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Hospitalistas estão preocupados com as cobranças por fora do convênio a pacientes

Article-Hospitalistas estão preocupados com as cobranças por fora do convênio a pacientes

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Com receio de onerar os pacientes, médicos muitas vezes optam por não atender

Eu geralmente escrevo aqui para hospitalistas, gestores de programas de MH ou gestores da saúde em geral (muitos ainda precisam ser apresentados ao modelo). Hoje, no entanto, quero reverberar uma situação que tenho percebido em fórum de discussão de hospitalistas – uma perspectiva da coalisão interna dos hospitais que, acredito, mereça escrutínio público:  

Hospitalistas têm uma visão privilegiada do sistema e muitos estão preocupados com pacientes ou familiares pagando por fora para intervenções médicas necessárias, enquanto possuem um plano de saúde, pagam por ele todo mês - e não costuma ser pouco, mas na “Hora H” precisam pagar do próprio bolso.  

Muitas vezes é justificado, dizendo-se, por exemplo, que a intervenção não está no rol de procedimentos da ANS. Mesmo que nada impeça o convênio de custear algo fora do rol (e alguns estão descobrindo que pode valer a pena), a obrigação existe naquilo que nele consta.  

O problema é que estão cada vez mais comuns as despesas relativas a intervenções que deveriam estar protegidas. Mesmo quando são absolutamente ilegais e imorais, simplório é o pensamento de quem acha que basta identificar e punir. Tem crescido contingente de profissionais que já não cobra por fora por opção primária (vai de encontro aos seus valores e não o fariam sob hipótese alguma), mas está simplesmente deixando de realizar os serviços ou procedimentos. Sendo eletivos, escolhem por não fazer, por dizer que não realizam. Algumas vezes, exteriorizam que não confiam na própria condição de executar, quando a verdade é que adorariam, mas simplesmente não compensa.  

Promovem uma farsa onde só não são mais vítimas do que os pacientes: machuca quem poderia fazer, e um dia até sonhou com isso; profissionais que dedicaram tempo e energia para executar algo do que desistem. Coincide com situações em que, para os pacientes ou familiares, eventualmente é menos ruim fazer desembolsando do que enfrentar uma verdadeira gincana para encontrar profissional. 

Pude conhecer alguns cenários recentes da otorrinolaringologia onde essas coisas ocorrem. Tenho certeza de que existem exemplos de quase todas as áreas. E muito provavelmente os planos de saúde sabem deles, fazendo de conta que não existem: 

- são inúmeras as campanhas nas redes sociais clamando por doações para crianças brasileiras traquestomizadas que pretendem realização de laringotraqueoplastia (ou reconstrução laringotraqueal) e não encontram opção a não ser pagar por fora. Parcela desses casos tem culminado em judicialização: convênios têm optado por gastar muito mais assim do que organizar melhor a questão internamente;   

- recentemente, fui apresentado ao diagnóstico ‘sinus pré-auricular’, também conhecido como fístula auricular congênita. Outra condição complexa em que, quando necessária cirurgia, não são muitos cirurgiões com experiência. E esses profissionais estão fugindo dos Planos de Saúde e, consequentemente, de pacientes - não pense que felizes; 

- o caso das amigdalectomias versos “tubinhos de ventilação” é mais mundano: enquanto atualmente é comum a indicação demasiada do procedimento otológico, na medida em que os tais drenos são “bons de inserir” (o procedimento é rápido e as complicações infrequentes e menos graves), já há otorrinolaringologistas que orientam procurar colegas para as amígdalas, mesmo sabendo fazer – as malditas, quando sangram, podem ser um Deus nos acuda e, idealmente, os profissionais precisam estar disponíveis por vários dias depois da cirurgia e da alta hospitalar!  

Este exemplo combinado é legal também porque descortina o quanto questões sistêmicas interferem em graus de utilização de intervenções médicas, bem como a interdependência entre overuse (sobreutilização) e underuse (subutilização): nos EUA, nos anos 70, amidalectomia estava entre as cirurgias mais realizadas. Não é à toa que os instrumentos antigamente usados para o procedimento são comuns nos Acervos e Museus de História da Medicina. 

Houve um enorme declínio na utilização, em grande parte bem justificado, em parte certamente explicado por heurísticas das decisões médicas: agora há médicos que fogem das amigdalectomias (favorecendo dificuldades de acesso, uma das formas de determinar underuse); coexistindo indicações excessivas entre os que se dispõem a fazer.  

No pano de fundo dessas questões há, então, elementos importantes e que merecem ampla discussão pública. 

Está na moda e crescendo um Movimento de Valor na Saúde que parece míope e somente olha para o denominador da equação resultados / custos. 

Valor de verdade em saúde é olhar uma eventual diminuição progressiva de oferta de profissionais disponíveis para amigdalectomias com a mesma atenção dada aos casos envolvendo sobreutilização de recursos, discussão que tanto gosto e valorizo, sendo coordenador nacional da Choosing Wisely Brasil. Até porque, no formato atual, estaríamos selecionando profissionais que têm tudo, pelas razões e motivações por trás da decisão de abandonar as amigdalectomias e focar nos “tubinhos de ventilação”, para acabar determinando sobreutilização dos tais drenos, fenômeno que a comunidade médica internacional já explora há algum tempo (vide aqui, aqui e aqui).  

Valor de verdade é olhar cenários como o da reconstrução laringotraqueal discutida mais acima e não permitir que crianças e famílias sofram para a retirada de traquestomia (decanulação) porque não encontram quem faça, precisam cogitar dilapidar patrimônio para custear diretamente ou tenham que judicializar. Valor de verdade é aceitar a lei da oferta e da demanda também quando não ajuda a reduzir custos, e pagar melhor aquilo que poucos sabem fazer. É garantir aos pacientes acesso ao que é necessário, justo e digno.  

Nos EUA, já se iniciou um movimento que busca inibir pagamentos por fora de pacientes que deveriam ter as respectivas despesas cobertas. Ainda em 2013, no JAMA, os médicos norte-americanos Christopher Moriates, Vineet Arora e Neel Shah, os dois primeiros conhecidos meus, provocaram com o contundente texto First, Do No (Financial) Harm. Em 2020, também no JAMA, Simon Mathews e Marty Makary sugeririam que contas indevidas ou que chegam de surpresa para pacientes deveriam também compor indicadores de qualidade na saúde. 

Lá nos EUA, em nível federal, desde 2021, o Centers for Medicare and Medicaid Services possui regra para transparência dos preços hospitalares, a partir da qual determina que todos os preços sejam acessíveis e claros por antecipação. Aqui, nossos pacientes estão a descobrir que precisam pagar por certos procedimentos no ato da necessidade. E é público e notório – para quem quiser ver!  

Em 2022, o No Surprises Act tomou efeito lá. Entre outras disposições, especifica que planos de saúde devem cobrir serviços de emergência, ocorram onde ocorrerem. Aqui, experimente você um trauma agudo com fratura de fêmur. Em alguns convênios, a cobrança por fora tornou-se o novo normal. 

Fato é que os altos custos em saúde e um modelo remuneratório ultrapassado, que entre outras distorções trata o muito diferente como se tudo a mesma coisa fosse, inevitavelmente irão reduzir a confiança da população nos médicos e sistemas de saúde, além de poderem resultar em pacientes desviando de cuidados necessários.