jornada). Todo esse processamento “regulatório-precificador” já vem sendo desenhado e estruturado em vários países. O que tornava as aplicações impraticáveis era a “falta de tecnologia capaz de coletar e quantificar cada circuito da jornada do paciente”. Os “journey-maps” (também chamados de mapas de experiências) objetivam diagramar as lacunas na jornada e ponderar sobre possíveis “rotas contratuais alternativas”. Se na jornada, o paciente, por exemplo, faltou a uma ‘coleta de imagem’, o sistema automaticamente cria um by-pass (via “smart-contract”) que insere “fugas de controle” ($) que preservam o contexto final (combinado entre as partes, e presente nas apólices).
Uma das tecnologias bastante evidentes nesse contexto são os “gêmeos digitais”. O digital-twin carrega os dados clínicos do paciente usando um ‘graph-ETL’ (ETL é o processo de extrair, transformar e carregar dados de uma ou mais fontes, transformando-os em formato mais fácil de armazenar), criando, assim, uma “representação-clínico-assistencial” do paciente (baseada em dados da jornada). O gêmeo-digital percorre o “mapa da jornada”, compatibiliza os dados com seus algoritmos e revela os obstáculos do mundo real, como lacunas procedurais. Para desenhar o atendimento clínico, o digital-twin explora conceitos como progressão e custo da doença. Assim, cada “encontro clínico” é identificado graficamente, podendo seguir normas contratuais, vinculando os próximos passos a elementos relevantes do atendimento. Isso permite desenvolver novos insights, bem como entender melhor os “pontos de contato” na jornada do paciente. Em poucos anos (menos de 10), “máquinas inteligentes criarão um gêmeo digital do paciente, em minutos, no consultório médico, acompanhando sua jornada clínica e provendo custos por passagem, por evento e por desfecho, com altas margens de segurança”. Grande parte dessas tecnologias já estão sendo utilizadas na gestão de trials do setor farmacêutico. O paper “The Patient Journey Tech Stack: 10 Predictions for 2023”, publicado em janeiro/2023 pela International Oncology Network (Onco’Zine), mostra como o setor já está transformando o contexto de produção de medicamentos por meio do acompanhamento consentido da jornada do paciente.
O conceito de Data Health Plan não é novo. No Japão, por exemplo, a estratégia surgiu em 2013, sendo aprovada pelo governo japonês e denominada “Japan Revitalization Strategy”. Suas várias fases objetivavam “estender a expectativa de vida saudável da nação” por meio de uma integridade de dados que utilizasse abordagem científica baseada em dados. No Data Health Plan japonês as atividades de saúde são gerenciadas de acordo com o ciclo PDCA (plan-do-check-act), um método iterativo de ‘melhoria contínua de processos’. Seu Data Health Plan inclui coleta de informações na jornada do paciente, incluindo apuração de custos assistenciais. Também estratifica riscos e identifica pacientes que devem incluir atividades adicionas para o controle da saúde. O “período-sandbox” do projeto foi de seis anos, de 2018 a 2023 (em outro paper vamos analisar os casos mundiais de utilização do modelo “Data-Based Health Benefit” em sistemas públicos de saúde). Os desdobramentos do projeto japonês continuam gerando resultados: em maio/2022, duas das maiores seguradoras do Japão (MDV e DeNA) acordaram construir o “maior banco de dados de seguros de saúde do Japão” (15 milhões de pacientes), sendo que ambas empresas cooperarão para apoiar o acesso dos consumidores aos seus dados, contribuindo para a otimização das despesas dos serviços médicos.
Markus Gabriel propõe o Neorealismo, uma nova ética universal para o século XXI. Para ele, a questão mais importante da filosofia (como também dizia Kant), é “saber o que é o homem”. Neste momento da história, o filósofo reitera a necessidade de termos instituições, governos e empresas que ajudem a identificar quem é esse ‘homem em constante transformação’ e dirigir esforços para emancipá-lo, protegê-lo e construir com ele um novo iluminismo. “O grande problema da pós-modernidade é justamente a negação da universalidade. Para um pensador pós-moderno tudo é histórico, contingente, dinâmico, frágil e inteligível. Precisamos fugir do relativismo e apostar nas soluções morais universais”, escreve Gabriel em seu último livro. Como o mais jovem alemão a se tornar doutor e professor titular de uma universidade desde Schelling (1775-1854), Gabriel é um fenômeno, que fala fluentemente dez idiomas e já coleciona meia centena de publicações. “A ideia do Iluminismo, que nos levou ao Estado Democrático de Direito, está sendo atacada por todos os lados, um choque que nos causa profunda perplexidade. A humanidade está vivendo uma situação extremamente filosófica, pois temos crises em vários níveis. A pandemia, a crise climática, a crise geopolítica no Ocidente, a crise do humanismo, a crise do saber, da esfera pública…etc. Por isso a filosofia é mais necessária do que nunca”, explica o pensador. Eleger o paciente e seu dado como centro da Cadeia de Saúde é seguramente um ‘novo iluminismo’ para a indústria sanitária. Isso nunca aconteceu antes na história da civilização. O paciente sempre foi tutelado, mas sua medula nunca foi o cerne da organização setorial. Que venham os territórios e seus mapas.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)
*este será um dos temas a serem abordados no “Future of Digital Health”, o primeiro ‘podcast think-thank’ do setor, que terá a primeira de suas 12 sessões em 15/03.