Essa frase do Juramento de Hipócrates remete a uma prática médica antiga: a “talha”, termo usado para descrever a litotomia, um procedimento cirúrgico para remover cálculos do trato urinário. No século IV a.C., esse era um procedimento extremamente perigoso devido à ausência de anestesia, técnicas estéreis ou conhecimento anatômico avançado, resultando em altas taxas de infecção e mortalidade. Nessa época, muitos procedimentos cirúrgicos não eram realizados pelos médicos hipocráticos, que seguiam práticas baseadas na filosofia e na observação clínica. Em vez disso, eram realizados por cirurgiões itinerantes ou “práticos”, profissionais com treinamento técnico limitado e que não eram considerados médicos no sentido tradicional.

Implicações éticas no Juramento de Hipócrates

Ao incluir essa cláusula no juramento, Hipócrates estabelecia limites éticos e técnicos claros para os médicos:

1. Respeito aos próprios limites: os médicos reconheciam quando não possuíam a formação ou habilidade necessária para certos procedimentos, abstendo-se de realizá-los, mesmo com diagnóstico confirmado.

2. Prevenção de danos: realizar a “talha” sem domínio técnico era irresponsável, contrariando o princípio de primum non nocere (primeiro, não causar dano).

3. Especialização e delegação: ainda que os “práticos” fossem menos preparados, possuíam experiência específica. Assim, delegar a eles era mais seguro para o paciente.

Reflexão moderna

Essa lição permanece atual: nós, médicos, devemos atuar com responsabilidade, respeitando nossos limites e sabendo delegar. Porém, nos dias de hoje, será que conhecimentos não técnicos — como gestão, liderança e empreendedorismo — também podem ser tratados como áreas secundárias ou delegáveis?

No mundo moderno, a saúde não é apenas um campo de cuidado técnico ou humanitário; ela se transformou em uma indústria complexa, movida por negócios bilionários, tecnologias avançadas e relações de mercado intricadas. Clínicas, hospitais e consultórios operam em um ambiente de alta competitividade, pressionados por reduções de honorários e custos crescentes, exigências regulatórias e mudanças rápidas nas expectativas dos pacientes. Além disso, o papel do médico ultrapassou o ato de cuidar: somos líderes de equipes, estrategistas de negócios e, muitas vezes, gestores responsáveis pela sustentabilidade financeira e operacional dos nossos negócios. Ignorar esses aspectos é como ignorar uma “talha moderna”: não uma cirurgia, mas decisões que impactam diretamente a sobrevivência dos negócios na saúde. Assim como no passado a “talha” exigia especialização, hoje as habilidades de gestão, liderança e empreendedorismo são indispensáveis para o médico moderno.

As “talhas modernas” na gestão médica

A partir da minha experiência de quase 15 anos como médico e executivo, e após entrevistar mais de 60 médicos donos de clínicas, consultórios e hospitais, identifiquei três áreas críticas frequentemente negligenciadas — as “talhas modernas” que muitos de nós evitam:

1. Gestão financeira

A gestão financeira é um dos maiores desafios para médicos que administram negócios em saúde. Embora altamente capacitados para cuidar das pessoas, a maioria não recebeu treinamento em finanças durante sua formação. Isso cria um gap de conhecimento que pode comprometer a sustentabilidade dos seus negócios. Entre as principais dúvidas enfrentadas pelos médicos estão:

• Precificação de serviços;

• Controle do fluxo de caixa;

• Planejamento financeiro para o futuro;

• Redução de custos sem perda de qualidade;

• Gerenciamento de inadimplência e contratos com operadoras.

Essas lacunas muitas vezes levam à sensação de que a gestão financeira é uma tarefa árdua, distante e “não médica”. No entanto, ter conhecimento em finanças é fundamental para garantir a longevidade do negócio e a qualidade do cuidado que o médico pode oferecer. Com conhecimento e ferramentas adequadas, esses desafios podem ser superados, transformando a gestão financeira em uma aliada poderosa na prática médica.

2. Gestão de pessoas e processos     

Gerir pessoas e estruturar processos eficientes são desafios cruciais para médicos que lideram hospitais, clínicas ou consultórios. Embora a medicina dependa do trabalho em equipe, poucos médicos são treinados para liderar, delegar e criar uma cultura organizacional exitosa. Questões comuns incluem:

• Atrair e reter talentos;

• Lidar com conflitos internos;

• Criar e padronizar processos;

• Delegar responsabilidades com eficiência.

Esses gaps levam ao desgaste, tanto do médico quanto da equipe, e podem comprometer a qualidade do atendimento e a reputação do negócio. Aprender a gerir pessoas e processos não apenas alivia essa carga, mas também transforma a prática médica em um ambiente mais organizado, eficiente e satisfatório para todos.

3. Comunicação, marketing e vendas

No passado, a relação entre médico e paciente era construída pelo boca a boca. Hoje, com a ascensão do ambiente digital, os pacientes estão nas redes sociais e buscam no google informações detalhadas antes de escolher um médico. Não estar presente no mundo digital equivale a não existir para muitos pacientes. Entretanto, a comunicação, o marketing e as vendas não se limitam ao digital. Eles abrangem desde a maneira como o médico apresenta seus serviços até como se comunica com os pacientes no consultório. Isso inclui uma abordagem clara, ética e humanizada, que transmita confiança e autoridade tanto presencialmente quanto nas plataformas digitais. Entre os principais desafios estão:

• Criar uma presença digital relevante sem ferir a ética;

• Atrair novos pacientes em um mercado competitivo;

• Fidelizar pacientes existentes;

• Utilizar estratégias de marketing e vendas de forma ética;

• Medir o impacto das estratégias de marketing e comunicação.

A comunicação eficaz, aliada ao marketing ético e às estratégias de vendas, ajudam a atrair novos pacientes e fortalecem a relação com os atuais. Mais do que uma simples estratégia comercial, o marketing bem feito é um pilar da prática médica moderna, que ajuda a humanizar o atendimento e a destacar a qualidade do serviço em um mercado competitivo.

O desafio do médico moderno

No passado, bastava exercer a medicina com excelência técnica. Hoje, isso não é suficiente. Ignorar conhecimentos de gestão, liderança e empreendedorismo coloca em risco não só nossos negócios, mas também a qualidade do cuidado que podemos oferecer.

Podemos escolher:

1. Aceitar o desafio de aprender e crescer além da prática médica tradicional; ou

2. Continuar delegando essas “talhas” a terceiros, correndo o risco de prejudicar a sustentabilidade de nossos negócios.

O nível de profundidade nesses temas varia conforme nossas responsabilidades. Por exemplo, um diretor de hospital precisa de conhecimento financeiro avançado, enquanto noções básicas são suficientes para quem administra um consultório. Contudo, é clara a necessidade de olharmos para esses assuntos como complementares a nossa formação médica, e não como talhas que podemos apenas delegar e não acompanhar. Elas podem não custar a vida dos nossos pacientes, mas podem custar a sustentabilidade dos nossos negócios.

Nos próximos artigos desta coluna explorarei esses temas e como eles podem transformar nossa forma de liderar negócios e carreiras. Porque, no mundo moderno, liderar com excelência também é uma forma de cuidar.